Haiti e o “estado de sítio” permanente


Artigo meu publicado para o site OperaMundi, disponível neste link
aqui.

Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante. Quando não “treme” pela pobreza extrema – aqui entendida como desemprego epidêmico, fome crônica e a ausência de saúde e educação públicas -, é a vez das crises políticas e das tragédias naturais: tempestades tropicais, enchentes e furacões. Para dar um exemplo, quatro furacões deixaram cerca de mil mortos e 18 mil desabrigados em 2008. Corpos apodreciam na água das enchentes, não havia estrutura de socorro, o dinheiro e a ajuda humanitária chegavam lentamente. Há pouco, semanas atrás, acabou a temporada de furacões na América Central e, agora, o país se debate com um surpreendente terremoto de magnitude inédita nos últimos 200 anos.

Aliás, dois séculos atrás é aproximadamente o tempo histórico da vitória da única rebelião de escravos que levou à independência de uma nação desde a Antiguidade clássica. Um passado glorioso que vem sendo ofuscado por um presente de pobreza e crises. Desde a deposição do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, a situação política oscilava entre momentos de paz, violência e fragilidade política. Mas a pobreza resistia. E a cada fenômeno natural, o espectro da destruição pairava sobre eles. A diferença é que desta vez, a tragédia une brasileiros e haitianos. Haverá mais confirmações de mortes entre os brasileiros capacetes azuis e diplomatas da ONU. A médica Zilda Arns teve ironicamente sua vida ligada ao país do continente americano com um dos piores índices de desnutrição e mortalidade infantil, onde queria implantar as bases da Pastoral da Criança.

O impacto do terremoto sobre o Haiti é brutal porque seu epicentro foi muito próximo de uma das regiões mais populosas, a capital Porto Príncipe. O país tem um território comparável ao de Alagoas, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mais ou menos 3 ou 4 milhões vivem só na capital, em favelas de tijolos frágeis, de estruturas baratas, improvisadas. Na cidade, onde os ricos moram nos morros e os pobres na parte plana próxima ao mar, o impacto foi maior em bairros com construções de mais de um piso. A região do Palácio do Governo, vizinha da favela de Bel Air, foi destruída. A situação se repete em bairros mais horizontais, como Carrefour, Delmas e Cité Militaire. Na região de Cité Soleil, de barracos de zinco e tijolos finos, os danos não foram menores.

O distrito de Petion-Ville, no alto da cidade, onde ficam as sedes das embaixadas e organizações internacionais, sofreu grande impacto. Até o Hotel Montana foi atingido, um quatro estrelas versão haitiana, onde morreu o general brasileiro Urano Bacellar em 2006. Passarão semanas para as contagens dos mortos e desaparecidos. O Palácio do Governo, que desmoronou quase completamente, era um centro político e uma espécie de residência do presidente. No hall revestido de mármore sob a cúpula central do palácio, ficavam as estátuas de Simon Bolívar e Alexandre Petion. Frente a frente. A poucos metros da vista ampla da planície da praça. Esses símbolos foram completamente soterrados no terremoto.

Um país imóvel

Vale lembrar que, em novembro de 2008, uma pequena tragédia se abateu sobre o distrito de Petion Ville. Ali, sem temporal, sem vento, sem terremoto, a escola primária La Promésse desabou. Simplesmente veio abaixo pela precariedade de sua construção. Matou cerca de 100 crianças e feriu outras 150. O presidente haitiano, René Préval, disse na época que a fragilidade e a debilidade do Estado permitia a existência de construções precárias e ocupações ilegais, o que aumenta a possibilidade de vítimas. O Haiti tentava reestruturar seu Estado com a ajuda da quinta missão de paz da ONU nas últimas décadas. Mas ainda não havia um sistema de defesa civil estruturado, o que vai piorar a situação agora no socorro e atendimento a feridos. Quem não morreu diretamente pelo terremoto corre o risco de morrer por falta de estrutura de bombeiros ou atendimento médico.

Porto Príncipe já possuía uma infra-estrutura precária. Energia elétrica era luxo. Quem tinha convivia com apagões diários. A distribuição de água era feita, muitas vezes, por caminhões-pipa e fontes de água. Em bairros inteiros, a população se abastecia com baldes. Cité Soleil, a maior favela da cidade, era um exemplo. Agora, com o terremoto, a estrutura de abastecimento de água também sofreu. Num país que importava mais da metade da comida para manter as necessidades básicas da alimentação de seu povo, a água voltou a ser escassa. Todo o combustível do país também é importado. Dificilmente um plano de emergência, com o envio de maquinário pesado, conseguirá colocar em prática um mutirão de salvamento em grande escala para evitar mais mortes. O país está quase imóvel dois dias após o abalo principal.

A ajuda da ONU e a dívida externa

O número de mortos – ouve-se agora uma estimativa do governo haitiano de cerca de 50 mil – seria pelo menos cinco vezes maior do que o total de brasileiros enviados à missão de paz das Nações Unidas nos últimos seis anos. O terremoto deve aproximar mais Haiti e Brasil. Nos últimos tempos, nossos enlaces com o país caribenho aumentaram. Além dos capacetes azuis, ativistas, acadêmicos e religiosos procuravam estreitar relações com o povo. A estrutura da ONU no país sempre esteve longe de mudar o perfil da pobreza e das necessidades básicas para o país se reerguer: trabalho, saúde, educação. Iniciativas como a da médica Zilda Arns eram um pedido de entidades haitianas desde a chegada da ONU por lá, há seis anos. Envio de médicos, engenheiros agrônomos, professores, gestores públicos, entre outros. Tudo que vai faltar em dobro agora.

Do fim da vida de Zilda Arns no Haiti, cabe ainda um recado, acredito. A mudança no perfil da missão da ONU no Haiti é urgente mais uma vez. O estágio relacionado à segurança pública pode ter sido questionável, mas há tempos foi superado. Temos a oportunidade agora de ajudar com menos tropas militares e mais parcerias para a reconstrução e desenvolvimento do Haiti. A começar pelo perdão da dívida externa de cerca de 2 bilhões de dólares, uma porcentagem ínfima na comparação com os rios de dinheiro que os países ricos gastaram para socorrer o sistema financeiro internacional da gana de seus próprios especuladores.

Terremoto no Haiti em 2010 – update de fotos

Mesmo com poucos pontos de acesso a internet, fotos do impacto do terremoto no Haiti podem ser encontradas no Flickr e algumas agências de notícias. Fiz aqui abaixo uma seleção de usuários que estão atualizando desde antes de ontem. Estimativas do governo balançam entre 50 e 100 mil mortos. Ou seja, não existe ideia exata sobre quão grande é a tragédia. Sabe-se apenas que é gigante, a maior da história do Haiti.

Miami Herald, Washington Post, The Salvation Army, Jurnal.md, Moskom, Catholic San Francisco, Agência Brasil, Cáritas Internacional, IRFCDisasters Emergency Committee (…) [em atualização…]

Terremoto no Haiti deixa “estado de sítio”

Estou tentando contactar amigos e conhecidos no Haiti. Pelas informações que obtive, a situação é uma calamidade imensa. Os bairros pobres também foram ao chão, o trânsito é quase impossível, falta ajuda para quase todos, a torre de controle do aeroporto ruiu, pessoas estão nas ruas atônitas, esperando socorro médico que não vem de lugar algum. Os hospitais que ficaram de pé não conseguem mais atender tanta gente. Poucos telefones funcionam, o contato com a capital, que já era dificílimo, ficou quase impossível. Conversei com uma pessoa no porto da cidade e ela comentou que as entradas das favelas de Cité Soleil e da zona portuária estão um caos.

Se o mais forte dos últimos furacões no Haiti matou algo em torno de 1 mil pessoas, o número agora pode ser bem maior, porque há muitos estragos na capital do país, Porto Príncipe, a região mais densamente povoada. Há mais brasileiros entre os mortos do que apenas os primeiros confirmados e de Zilda Arns. Essa é só a tragédia que nos une. Para o povo haitiano, também será hora de contar intelectuais, militantes e um sem-número de pessoas que podiam ajudar a impulsionar um novo Haiti – da política, da justiça social e dos direitos humanos. Pense em “Zildas Arns” haitianas que podem ter morrido. Esperar para ver. Reze pelo Haiti.

Renovação da missão da ONU no Haiti

Aqui, abaixo, texto do site Opera Mundi sobre a renovação da missão das Nações Unidas no Haiti. A autora é a Kivia Costa, que conversou comigo por telefone.haiti cerimônia

A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), renovada no mês passado até o final de 2010, deve permanecer no país caribenho por mais um ano depois disso, segundo o oficial de comunicação social do exército brasileiro, coronel Gerson Pinheiro Gomes.

Para o porta-voz, a missão de controlar militarmente o Haiti vem sendo passada para a polícia local, mas a segurança dificilmente será mantida a curto prazo sem a ajuda da Minustah. “No interior até conseguiríamos [fazer a transição], mas na capital a situação é mais complicada”, explicou em recente entrevista coletiva em São Paulo.

Na avaliação do jornalista Aloísio Milani, que escreve um livro-reportagem sobre a presença de tropas estrangeiras no Haiti, a permanência da missão brasileira já era esperada. “Quando o Brasil entrou na missão, em julho em 2004, ele já tinha uma perspectiva de longo prazo”.

Para ele, a renovação feita pelas Nações Unidas foi uma mera formalidade, pois não a condicionou a um plano de saída do país. Conforme explica Milani, “a ONU tem grande medo de fracassar no Haiti, como aconteceu nas últimas quatro vezes, mas, ao mesmo tempo, não dá as condições para o país se desenvolver sozinho”.

No entender do jornalista, grandes alterações só devem acontecer a partir de 2011, quando haverá eleição presidencial no Haiti, a segunda desde a criação da Minustah. “Vários membros do governo brasileiro e de outros países já deram declarações dizendo que o formato da Minustah deve continuar até 2011.”

O coronel Pinheiro confirma que a configuração das tropas brasileiras deve ser mantida até aquele ano. Segundo ele, a infantaria deve encolher e o contingente de engenheiros militares e pessoal de apoio deve aumentar, mas o novo presidente dirá se quer ou não manter as tropas estrangeiras.

Segundo Pinheiro, hoje, só a polícia haitiana pode fazer prisões. Ela também seria responsável por controlar as manifestações populares. “A TV haitiana não coloca no ar nada com tropas estrangeiras. Hoje, o importante é mostrar que a policia local paulatinamente dá conta da situação.”

Jogo político

O coronel não esconde que o Brasil tem interesses diplomáticos com a ação no Haiti, como conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança na ONU. Segundo ele, o Brasil “não está no Haiti por uma estratégia militar, mas por uma estratégia de governo. Essa é uma decisão política”.

De acordo com o coronel, haveria um entendimento por parte da ONU de que a presença brasileira no Haiti atrapalharia a participação de outros países da América do Sul. “É a primeira vez que tem uma missão com forte presença de países do sul e poucos países desenvolvidos”, ele destacou.

Os maiores contingentes militares no Haiti vêm de países em desenvolvimento. O Brasil é a nação que mais soldados enviou (1.282), seguido pelo Uruguai (1.135) e pelo Nepal (1.075). Países europeus e norte-americanos têm um contingente ínfimo na Minustah. “A prioridade dos Estados Unidos e do Canadá é hoje o Afeganistão”, comentou o coronel Pinheiro.

Nobel de Obama! Vitória dos negros?

Barack Obama

A concessão do Prêmio Nobel para o presidente norte-americano Barack Obama mostra que há algo errado nessa pós-nova ordem mundial. Se o fato de derrotar um republicano nos Estados Unidos, vira motivo para a concessão do símbolo da paz mundial, precisamos nos preocupar. Quando Obama venceu as eleições – fica aqui o registro – negros do mundo inteiro, inclusive no Haiti, comemoraram um momento único: a possibilidade de o império ver os excluídos da globalização de um novo jeito. Se Obama, tivesse usado uma pequena porcentagem de seus bilhões de dólares para a pobreza (como no cancelamento de dívidas dos países pobres) ao invés de abastecer os dutos contra a crise e a manutenção da máquina militar no Iraque e Afeganistão, talvez aí merecessem algo. Os negros ainda têm pouco a comemorar… Ah, em tempo, talvez a grande reportagem não feita sobre o Nobel da Paz seja os relatos dos bastidores dessa decisão…

Update 19 de outubro: belo texto da Naomi Klein sobre a influência negativa de Obama. “…emerge adotando o padrão claro: nas áreas em que outros países ricos estavam oscilando entre a ação baseada em princípios e a negligência, as ações dos Estados Unidos as fizeram inclinar-se para a negligência. Se esta é a nova era de multilateralismo, não é nada digno de premiação”.

Columbia analisa missão no Haiti

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A Columbia’s School of International and Public Affairs selecionou sete alunos para realizar estudos de campo no Haiti. O grupo vai se preparar até o final do ano e fará a viagem em janeiro de 2009. Os custos serão financiados pela universidades e pela ONU. O planejamento inclui entrevistas com autoridades da ONU, com o governo haitiano, com ONGs e com a população. Os resultados serão apresentados numa conferência no próximo semestre. O blog Morningside Post, um fórum estudantil da escola, divulgará áudios e vídeos da experiência.

Escola desaba em Pettionville

Foi um minifuracão. Sem vento, sem chuva, a tragédia impactou fortemente o Haiti. O prédio da escola La Promésse, no município de Petionville, localizado na região da capital Porto Príncipe, desabou. A tragédia matou pelo menos 93 pessoas e deixou mais de 150 feridos. A maioria das vítimas eram crianças que freqüentavam a escola evangélica no momento do desmoronamento. Foram quatro andares do colégio privado que vieram ao chão.

Vários grupos ajudaram no resgate: o contingente militar brasileiro da ONU, Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, Polícia Nacional do Haiti e voluntários civis. Via e-mail, o embaixador brasileiro Igor Kipman descreveu a ação dos brasileiros. “No interior do prédio da escola, em um túnel estreito que ameaçava desabar, após mais de seis horas de trabalho dramático, conseguiram resgatar com vida quatro crianças haitianas que se encontravam presas nos escombros”.

A capitã médica Carla Maria Clausi comandou o resgate pelos brasileiros e registrou: “Conseguimos salvar com vida, depois de mais de 6 horas de um resgate dramático, quatro crianças haitianas, de 6 e 7 anos de idade, que se encontravam presas nos escombros do andar térreo”. Uma foto desse momento caiu no Flickr. O presidente René Préval explicou que a debilidade do Estado permite a existência de construções precárias e as ocupações ilegais, que dificultaram até o socorro às vítimas.

No Twitter, pessoas de diferentes países repercutiam as notícias. As buscas terminaram em confusão, porque a população queria continuar a escavar o local mesmo sem chances de encontrar mais vítimas.

School collapse

Ajuda no Haiti está longe do combate à pobreza e desnutrição

A ajuda humanitária ao Haiti nas últimas semanas responde vagarosamente à tragédia deixada pela passagem de quatro furacões na atual temporada de 2008. O país já tinha uma situação de empobrecimento extremo e se tornou calamidade internacional. Quase 800 pessoas morreram e outras 18 mil ficaram desabrigadas, segundo os últimos dados oficiais. O governo local – chefiado pelo presidente René Préval –, as Nações Unidas – que coordenam uma força de paz no Haiti (Minustah) – e outras organizações não-governamentais reafirmam que a ajuda atual está aquém do mínimo necessário para a situação. Mas a entidade Médicos Sem Fronteiras faz denúncia pior: a de que além de ser insuficiente, não está conectada a nenhuma estratégia clara para suprir as necessidades básicas da população.

”A ajuda alimentar internacional que chega às comunidade é claramente insuficiente em termos de quantidade, inadequada para as necessidades nutricionais das crianças de pouca idade, e ela está sendo distribuída de uma maneira que exclui as mulheres solteiras com filhos. Não existe ainda nenhuma estratégia clara para identificar as necessidades, nem aplicar uma resposta adequada nutricional”, registra um informe da MSF publicado nesta semana. “Apesar da presença significativa de organizações internacionais – com abundância de especialistas e de publicações que mostram isso –, o povo de Gonaives ainda tem precisa ver benefícios. A temporada de furacões termina no final de novembro. Se outro atravessar a região com mais chuvas, moradores aqui pagarão mais uma vez um preço muito alto.”

Diante deste informe, entrevistei o porta-voz da MSF por e-mail. Gregory Vandendaelen explicou que a entidade é especializada no atendimento médico de emergência e que, mesmo após algum tempo dos desastres no Haiti, os casos críticos não diminuem. Entre os fatores está o atendimento impróprio da ajuda humanitária. “Não é só sobre a quantidade da ajuda, é mais sobre a forma como ela é organizada. Contra a desnutrição, por exemplo, não é a quantidade de comida que irá ajudar as crianças e, sim, a qualidade. Arroz, óleo e grãos farão pouco ou nada por eles. Precisam de alimentação terapêutica, rica em proteínas, vitaminas e nutrientes. O que denunciamos aqui é a falta de estratégia e prioridade”, disse. A MSF clama para que as organizações e o governo haitiano examinem imediatamente suas respostas de emergência e priorizem o amparo às crianças vítimas das inundações.

A crise dos alimentos no mundo piorou a situação do Haiti em 2008. Uma notícia do site oficial da Minustah de julho já mostrava o impacto da inflação. “Os preços de produtos como arroz, milho, farinha, açúcar, óleo, palhetas, as mangas têm crescido muito. O saco de milho estava em 400 gourdes no ano passado e agora subiu para 1050 gourdes (1 dólar = 37,50 gourdes). O arroz passou de 125 a 225 gourdes por saco”, afirma. Antes da crise alimentar, observa Stephanie Debere, da Oxfam, as pessoas comiam arroz, feijão e legumes. Agora os vendedores do mercado estão sendo forçados a abandonar a atividade, principalmente após a enxurrada de arroz subsidiado que chegou com a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI). O responsável da Coordenação Nacional para a Segurança Alimentar haitiano (CNSA), Gary Mathieu, estima que 3,3 milhões de pessoas enfrentam problemas para se alimentarem no Haiti após a passagem dos ciclones, que afetaram as safras e a produção agrícola.

No mundo, segundo a FAO, o Haiti se soma a outros 36 países que necessitavam de ajuda estrangeira contra a crise dos alimentos. Na América Latina, Haiti, Honduras e Haiti possuem a combinação explosiva de baixa renda e déficit na produção de alimentos. O último relatório oficial da ONU sobre o Haiti, que embasou a decisão do Conselho de Segurança de prorrogar a força de paz até 2009, indica que a produção nacional de alimentos e ajuda internacional não cobrem mais do que mais do que 43% e 5% de suas necessidades, respectivamente. Isso tem influenciado de maneira direta e intensamente na economia do país e nas condições de vida da população. O déficit comercial do Haiti aumento US$ 185 milhões (2,5% do PIB) durante os seis primeiros meses de 2008 por conta da alta dos alimentos. A inflação dobrou, alcançando 15,8% em junho do ano passado, ante 7,9% de todo o exercício de 2007.

Também repito aqui algumas propostas (minhas e de outras entidades) para ajudar na crise humanitária do Haiti. 1) Perdoar a dívida externa haitiana, sobretudo sua célula-mater em posse da França, antiga metrópole colonial que ganhou rios de dinheiro com a escravidão e ainda cobrou para reconhecer a independência da colônia; 2) Melhorar a produção local de alimentos com incentivos fiscais e reforma agrária, priorizando os pequenos agricultores; 3) Rever todas as negociações em curso do comércio mundial que aprofundam o abismo da importação de alimentos, o que funciona como uma espécie de dumping mundial contra o Haiti. 4) Ajudar a encontrar recursos com países doares para suportar o plano haitiano de combate à pobreza.

PS: este texto foi produzido para integrar as ações do Blog Action Day 2008, celebrado hoje no mundo todo com o tema “pobreza” ao mesmo tempo em que são feitas centenas de atividades do Dia Mundial da Alimentação.

Ação no Haiti inocula parte do plano de defesa do Brasil

Está para sair do forno o Plano Nacional de Defesa, formulado em conjunto entre Ministério da Defesa, Secretaria de Assuntos Estratégicos e Forças Armadas. Nos bastidores, o presidente Lula já aprovou as propostas do plano, mas ainda precisa passar pelo Conselho de Defesa Nacional, o que deve acontecer ainda neste mês de outubro. Três eixos do plano merecem destaque: a reestruturação das Forças Armadas, a reorganização do Serviço Militar Obrigatório e o reequipamento da indústria bélica brasileira.

Dentro desse documento de ações programáticas aparecerá a proposta de mudança da legislação que permite a ação das Forças Armadas em situações de segurança pública, conhecidas como ações de garantia de lei e ordem (GLO). Um sonho antigo dos militares para esclarecer a situação jurídica. Esse anseio já foi apresentado diversas vezes pelo ministro Nelson Jobim na comparação com a ação no Haiti e aqui neste blog na série “Haiti e Rio de Janeiro, campos militares brasileiros“. A proposta terá que tramitar no Congresso.

O foco das mudanças para a ação GLO está no artigo 144º, da Constituição Federal e seus dispositivos infraconstitucionais, como a Lei Complementar 97. O tema ganhou mais força depois que o episódio desastroso do Exército no Morro da Providência evidenciou esses limites jurídicos e a fragilidade do sistema diante do uso político de seu emprego. Na caserna, os documentos de planejamento já mostravam a confusão há anos. A vontade dos militares também é usar o treinamento humano adquirido no Haiti para o uso interno.

Há outros dois pontos do plano que também tangenciam a nossa atuação no Caribe. O Brasil ainda precisa mudar sua legislação para permitir o envio de tropas militares para operações de paz regidas sob o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, como é a do caso haitiano. Hoje, nossas leis apenas permitem o uso militar para a própria defesa. E o plano também escolhe a França, aliada na intervenção no Haiti, como principal parceiro no plano militar para as próximas décadas para compra de equipamentos.

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Militares do Exército que serviram na força de paz da ONU no Haiti, durante desfile de Sete de Setembro de 2007, em Brasília (Fábio Pozzebom Rodrigues/ABr)

Ajuda pós-furacões e economia haitiana na berlinda

A passagem dos furacões pelo Haiti (e seus impactos) foram pouco noticiadas no Brasil. Há alguns dias, jornalistas da TV Globo, da EBC e da Agência Lusa foram para lá. Esta última, inclusive, com belas reportagens. No balanço, deram matérias em português com relatos dos soldados e dos representantes da ONU sobre a ajuda humanitária. O general Santos Cruz estima em quase 17 mil os desabrigados. A diretora do Programa Mundial de Alimentos, Josette Sheeran, acredita que nem um terço das doações necessárias chegaram. De Porto Príncipe, o embaixador brasileiro comenta que alimentos são doados pelo Brasil diretamente a famílias e entidades necessitadas. Enviado da ONU clama por doações via governo e não por ONGs. Na imprensa estrangeira, há denúncia de roubo de alimentos que seriam entregues para as vítimas. O Unicef reafirma que as crianças são as principais vítimas. ONG Médicos Sem Fronteiras atua fortemente em Gonaives. Venezuela anuncia plano de ajuda ao Haiti por intermédio da Petrocaribe, já uma reportagem da NPR vincula a atuação de Chávez a uma manobra política na região. No rastro dos quatro furacões que devastaram o país, outra tempestade se forma – o impacto financeiro que a crise dos Estados Unidos pode provocar no Haiti. O economista Kesner Pharel alerta que a economia haitiana é muito vulnerável. Já frágil por ser grande importador de alimentos, os efeitos de uma recessão no país podem ser bem duros. E empurrar cada vez mais gente para imigrações ilegais. Sem que ninguém discuta uma “ajuda econômica” ao Haiti diante da enxurrada de dinheiro que seguirá para a roleta das bolsas. E se o furacão recessivo for uma tormenta a conta-gotas?

Haiti e a roleta da crise financeira

Sinceramente, não tenho idéia qual é o tamanho do mercado de ações no Haiti. Nem tenho a mínima idéia do tamanho do impacto da tensão nas bolsas dos últimos dias nos leilões das ações das empresas de capital aberto por lá. O que quero aqui é lançar um desafio sobre como o mundo especulativo do mercado financeiro é contraditório com a vida de populações pobres. Alguém aí tem a medida ou a noção de quanto significa US$ 700 bilhões do pacote anticrise de Bush?

A quantia é quase o total de toda a produção de riquezas do Brasil durante seis meses. Isso para aliviar a gestão de empresas que venderam crédito a torto e a direito, e que, logicamente, fizeram a economia dos Estados Unidos como refém neste momento. Porque a falências das empresas levará junto a superpotência, não tenham dúvida. Mas a comparação que merece ser feita é entre o pacote anticrise dos Estados Unidos e a dívida externa haitiana.

O Haiti, um país pobre cujo endividamento começou de maneira moralmente indefensável pela ex-metrópole França, que queria indenização pelos escravos perdidos na independência. A dívida externa é de US$ 1,6 bilhões, pouco diante do pacote de Bush mas que impõe um ajuste fiscal brutal sobre o já baixo orçamento público comprometido com o pagamento de juros, que não param de crescer.

A Papda lançou novo apelo contra essa contradição após a devastação dos furacões – tragédia humanamente pior do que a das bolsas. Só com o pagamento dos serviçõs da dívida, estimados entre US$ 60 ou US$ 80 milhões anuais, daria para aliviar a situação das vítimas e ajudar na reconstrução do país. O governo haitiano mantém o pagamento dos juros e libera proporcionamente seis vezes menos dinheiro para a reconstrução do país.

Quem tem medo de uma moratória? E por que os credores não perdoam as dívidas como forma de ajudar a economia haitiana? O que vale mais agora: ajuda vidas ou manter os juros? Sobre isso há um imenso silêncio dos governos…

Ajuda internacional e o destino do dinheiro

Enquanto tenta ajudar desabrigados e contar seus mortos por quatro tempestades tropicais, o Haiti também discute sobre o destino do que ajuda para prevenir novas tragédias. Na temporada de furacões, um novo temporal pode chegar a qualquer momento. Então, além de discutir a ajuda humanitária com medicamentos, comida e água, o país precisa começar a pensar como usar possíveis doações internacionais que estão prometidas dos Estados Unidos, Espanha, Brasil e outros países.

Um exemplo… a cidade mais atingida pelos furacões, Gonaives está localizada no norte do país numa área costeira que tem até um nível pouco abaixo do mar. Nas encostas das montanhas que circundam a cidade, quase toda a vegetação foi desmatada para a produção de lenha. A água barrenta então desce e se liga ao mar. Ajudar a resolver a vulnerabilidade do Haiti a furacões é planejar também investimentos por reflorestamento, diques e saneamento básico.

No HaitiAnalysis.com, um editorial escrito por Wadner Pierre que cobra o destino do dinheiro internacional que chegou ao governo provisório após a passagem do furacão Jeanne, em 2004, quando mais de 3 mil pessoas morreram só em Goinaives. A seguir um trecho:

O furacão Jeanne devastou o Haiti em 2004 oito meses após o golpe que derrubou Jean-Bertrand Aristide. Gerard Latortue [o primeiro ministro do governo provisório], o cabeça da ditadura da ONU e natural de Gonaives, recebeu dinheiro de todo o mundo para ajudar a reconstruir a cidade. Infelizmente, as vítimas receberam poucos benefícios deste dinheiro. Gonaives situa-se abaixo do nível do mar, mas diques nunca foram construídos; muitas estradas ainda sequer foram reparadas. Os poucos resultados obtidos com dinheiro da ajuda internacional só traz a convicção de que, em Gonaives, os amigos de Latortue e ONG’s corruptas simplesmente embolsaram o dinheiro. (…)

O presidente René Préval, um nativo do estado de Artibonite [onde Gonaives é a capital], apelou à comunidade internacional para ajudar. The uproar over his latest nomination for Prime Minister has ended. O tumulto sobre sua última indicação para primeiro-ministro terminou. O Senado aprovou Michele Duvivier Pierre-Louis como primeiro-ministra. Auxílio dinheiro vai chegar. A questão é que irá se beneficiar com ele. O povo de Gonaives está compreensivelmente pessimista após a experiência com o furacão Jeanne.

Haiti não volta à África para a Copa

A seleção haitiana de futebol conseguiu apenas um ponto em nove disputados em seu grupo na primeira fase das eliminatórias da América Central e Caribe (Concacaf) e se despediu do sonho de ir à Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. O segundo país a se tornar independente nas Américas, de maioria negra e descendente de africanos, perdeu o jogo para a Costa Rica (1 a 3), mesmo jogando em casa, no estádio Sylvio Cator. A Costa Rica lidera as eliminatórias com o mesmo número de pontos de Estados Unidos e México.

A torcida fanática foi ao estádio na capital Porto Príncipe para incentivar a vitória do time, a única possibilidade de continuar na disputa depois da goleada de 5 a 0 de El Salvador. O costariquenho Bryan Ruiz marcou duas vezes. O jogo levou os times aos extremos da tabela. Costa Rica na liderança e o Haiti na antepenúltima posição – na frente apenas de Suriname e Cuba. Bom, bom, bom… agora se desfaz em pratos a cobertura do único blog brasileiro que possui uma editoria de futebol haitiano.

Até logo…

Imagem da tragédia em Gonaives

Não é fácil entender o tamanho da tragédia de um furacão no Haiti se você nunca foi até lá para saber que tudo dificulta o povo. Não há habitação decente, saneamento básico, sistema de drenagem de água, atendimento médico ou qualquer “facilidade”, melhor chamada por qualquer um de “direitos”. À medida que a água baixa após a passagem dos furacões Hanna e Ike, Gonaives descobre seus mortos. Hoje, há na página oficial da Minustah uma foto horrível, merecedora de qualquer prêmio de fotojornalismo que fale sobre o Haiti. Não pelo mérito estético, mas pela evidência do desastre. O corpo de uma vítima, em estado de decomposição, é encontrado na lama. O slideshow inteiro pode ser visto aqui.

A uma derrota de dizer adeus à Copa

Seguindo na missão de ser o único blog brasileiro a ter uma editoria de futebol haitiano, trago notícias sobre a situação complicada do Haiti nas Eliminatórias da Copa do Mundo. O jogo entre Haiti e El Salvador, pela Concacaf, foi no sábado. E a notícia não poderia ser das piores para nós, os torcedores do futebol haitiano (!). Quem passou como um furacão sobre o time deles foi o atacante salvadorenho Rodolfo Zelaya, que marcou três dos cinco gols. A goleada afundou o Haiti na tabela. Deixou o time a apenas uma derrota de dizer adeus à possibilidade de voltar à África, o continente-mãe do Haiti, e disputar a Copa do Mundo. A única vez que o Haiti disputou uma Copa foi em 1974. O jogo decisivo é contra a Costa Rica. Ai, ai.

Via Fifa e Radio MétropoleHaiti.

Ike traz nova tragédia, ajuda humanitária é urgente

Na atual temporada de furacões, o Haiti foi atingido por tempestades que deixaram mortes, inundações e estragos pelo país. Fay, Gustav, Hanna e Ike são os nomes das tormentas. A última passou no final de semana e já deixou ao menos 50 novas vítimas fatais quando o país ainda contava as mais de 500 que morreram com o Hanna. Principalmente em Gonaives, cidade costeira ao norte da capital Porto Príncipe. Os ventos de 215 km/hora do furacão Ike – categoria 4 na escala Saffir-Simpson de 5 – perderam força após a passagem pelo Haiti. O número oficial de mortes ainda pode subir enquanto a defesa civil trabalha e ajuda humanitária chega. Até agora, o número de vítimas é quase comparável à queda de dois aviões.

Para quem lê estas linhas ainda com distanciamento dos problemas, volto a citar a cobertura do Miami Herald, com relatos sobre as tempestades. Desta vez, a história é de Frantz Samedi, moradora de Cabaret, que procurou desesperadamente sua filha de cinco anos, desaparecida na lama da tempestade Ike. Encontrou-a morta após duas horas de procura. “Frantz Samedi procurou por sua filha de 5 anos de idade, durante duas horas em meio à água suja e aos escombros da tempestade, chamando o seu nome: Tamasha, Tamasha! Quando finalmente a encontrou, ela parecia estar dormindo pacificamente, o seu corpo repousava sobre uma lamacenta laje de concreto ao lado de outras 11 crianças de idades entre um a 8 anos”.

“Um velho homem abriu caminho no meio da multidão de sobreviventes, transportando um pote de água. Ele ajoelha-se ao lado do corpo e lava cuidadosamente com uma esponja o corpo da menina. ‘Eu não posso deixá-la nesta situação’, diz Samedi soluçando. ‘Eu deveria ter morrido em seu lugar’. Tamasha e as outras crianças foram arrancadas de suas famílias quando Ike passou por esta pobre cidade costeira no domingo. A tragédia aqui é uma pequena amostra da devastação generalizada em todo o país”. Clique aqui para ver a fotos do relato. Abaixo, homem lamenta a morte de uma das crianças.

A recém empossada primeira-ministra, Michèle Pierre-Louis, fez um apelo internacional hoje para buscar mais ajuda para o país. “O governo está mobilizado, tendo sido constituído um comité nacional que inclui todos os ministérios para fazer face à situação extremamente grave, mas precisamos de ajuda dos países amigos do Haiti», afirmou. “Esperamos uma frota de helicópetros dos Estados Unidos, a Venezuela prometeu fornecer aparelhos de comunicação e a República Dominicana propôs-nos dar ajuda de emergência”. A Cruz Vermelha Internacional e a Crescente Vermelha lançaram um apelo por US$ 3,4 milhões para ajudar as vítimas haitianas. Até o papa Bento 16 rogou pelas vítimas.

Na sexta-feira, um navio do Comando Sul dos Estados Unidos, com 33 toneladas de suprimentos das Nações Unidas (ONU), chegou para ajudar cerca de 600 mil pessoas que enfrentam dificuldades com os estragos causados por Hanna. O governo brasileiro anunciou a doação de quantia equivalente a US$ 100 mil para ajudar. A Venezuela enviou 18 toneladas de alimentos, móveis e utensílios. Uma estimativa da Cruz Vermelha é que 50 mil pessoas necessitam de ajuda urgente. Alimentação, materiais de primeiros socorros, medicamentos, água limpa e abrigo são as necessidades preementes. Neste link, você acessa uma galeria de fotos da Minustah sobre o caos em Gonaives.

Reportagem no olho do furacão Hanna

Este post é uma troca de impressões entre um blogueiro e uma repórter que viu o estrago do furacão Hanna no Haiti. Sobretudo o impacto na cidade costeira de Gonaives. Troquei e-mails entre ontem e hoje com a correspondente do Miami Herald no Caribe, Jacqueline Charles, e publico aqui com exclusividade alguns relatos de como andam as coisas por lá depois da passagem do Hanna e na espera da tempestade Ike, prometida para as próximas horas. Charles publicou ontem em seu jornal um agoniante relato sobre a família de Fleurie Benita, 24 anos, mãe de quatro filhos, e que perdeu todas suas posses na inundação.

Segundo as primeiras informações oficiais de ontem, as autoridades locais já falam em 500 mortos por afogamento na cidade. Os corpos começam a aparecer na medida em que a água e a lama vão baixando. “Tenho ouvido esses relatos, mas estamos à espera da confirmação da defesa civil daqui. Mas é muito possível (que isso seja verdade) uma vez que agora a água está baixando e as pessoas estão encontrando mais mortos”, conta. A Agência Reuters publicou a informação que ela cita. “A água está calma agora e nós estamos descobrindo mais corpos. Nós encontramos 495 corpos até agora e há 13 pessoas desaparecidas”, disse o comissário de polícia Ernst Dorfeuille.

Acabei por perguntar a ela como foi o trabalho para chegar até Gonaives e cobrir o furacão logo quando ele estava passando, pois, em 2004, o Jeanne deixou um rastro de impacto mas a imprensa internacional somente chegou lá com a ONU. “O Jeanne foi muito bem como Hanna, uma tempestade imprevisível que pegou muitos de surpresa. O Miami Herald enviou um repórter que escreveu várias histórias sobre a devastação que existe na cidade. E da mesma forma que as pessoas em Gonaives aprenderam a correr para terrenos mais elevados – quer uma montanha ou telhados – os repórteres também têm de ser aprendido com o olhar. Eu comecei a descrever Gonaives debaixo d’água na terça-feira pela manhã”, diz.

Com as grandes proporções da tragédia, o trabalho de reportagem também fica difícil por conta de deslocamentos. “É muito difícil chegar ao redor da cidade uma vez que você está lá, por isso o melhor é que você pode fazer o levantamento cena e falar com as pessoas. As pessoas estão com muita raiva e eles continuam assustados agora que mais duas tempestades estão a caminho e podem afetar Haiti. Lembre que o furacão Hanna foi projetado para passar ao longo das Ilhas Turcas, não pelo Haiti, mas ainda assim causou um grande número de mortes”, afirma. No Miami Herald, há uma página para visualizar a rota de cada um dos furacões desta temporada.

A repórter também comentou comigo sobre a cobertura da imprensa internacional por lá. Ela já foi acusada pelo Haiti Information Projet (HIP) de ser uma voz anti-Aristide lá por ter omitido, segundo o HIP, as reais dimensões das manifestações favoráveis a ele. Indagada sobre a qualidade da cobertura da imprensa diante dos problemas do país, Charles responde: “Pessoalmente não tenho queixas sobre a cobertura do Miami Herald. Penso que cobre todos os aspectos do Haiti e da vida haitiana. No que diz respeito à maneira como os outros cobrem, eu realmente não presto atenção a menos que exista uma história que interesse a mim ou aos nossos leitores”.

Rastro de desespero do furacão em Gonaives

O Senado haitiano, no dia da aprovação do nome da nova primeira-ministra, declarou estado de emergência na cidade de Gonaives, que ficou completamente inundada pelo furacão Hanna. Mais de 150 mortos são confirmados até agora. A cidade é a mesma que foi devastada pela tempestade tropical Jeanne, em 2004. A região deixou está quase isolada do país, pois as estradas da capital até lá são péssimas e estão submersas. O Miami Herald fez a melhor descrição até agora da passagem do furacão por lá. Reproduzo um trecho traduzido livremente quando a repórter Jacqueline Charles conta a história desesperadora de uma família atingida pelo furacão.

Em seu terceiro dia sem alimentos ou água, Fleurie Benita anda com dificuldade pela alta camada de lama, equilibrando suas posses na cabeça, com a incerteza do que fazer e do que está por vir. A cada passo, a mãe de quatro filhos recorda as ofuscantes cortinas de chuva e o som da morte batendo à sua porta. E então sua desesperada decisão. ‘Peguei as crianças e corri. Nós corremos para a casa de um vizinho’, disse Benita, 24 anos, que como muitos outros conseguiram ter sucesso ao desafiar a devastadora chuvarada da tempestade tropical Hanna para salvar sua vida. ‘A água nem sequer deixou uma cama para eu dormir. Até as vasilhas e as panelas foram levados embora’.”

Um dos filhos de Benita se enchia de lama enquanto, sem qualquer roupa, tirava as coisas da casa. A fotógrafa do jornal norte-americano fez a seguinte foto.


Na página oficial da Minustah, sigla da missão da ONU no Haiti, há uma nota de que o acesso à cidade de Gonaives, capital do estado de Artibonite, ainda é impossível. “Muitos bairros ainda estão alagados. Muitas estradas do estado, tais como Gros-Morne Pilatos, Gros Morne-Bassin Bleu ou rodovia Marmelade estão interrompidas, resultando no isolamento de muitos municípios”. As agências da ONU estão mobilizadas para tentar atenuar o sofrimento nos locais mais atingidos.

A BBC traz o pronunciamento do coordenador de ajuda humanitária da ONU no país, Joel Boutroue, que contabiliza 600 mil pessoas que necessitam de ajuda. Em Gonaives, segundo ele, 70 mil estão amontoados em abrigos temporários. Como a cidade é costeira, a elevação de dois a três metros no nível das águas inundou boa parte das ruas e casas. O número exato de vítimas pode só ser conhecido depois que as águas baixarem. Com o Jeanne também foi assim. Corpos submersos foram aparecendo ao longo dos dias.

Gonaives é uma das principais cidades do interior do Haiti e tem um significado histórico por ser um dos focos do movimento dos ex-escravos que conquistou a independência do país. Depois de três dias de chuvas e alagamentos, o Haiti precisa de ajudar suas vítimas e já se preparar para a chegada do furacão Ike de categoria 4 numa escala de cinco. Para ver um pouco mais sobre a área de formação das tempestades, veja o infográfico do National Hurricane Center, sediado em Miami.

Enfim nomeada a nova premier haitiana

O vácuo de um executivo no cargo de primeiro-ministro no Haiti vinha desde abril, quando o Congresso havia dado um voto de censura contra Jacques Edouar Alexis, acusando-o de não saber lidar com a crise dos alimentos. Desde então, René Préval indicou outros dois nomes, Eric Pierre e Robert Manuel, também rejeitados. A terceira indicação, a da economista Michele Pierre Louis, encarou um périplo na Câmara e no Senado para ser aprovada. O nome foi ratificado finalmente na madrugada de hoje (5).

O nome foi aprovado por 16 votos favoráveis e uma abstenção. O número exato de votos necessários. Numa prévia da votação, os senadores lhe dariam 15 votos e duas abstenções. Mas uma articulação política mudou um voto e conseguiu aprovar unanimidade necessária para o nome da economista. Sua indicação foi turbulenta. Até acusações e preconceitos contra sua sexualidade foram colocados em público. Ela discursou durante uma hora nesta madrugada para falar sobre seu programa de governo.

A oficialização de Pierre-Louis também acontece após a passagem de dois fortes furacões pelo Haiti, que, juntos, mataram pelo menos 150 pessoas e afundaram novamente a cidade de Gonaïves, uma das principais do interior.

Temporada de furações no Haiti

O Haiti, no meio do Caribe, está próximo à área de formação de furacões do Atlântico. Eles geralmente se formam a partir de tempestades que se originam no oceano Atlântico, passam pelo Haiti, seguem por Cuba e só depois chegam ao sul dos Estados Unidos. E agora a temporada está aberta. Quem conhece o trabalho de prevenção de desastres naturais sabe que o estrago é sempre maior quando furacão passam por áreas pobres, desprovidas de habitação e infra-estrutura decente. Em 2004, semanas após o jogo entre Brasil e Haiti, o furacão Jeanne chegou a matar mais de 3 mil pessoas no Haiti. Depois dele, já vieram muitos, sempre com algum impacto nos locais mais pobres. Nesta imagem de hoje do site da Nasa, dá para ver o final do furacão Gustav.

O Gustav passou no final de agosto no Haiti. Morando em Petionvile, na capital Porto Príncipe, o embaixador brasileiro Igor Kipman enviou o seguinte relato. “O furacão Gustav, de magnitude 1 da escala Saffir-Simpson em sua passagem pelo Haiti, passou nos últimos dias 26 e 27 de agosto pelos departamentos [estados] do Sul, Nippes, Sudeste e Grand’Anse, causando morte e danos materiais nessas regiões. Oficialmente, 77 pessoas morreram e 8 estão desaparecidas devido às chuvas torrenciais e fortes ventos causados pelo Gusvtav. A cidade de Jérémie, no departamento de Grand’Anse foi uma das localidades mais atingidas pelo ciclone. Rios transbordaram e a cidade ficou parcialmente alagada dado o grande volume de precipitação verificado”, escreveu por e-mail com algumas fotos em anexo – uma delas reproduzo a seguir.

Pelo Global Voices, o Janine Mendes-Franco organizou alguns relatos de blogueiros por lá. Um bom foi o do Theo, do blog Pwoje Espwa. “Os rios estão transbordando, já que as montanhas desmatadas não conseguem absorver a chuva. Nós estamos ouvindo sobre muitas pessoas indo para os hospitais com bebês doentes, e que muitos perderam suas plantações, e que haverá menos crianças indo para a escola neste ano acadêmico. O Haiti não precisava disso neste momento. Os preços dos alimentos e dos combustíveis dispararam, dando motivo para manifestações políticas que podem tão facilmente se tornar violentas”, descreveu. “Muitas casas foram destruídas; toneladas e toneladas e produtos agrícolas foram inundados; mais de 60 Haitianos morreram nos últimos dias.”

Depois de Gustav, veio Hanna. No Washington Post, um vídeo da Associated Press com visões aéreas dos alagamentos. Eles fizeram também um infográfico para acompanhar a rota e a intensidade do furacão. No Haiti Innovation, também repercutia o assunto. A BBC reproduziu a fala do presidente René Préval ao comentar que seu país está vivendo uma “catástrofe”, ao ser atingido pela mais recente de três tempestades que mataram 170 pessoas e forçaram milhares a abandonar suas casas. “Nós estamos em uma situação realmente catastrófica”, afirmou o presidente, que pretende realizar conversações em caráter de emergência com representantes de países doadores para pedir ajuda humanitária. Segundo Préval, a mais recente tempestade a atingir o Haiti, Hanna, pode causar ainda mais danos do que o furacão Jeanne.

Comprar uma criança em 10 horas? ……………………………….. no Haiti

Em junho, Dan Harris pegou um avião em Nova Iorque, desceu em Porto Príncipe e foi negociar a comprar de uma criança-escrava. Após 10 horas de sua saída do seu escritório nos Estados Unidos, ele consegue uma oferta certa de uma criança haitiana, “provavelmente uma menina”, para ser comprada já com documentos falsificados para enganar as autoridades da fiscalização e conseguir deixar o país normalmente.

Harris é um repórter e fez essa negociação virar denúncia internacional numa edição especial do programa “ABCNightline”, da emissora ABC News. A idéia de Dan Harris foi baseada no livro “A Crime so mostrous”, de Benjamin Skinner. Na reportagem, o repórter grava as conversas com câmeras escondidas enquanto as negociações são feitas em hotéis de luxo em Porto Príncipe. O relato dele…

– Às 16h45, estou na piscina de um dos poucos hotéis luxuosos de Porto Príncipe. Eu estou usando câmeras escondidas. Os meus colegas estão com câmeras em quartos do hotel com vista para a piscina. Nossos guardas estão sentados discretamente nas proximidades. Então o homem com quem eu tenho uma reunião marcada aparece. Ele diz que ele é um ex-membro do parlamento e que tem contatos importantes. Em plenoa luz do dia, na presença dos garçons do hotel, ele sequer se mexe quando eu faço um pedido horrível.

“Eu gostaria de conseguir uma criança para viver comigo e cuidar de mim”, peço. “Poderia fazer isso?”
“Sim”, diz ele. “Eu posso.”

Ele fala em creoule, a língua mais comum entre os haitianos. O homem a fazer a tradução, que criou a reunião, trabalha para nós. O traficante me assegura que ele já fez este tipo de operação muitas vezes antes.

“Uma menina ou um menino?” , indaga.
“Uma menina provavelmente”, eu digo.
“Quantos anos?”
“Talvez 10 ou 11.”


A reportagem também cita formas de ajudar a combater o tráfico de crianças e adolescentes. Entre as entidades citadas está a Free the Slaves, que concedeu um prêmio à Repórter Brasil e à CPT recentemente no Brasil.

Criminoso haitiano condenado nos EUA

Há quem diga que a justiça tarda, mas não falha. Nesse caso, ela errou em um e acertou em outro. Terminou nesta semana, o julgamento do criminoso de guerra Emmanuel “Toto” Constant (foto abaixo). Ele foi condenado a 15 anos de prisão. Mas, como havia falado aqui, não pelas violações dos direitos humanos. E, sim, por uma fraude no sistema hipotecário nos Estados Unidos. Constant que foi líder do grupo paramilitar FRAPH (Frente para o Avanço e Progresso do Haiti) e perseguiu partidários do ex-presidente Jean Bertrand Aristide após o golpe contra ele em 1990. Organizações de direitos humanos comemoraram a condenação da hipoteca como justiça pels crimes passados. Via Herald Tribune.

Reino dos deuses do vodu

A mitologia do vodu haitiano é muito semelhante à do candomblé. Os deuses haitianos, assim como os orixás do candomblé, possuem histórias de vida, sentimentos humanos e uma divindade que beira o nosso mundo cotidiano. A ética judaico-cristã, que pressupõe o pecados e a culpa diante da busca da salvação, não está presente no culto da religião.

O último post me lembrou de um livro haitiano que li há algum tempo. Chama-se “Pays sans chapeau”, de Dany Laferrière, escritor haitiano que deixou o país durante a ditadura de Papa Doc. Li, na verdade, a tradução do livro, que, se não me engano, sequer foi publicada. A tradução está na tese de mestrado de Heloísa Caldeira Alves Moreira, pela Universidade de São Paulo.

Aqui o rosto do Dany, autor do livro, retratado pelo jornal Le Monde.

Reproduzo abaixo um trecho em que o narrador está numa viagem pelo reino dos deuses do vodu. Encontra Ogum, deus da guerra, e sua esposa Erzulie, deusa do amor… e lá vai ele:

(…)

Ogum, o deus do fogo.

Um homem de grande estatura, sem camisa, trabalhando diante de uma forja. Ele atiça o fogo com um sopro. Paro, um momento, para olhá-lo. Ele se vira na minha direção, lançando-me um terrível olhar antes de voltar a seu ferro vermelho.

– O senhor viu minha filha?
– Não sei dizer, senhor. (Seria eu a única pessoa a ter chamado um deus de senhor?). Vi muitas mocinhas perto da fonte.

Ele explode de rir.

– É Marinette. Aquela que chamamos de Marinette das pernas finas. Ela o fez acreditar que havia várias meninas na fonte, continua. É sua brincadeira preferida. Ela estava, com certeza, lavando seu vestido branco para a cerimônia de hoje à noite.
– Ela é muito bonita, sua filha…
– É filha da mãe que tem. Ela não tem nada meu, exceto o nariz. Fora isso, é a mãe escarrada. Tal mãe, tal filha também. Duas sacanas… E agora, meu jovem, tenho coisas a fazer. Se quer conversar, continue reto até a figueira, depois vire à direita e encontrará minha mulher. Você não pode errar. Aliás, ela vai se apresentar a você.

Os deuses classe média

Decididamente, não é o inferno de Dante. Eu que pensava cair no meio de uma chuva de formas estranhas em um mundo bizarro, um universo tão poderoso, tão lotado de símbolos, tão complexo, que teria me ajudado, nutrindo minha prosa de detalhes suculentos que ultrapassam a compreensão humana, a ponto de enfrentar as revelações de São João ou o inferno de Dante. No lugar disso, tenho que engolir as gozações de uma deusa adolescente, e as lamentações de um pai, supostamente o terrível Ogum Ferreiro, que para mim mais parece um pobre operário afundado até o pescoço nas frustrações matrimoniais. Estaria eu aqui para ouvir um deus me contar suas dificuldades com a mulher? E principalmente, é com esse monte de besteiras pequeno-burguesas que o vodu pretende enfrentar os mistérios do catolicismo? Não quero acreditar.

O caminho sem fim

Quando um deus ou simplesmente um camponês lhe disser que não é muito longe, desconfie. A concepção que eles têm da distância difere da nossa. Não sei se andei dias ou horas, ou mesmo anos, já que estamos na escala da eternidade aqui. Em todo caso, fiquei mais de uma vez desesperado no caminho para alcançar aquela maldita figueira. E quando a vi, à medida que avançava em sua direção, ela recuava. Finalmente a alcancei. Logo em seguida, achei a trilha a minha direita da qual Ogum tinha falado. Há tantos calangos que correm para todo lado em torno de mim que poderíamos batizar esse lugar de jardim dos calangos. E ao longe, na encosta da montanha, aquela charmosa casinha de cores tão brilhantes que parecia ter saído diretamente de um quadro de pintura primitiva. Aproximo-me, no entanto, temeroso. De repente, pegam-me pelo pescoço.

– O que o senhor faz na minha casa?

Tão logo me viro, reconheço-a.

– Sou Erzulie Fréda Dahomey ou Erzulie Dantor, depende se quero branca ou preta. O amor ou a morte.

Tremo levemente.

– Então, continua, meu excelente marido enviou você para me dizer bom dia…

Ela agarra um calango e lhe dá uma abocanhada.

– Estou de regime, explica, só me alimento de calangos atualmente… Então, você acabou de ver Ogum e ele te enviou. Ele tem esses delicados cuidados com sua cara esposa.

Ela larga enfim meu pescoço e começa a dançar em volta de mim. Ela não é alta, mas cheia de energia, principalmente muito sensual. Uma esposa amante, como dizem aqui.

– Devo dizer-lhe que, desde que meu caro Ogum não dá mais no couro, sou obrigada a encontrar parceiros dentre os mortais, e eles não estão à altura, naturalmente. Posso trepar facilmente um mês inteiro sem parar.
– Para fazer amor um mês inteiro, é preciso…
– Escute, meu jovem, os humanos fazem amor, mas os deuses trepam.
– Certo, mas para trepar um mês sem parar…

Ela tem o riso num crescente, levemente histérico.

– Digo um mês, assim, mas no fundo nem sei, talvez seja um ano ou mais, não sei contar na medida de vocês. Sou uma analfabeta. A única coisa que posso te dizer é que, tirando Ogum, meu marido, nenhum outro deus pode acompanhar meu ritmo.

Senti um novo arrepio percorrer minha espinha.

– Quando estou no cio, continuou, posso consumir uma quantidades astronômica de humanos… Homens ou mulheres, tanto faz. Ela me pega pelo pescoço, dessa vez com ternura, e quando alguém te pega assim pelo pescoço, deus ou mortal, é que ele quer te pedir algum favor.

– O que ele estava fazendo?
– Quem? pergunto, um pouco desconcertado.
– Meu marido…
– Estava trabalhando.
– Ah… (Um tempo…) Ele estava trabalhando… E onde estava a pequena atrevidinha?
– Quem?
– Pare de se fazer de bobo… Onde estava minha filha?
– Eu a encontrei perto da fonte.
– O que ela estava fazendo lá?

Seus olhos se tornavam cada vez mais vermelhos.

– Estava lavando.
– Eu sei que estava lavando. Lavava o quê?
– Acho que lavava um vestido branco para uma cerimônia.

Um longo silêncio.

– Era tudo o que eu queria saber. De qualquer forma, se aquele velho avarento te mandou aqui é porque ele queria que eu soubesse… Bom… Então, ele está pensando em casar com sua filha… Há! há! háháháháháhá! faz entrando em sua casinha.

Um riso estranho, um pouco artificial, que me gela o sangue. Eu a olho andando de um lado para o outro em sua pequena sala abarrotada de bugigangas. Na parede, sobre uma grande toalha de banho vermelha: uma foto de Martin Luther King apertando a mão de John Kennedy.

– Você quer tomar alguma coisa?

Ela não espera minha resposta e tira uma garrafa de coquetel de cerejas de um pequeno armário coberto de poeira que ela mantém fechado a chave.

– Não sei desde quando tenho este coquetel aqui. Temos visitas raramente. As pessoas daqui preferem ficar em casa. Só Zaka vem me ajudar às vezes….

Olho pela janela e vejo um velho homem capinando o jardim. É ele, Zaka, o deus dos camponeses.

– Sabe o que vai fazer?… Você vai voltar para ver Ogum e, falando com ele, vai dar um jeito para que ele pense que dormimos junto.
– Mas isso não terá nenhum efeito, uma vez que a senhora mesma me disse que…
– Sim, mas não aqui, não no leito conjugal…Trata-se talvez de um deus, mas também de um homem, você entende o que quero dizer…
– Se se tratar de um homem, sei o que vai acontecer.
– Bem, se ele atacar você, terá que se haver comigo…
– Sim, mas enquanto isso…
– Se você morrer por mim, poderá vir morar aqui comigo por toda eternidade, diz com os olhos de noite.

É preciso que eu pense rápido.

– Eu, se fosse a senhora, em vez disso, iria reconquistar Ogum, o que seria fácil pois a senhora é bem mais bonita, e principalmente bem mais experiente que sua filha.

– Sim, mas ela é mais jovem.
– Me disseram que o tempo não existia aqui.
– Não para essas coisas, diz com um jeito maroto.
– Oh! então é relativo?
– Tudo é relativo, meu bem, fala avançando em minha direção.

Eis que ela começa a rebolar. Que situação mais estranha estar sentado aqui, neste salão kitsch, olhando Erzulie Fréda Dahomey, a mais terrível deusa da cosmogonia vodu, tentando me seduzir para que eu vá ferir, com a arma do ciúme, o coração de seu marido, Ogum Badagris ou Ogum Ferreiro, o intratável deus do fogo e da guerra.

– A senhora talvez seja menos jovem, mas tem as pernas mais bonitas do que as de sua filha que apelidamos de Marinette das pernas finas.

Desta vez, acho que acertei na mosca e que não terá cerimônia nenhuma, mais tarde. Mas antes que tudo exploda, tem alguém que precisa dar no pé daqui bem rápido. (…)

Amor e beleza no vodu haitiano

Saut d’Eau é uma cidade da região central do Haiti. É onde acontece uma importante festa religiosa do país, que mistura valores católicos e do vodu. O sincretismo de Erzulie Freda, deusa do amor e da beleza no vodu, com a imagem católica de Nossa Senhora do Carmo. Na cidade de Saut D’Eau há uma grande cachoeira perto de uma igreja, para onde fiéis vão se banhar e festejar suas crenças – forma de fazer uma oferenda nas águas, das quais Freda gosta, assim como o orixá Oxum do candomblé afro-brasileiro.

Só conhecendo um pouco mais da cultura do Haiti para entender que existem diferentes formas de olharmos o empobrecimento do país caribenho. Ele reside, sobretudo, na política partidária, nos serviços públicos e na garantia dos direitos. Mas não atinge a dimensão cultural de um povo que tem história, religião e uma riqueza plural. A celebração aconteceu na semana passada. Fiz uma coleta de fotos deste ano pela internet. Algumas são da página oficial da Minustah, registradas pelo fotógrafo Marco Dormino, e outras do pessoal do Haiti Innovation, no link do slideshow do Flickr.

Aí estão…



Podcast “Músicas do Haiti”

Começo neste post uns testes que vou fazer com podcasts para o blog. Subi o arquivo MP3 fora do wordpress, e puxei o link para cá. Na estréia, fiz um formato “vitrola”, são três músicas do Haiti e uma brasileira sobre o Haiti (sim, é aquela famosa). Ainda está em mono, mas logo vou melhorando a qualidade. A primeira música é um rap haitiano (busquei num blog do Canadá), depois uma canção e uma batida de vodu (que trouxe de discos haitianos). No final, a famosa composição de Caetano Veloso. Bom, é só ouvir.

1. Mission (Anbiskad 64);
2. Mon Rêve (Emeline Michel);
3. Dangere (Azor);
4. Haiti (Elza Soares).

Criminoso de guerra julgado por fraude na hipoteca

Um haitiano criminoso de guerra é julgado nos Estados Unidos por fraude na hipoteca. Essa é a idéia do título do artigo do ator norte-americano e militante dos direitos humanos, Danny Glover, sobre o ex-líder paramilitar haitiano Emmanuel (Toto) Constant que é acusado de inúmeras violações humanitárias. Ele não está sendo julgado por seus crimes contra os haitianos, a maioria deles contra partidários de Aristide, mas por ter fraudado a hipoteca. Fiz a tradução de parte do texto aqui para o blog. O resto podem ver por este link em inglês.

Emmanuel (Toto) Constant, um ex-líder paramilitar do Haiti, começou a ser julgado no Brooklyn nesta terça-feira (08). Mas, apesar de sua brutal herança de massacres, torturas e outras violações cometidas sob o seu comando durante 1993-94, este antigo líder de esquadrão da morte não está enfrentando justiça pelo seus crimes de guerra.

Em vez disso, ele está no banco dos réus por conta de uma fraude na hipoteca. Alguma coisa está errada com esta cena. Documentos do governo dos Estados Unidos, obtidos em meados da década de 1990 pelo Center for Constitutional Rights, confirmam o chocante recorde de violações humanitárias de Constant – crimes cometidos enquanto, à época como chefe do grupo paramilitar FRAPH (Frente para o Avanço e Progresso do Haiti), ele orquestrou uma campanha de terror contra os partidários do então presidente Jean-Bertrand Aristide.

Mas curiosamente, por mais de uma década até 2006, Constant tem vivido num relativo conforto do Queens, em parte graças à intervenção do nosso próprio governo federal. As voltas e mais voltas do destino do líder paramilitar Constant, como réu a aguardar julgamento por fraude na hipoteca, nos diz muito sobre a última década da difícil história do Haiti – e a confusa política norte-americana no país mais pobre do nosso hemisfério.

Constant chegou aos Estados Unidos em dezembro de 1994, depois de o governo de Aristide decretar sua prisão por violações dos direitos humanos. Em setembro de 1995, Constant estava prestes a ser deportado pelos Estados Unidos – quando ele revelou o seu papel como um agente da CIA. De repente, a deportação foi esquecida na mesa e ele foi autorizado a permanecer em solo americano.

O que diz José Renato Baptista…

O Haiti sempre parece um labirinto com muitos caminhos para andar e se perder. Entender o que acontece ali, sobretudo suas relações com o passado, é tarefa difícil. No mundo, alguns poucos tem se debruçado sobre isso. Venho publicando os comentários de alguns nesta série “O que disse…”. E navegando pela internet, conheci o blog do antropólogo brasileiro José Renato Baptista, uma ótima referência se você quiser ler (em português) o diário de alguém que vive por lá. Doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), seu blog Aytian Nuvels é um belo registro de um pesquisador em sua apuração de campo. Deixo abaixo alguns de suas histórias, que, em seu blog, são entremeadas por cômicas análises futebolísticas e expressões em creole. É, sem dúvida, um dos principais depoimentos do que acontece no Haiti de hoje, fora das discussões das forças da ONU e da geopolítica americana. E, sim, sobre o Haiti das ruas, do seu povo, de sua miséria e riqueza.

(…) entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.

Cada vez que converso com um haitiano que encontro pelo caminho das minhas pesquisas sobre o vodu, tenho a impressão de que muitos haitianos crêem que seu país sofre de algum tipo de maldição proferida por Deus ou pelos deuses. (…) a cosmologia de certa parcela dos intelectuais daqui pode ser enquadrada nos mesmos marcos que as explicações nativas sobre um suposto mal de raiz, uma “natureza” dos haitianos voltada para o mal, apoiadas nas crenças religiosas de católicos, voduissants e protestantes. Para estes, o mal de raiz viria exatamente do ato de nascença do Haiti: o Sacrifício de Bois Caiman. Tido como o ato que deflagrou a luta de independência na região norte do país, que uniu os escravos e eclodiu a revolta nas fazendas da região, Bois Caiman é um mito de origem nacional que faz uma associação perfeita entre construção nacional e vodu. Para quem não conhece a história do Haiti, Bois Caiman foi o local onde se realizou uma grande cerimônia vodu, liderada pelo jamaicano Boukman, que organizou os escravos e deu início à luta de independência, onde teria sido sacrificado um porco ou cem porcos às divindades vodu.

Congresso autoriza mais 100 militares para o Haiti

Quando a proposta passou pela Câmara, eu tinha feito somente um twitter. Agora escrevo um post para registrar que terminou nesta quinta-feira (10) a tramitação no Congresso do projeto de decreto legislativo que aumenta em 100 soldados o contingente brasileiro na força de paz das Nações Unidas no Haiti. A companhia de engenharia se juntará ao grupo existente para reforçar trabalhos específicos de infra-estrutura, como asfaltamento de ruas, perfuração de poços, tratamento de água e outros reparos que os brasileiros quase sozinhos dentro da força de paz desempenham no Haiti. Agora, o projeto segue para sanção presidencial, o que permite o envio imediato do novo grupo.

Como comentei, a decisão de aumentar o efetivo foi um tema herdado da gestão do ex-ministro Waldir Pires. Na primeira oportunidade do ministro de lidar com a situação do Haiti, depois do afogamento da crise aérea, Nelso Jobim conversou com os comandantes das Forças Armadas. A dúvida era: devemos aumentar o efetivo simplesmente para comportar mais engenheiros ou reduzir o número de soldados e trocá-los por engenheiros? Venceu o primeiro argumento por convencimento dos militares sob a alegação de que a segurança “ainda é frágil” no Haiti. E o contigente seria necessário para manter a ocupação de áreas problemáticas como Cité Soleil.

ONU usará US$ 23 mi para dar comida no Haiti

Minhas perguntas são simples. E se desde quando a missão de paz tivesse chegado ao Haiti, houvesse o início de uma seqüência de investimentos na produção agrícola familiar de alimentos? Ao mesmo tempo, se tivesse havido medidas governamentais de protecionismo agrícola temporário (afinal, há sim protecionismo justificável para um país arrasado economicamente)? Aposto que provavelmente o problema a alimentação teria uma alternativa mais viável agora nesse crise de alimentos.

Como falei no último post, o arroz haitiano é sufocado pela importação barata da produção norte-americana. E, como isso causa crise, a ONU precisa distribuir mais alimentos. Há poucos dias, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) informou que está investindo mais recursos para expandir suas operações no Haiti. Segundo o PMA, cerca de US$ 23 milhões, o equivalente a mais de R$ 36 milhões, serão empregados em novos projetos de fornecimento de alimentos no país caribenho.

Uma terceira pergunta. Você sabia que a ONU compra alimentos para ser doados? Uma quarta pergunta. Sabia que entre os fornecedores de arroz do PMA também está os Estados Unidos? Os que forçam a derrocada do arroz haitiano ao vender a produção com tarifas achatadas são os mesmos que vendem arroz para a ONU doar aos haitianos. Ganham duas vezes sobre a miséria que criam. Certo? Agora, leiam essa notícia aqui e vejam o sentido das palavras.

Os Estados Unidos e a quebra do arroz haitiano

Em Cité Soleil, em 2004, conheci o barraco de madeira onde morava Magalie, sua mãe e dois casais de filhos. Na porta de sua casa tinha uma cortina de sacos de nylon estampados de bandeirolsa norte-americanas. Pouco tempo depois fui saber que aqueles sacos embalavam o arroz importado pelos haitianos, pois sua produção, antes autosuficiente, agora minguava. A quebra na produção do arroz, item básico da alimentação, é um exemplo de como a política agressiva dos Estados Unidos piora a situação dos países mais pobres. Por pressão dos norte-americanos e do Fundo Monetário Internacional (FMI), as tarifas alfandegárias foram achatadas e o arroz importado destruiu a produção nacional. Um estudo da organização não-governamental Oxfam, em 2005, descreve a origem da história.

Em 1995, o FMI forçou o Haiti a reduzir as suas tarifas aduaneiras para o arroz de 35% para 3%, o que resultou num aumento das importações de arroz em mais de 150% entre 1994 e 2003. Hoje, três em cada quatro pratos de arroz consumidos no Haiti vêm dos Estados Unidos. Isto pode ser boas notícias para a Riceland Foods of Arkansas, a maior unidade de processamento de arroz do mundo. Os lucros da Riceland subiram 123 milhões de dólares americanos de 2002 para 2003 graças, em grande parte, ao aumento de 50% nas exportações, sobretudo para o Haiti e Cuba. Mas foi devastador para os agricultores de arroz no Haiti, onde as regiões de produção de arroz registam agora das taxas mais elevadas de pobreza e malnutrição.

A ausência de produção nacional de grãos é uma das causas da atual crise dos alimentos no país mais pobre das Américas. E que pode piorar caso a inflação do preço dos alimentos siga em ascenção, como alertaram hoje as Nações Unidas. Também assisti dois vídeos muito legais da Aljazeera English sobre o Haiti. E são aqueles que mostram os pequenos campos de arroz e como a população recebe agora esse item básico norte-americano. Seguem os dois vídeos via You Tube.

PARTE 1

PARTE 2

Dinheiro roubado por Baby Doc do Haiti


Esta é a cara jovial do ex-ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby Doc. Além de suas inúmeras acusações de torturas e assassinatos, ele também foi um grande e corrupto chefe de Estado. Estimativas do Haiti falam que ele teria roubado cerca de US$ 100 milhões. Desde de sua saída do país, em 1986, quando começou seu exílio, o Haiti tenta recuperar pelo menos parte desse dinheiro. Agora, mais de 20 anos depois, a Suiça divulgou que irá devolver US$ 12 milhões em recursos depositados no exterior antes do fim da ditadura. Baby Doc tem três meses para recorrer e tentar evitar a restituição dos recursos. Esta notícia me chegou via Le Nouvel Observateur.

Policiais blogueiros contam seus passos nas missões de paz

Navegando pela internet, encontra-se um blog, no mínimo, curioso. Alguns policiais militares brasileiros que integram forças de paz das Nações Unidas escrevem sobre suas atividades. E, claro, não falta informação do Haiti. Destaco dois posts interessantes. O primeiro relata como os policiais brasileiros participam do planejamento de uma ação no noroeste do Haiti. À bordo de um avião C212, eles fazem imagens aéreas de vilarejos para poder mapear o terreno da ação. O segundo, fala da prisão do haitiano Esteveson Loobens, acusado pela polícia de ser mentor de vários seqüestros que aconteciam na capital Porto Príncipe. Inclui o pessoal na lista de links do meu blog.

Entrevista para a revista CartaCapital

Dei uma entrevista para a repórter Manuela Azenha, do site da revista Carta Capital. Ela abordou perguntas interessantes sobre a geopolítica e a soberania do Haiti. Coisa que muita gente se esquece de pensar. Copio aqui no blog a íntegra da entrevista e o link para uma galeria de fotos que eles fizeram a partir de imagens da Associated Press e da Agência Brasil. Segue:

“Haiti não é aqui”, por Manuela Azenha

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“Depois de quatro anos de ocupação estrangeira da ONU no Haiti, as tropas internacionais, sob o comando do exército brasileiro, continuam sendo renovadas. A missão de paz é uma intervenção militar, cujos objetivos no país se resumem a estabilidade política.

No entanto, o problema no Haiti, antes de ser militar, é econômico e social. A terra devastada é quase toda incultivável, a estrutura do Estado está desmoronada e quase 80% da população vive abaixo da linha de pobreza, com dois dólares por dia.

A missão de paz da ONU, chamada Minustah (sigla em francês de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), chegou ao Haiti em 2004, depois de o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide ser deposto pela segunda vez.

Nesse momento, sob o pretexto de defender a democracia no Haiti, soldados americanos com o apoio da ONU e da França instauraram o governo transitório, que foi substituído por René Préval, eleito presidente em 2006 com 51.21% dos votos de seus compatriotas, segundo dados oficiais.

Aloísio Milani, jornalista brasileiro que esteve quatro vezes no Haiti para escrever sobre a ação dos países latino-americanos na Minustah e o papel do Brasil na condução da estabilização do país caribenho, falou com CartaCapital sobre o assunto. A entrevista está dividida em duas partes: nesta primeira, Milani fala sobre a liderança militar brasileira e da forte intervenção norte-americana no País. Na segunda, explica a atual estrutura política, as perspectivas da disputa eleitoral e o plano de retorno das tropas.

CartaCapital: Como e porque o Brasil virou liderança militar das tropas no Haiti?
Aloísio Milani:
A questão foi uma proposição política, porque o cargo ali não é especificamente militar. Por mais que o presidente da República e o ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim neguem, o Brasil estava em momento de campanha para pleitear a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava apontar que era capaz de fazer a liderança de uma missão de paz. A proposta surgiu no Conselho de Segurança, em acordo com o então presidente francês Jacques Chirac. O resultado foi o maior contingente militar brasileiro fora do país depois da Segunda Guerra.

CC: Qual é o grau de intervenção dos Estados Unidos no Haiti?
AM:
O Haiti era uma república negra, se tornaria o segundo país independente do continente e a primeira república negra do mundo, não tinha uma forte relação diplomática com os EUA. Isso piorou quando invadiram o Haiti em 1915. Depois, apoiaram Papa Doc no início de sua ditadura, mas não foi algo constante. Em 1980, surgiu no cenário político Jean-Bertrand Aristide, representante de um movimento popular, o Lavalas, oriundo da teologia da libertação e dos movimentos de esquerda e que acaba eleito em 1991, mas logo é deposto por uma junta militar.
Os EUA, então, intervêm novamente, sob a administração Clinton, para recolocar Aristide no poder em 94, com a promessa de realizar novas eleições e a adotar uma política neoliberal.

CC: Como foi esse processo?
AM:
A política de abertura econômica foi o que acabou com a agricultura campesina haitiana. O país deixou de ser exportador para ser importador de arroz. Deixou de produzir açúcar em grandes quantidades e passou a importar até mesmo gêneros básicos. A esta altura, em 2004, os EUA já estavam de olho nas manifestações que aconteciam contra Aristide por conta do descontentamento com sua política neoliberal.

CC: Quais eram essas manifestações?
AM:
Há denúncias dos movimentos sociais haitianos de que o grupo armado que marchou a partir de São Pedro, na República Dominicana até a capital haitiana, para questionar a presidência do Aristide foi financiado pela CIA. Hoje, a embaixada norte-americana no Haiti é muito forte, talvez a que mais injete dinheiro na economia haitiana. Toda a cúpula de missão de paz da ONU lá tem uma relação direta com as decisões que os Estados Unidos querem. Há áreas da missão de paz que os EUA continuam controlando. Uma delas é a área da inteligência.

CC: Então na verdade os EUA é que são a liderança das tropas?
AM:
A minha visão é de que a situação do Haiti é uma resultante de várias forças diplomáticas e vários interesses. E que eles nem sempre vão de encontro aos interesses do povo haitiano. Os EUA têm interesse no Haiti pela mão-de-obra barata e também por ser um país muito próximo de sua fronteira na costa, o que provoca o ingresso de imigrantes ilegais nos EUA.
O Brasil tem interesse no Conselho de Segurança da ONU e para mostrar para a ONU que consegue liderar uma missão de paz de grande porte. A França tem um histórico de política muito intervencionista com suas ex-colônias.

CC: Qual seria a explicação para governos ditos progressistas como da Bolívia e do Equador mandarem tropas para o Haiti?
AM:
Todos têm interesses diplomáticos. E precisamos lembrar que é uma força de paz composta por soldados. Nenhum país da América do Sul vai querer deixar de participar disso como forma de participar da discussão diplomática. Os dois únicos países da América Latina que se colocaram publicamente, frontalmente, contra isso foram o Hugo Chávez na Venezuela e o Fidel Castro em Cuba. Os cubanos mandaram médicos e os venezuelanos também deram apoio em atendimentos básicos, mas num outro modelo. Eu vejo essa questão da Bolívia e do Equador também no sentido de não perder o bonde da diplomacia na região. Também existe uma disputa hegemônica na América do Sul e o Haiti nesse ponto é o único ponto de convergência.

CC: Em abril, quando houve aquela repressão violenta para impedir a manifestação contra a alta dos preços dos alimentos, o primeiro-ministro Jacques-Édouard Alexis caiu. Como está a estrutura política do país agora?
AM:
No último dia 25, o presidente Réne Préval anunciou Michele Pierre-Louis como primeira-ministra. Ela era presidente de uma ONG que trabalha no Haiti há muito tempo. Desde a manifestação pelo preço dos alimentos, o que acontecia era que uma série de indicações de Préval eram negadas pelo Congresso, o que alongava ainda mais a crise política. Uma das indicações foi o Robert Manuel, que tinha sido ex-chefe da segurança de Préval em seu mandato anterior. Ele é acusado por muitos movimentos sociais de ter promovido um massacre no Citeé Soleil. Havia um movimento forte de oposição a ele. A sua indicação foi negada por irregularidade em seus documentos. Agora René Préval indicou essa nova primeira ministra que também vai ser submetida ao Congresso.

CC: Você acha que Préval ainda tem legitimidade política? Ainda é uma referência institucional?
AM:
Acho que sim. Porque os problemas no Haiti são de diversas ordens. Ele foi eleito pela maioria, ainda tem legitimidade. A questão é que nem o governo dele e nem a missão da ONU conseguiram dar respostas para questões básicas da população como emprego, a economia que está longe de ser saneada, e, sobretudo a questão da violência.

CC: Quais são as perspectivas para as próximas eleições?
AM:
Existe uma grande expectativa em relação ao retorno do Aristide. Essa história está ensaiada há algum tempo, desde as últimas eleições de 2006, existia uma possibilidade da sua volta ao poder. Queira ou não, o Aristide é alguém que ainda leva multidões de apoiadores às ruas, sobretudo em Porto Príncipe e em bairros mais pobres. Acho que a grande expectativa é saber se ele vai voltar, porque isso poderia mudar os rumos nas articulações políticas do Haiti. De qualquer forma, outros candidatos, burocratas do Banco Mundial e do FMI, devem voltar a se candidatar. Eles representam o contingente de emigrantes que vivem fora do Haiti, principalmente no Canadá e nos EUA. No momento, a vantagem estaria com os apoiadores do Lavalas, que ainda são um grupo partidário forte no Haiti.

CC: É provável que Baby Doc retorne?
AM:
Ele tem problemas gigantescos lá, acusações internacionais de violações dos direitos humanos, está com sua fortuna seqüestrada internacionalmente. Tem uma pequena parte da elite que apóia o Baby Doc, mas ele não encontra legitimidade para disputar com vigor as eleições.

CC: Existe alguma proposta de alteração estrutural do país? Alguma mobilização ou candidato que proponha isso?
AM:
Esse foi o grande desafio das últimas eleições. Os governos sul-americanos estão tentando articular alguma indicação por lá, mas isso não funciona porque elas não nascem de maneira natural. Não existe um movimento de oposição, ou um grupo de partidos que faça uma coalizão para um desenvolvimento alternativo no Haiti. É tudo muito fragmentado e fica polarizado entre quem é a favor do Lavalas e quem é contra. A política é feita das migalhas dessa disputa.

CC: As tropas têm planos de retorno? O objetivo foi cumprido?
AM:
Eu acho que as tropas ficam no país pelo menos um ano depois das eleições. Isso está presente nos discursos dos representantes dos países. Aqui no Brasil, já disseram que ficam até 2010, 2011. Então a tendência é ficar, não há planos de retirada ainda. O que existe é a expectativa de uma mudança de perfil das tropas, passar de uma missão de segurança, de combate a grupos armados para uma missão que realmente ajude a reestruturar serviços básicos. Enquanto continuar assim, a missão vai continuar enxugando gelo no Haiti. E se o Brasil sair agora, os problemas que poderiam ter sido atacados vão continuar, assim como a instabilidade política e os conflitos armados. Esta já é a quinta missão de paz. O Brasil está liderando a parte militar da quinta. As outras quatro foram totalmente fracassadas.

CC: Você acha que o envio das tropas foi um erro?
AM:
Não, eu acho que foi um erro lá atrás, na força interina os EUA, Canadá, Chile e França terem tirado o Aristide de lá como se fosse ele o único culpado de todos os protestos. Peter Hallward, um filósofo norte-americano muito citado pelo Noam Chomsky para falar do Haiti, diz que essa foi talvez a intervenção norte-americana mais bem sucedida porque depois que eles saíram de lá, ficou parecendo que estavam certos quando afastaram o Aristide. Aqui, como no Iraque também, a ONU está entrando como bucha do canhão. O erro não repousa sobre a presença militar, mas sobre as intervenções anteriores.

CC: A retirada imediata das tropas é inviável?
AM:
Imediato é readequar o perfil da missão no Haiti. A retirada das tropas tem que ser num plano de saída sustentável. Em um ou dois anos, mas com a polícia nacional reestruturada, com a presença de atores que entrem em defesa da democracia e não dos interesses de um ou de outro no Haiti.

CC: O que resolveria o problema do Haiti?
AM:
É preciso ajudar o processo de desarmamento, pois ainda existem estruturas de grupos armados, de diferentes motivações. Como gangues ligadas ao narcotráfico, os ex-militares, os chimères e partidários e opositores de Aristide. A segurança institucional é frágil com esse cenário. Também é preciso ajudar na estruturação do Estado haitiano, para que instituições e serviços públicos funcionem dignamente. Mas é preciso, sobretudo, ajudar a economia do Haiti, auditando e perdoando a maior parte da dívida externa do país, que amarra a capacidade de investimento haitiano. Sem isso, o tão falado desenvolvimento econômico será uma pequena esperança, uma longa caminhada para retirar a camisa de força que o Haiti tem.”

No mapa Flickr, uma galeria sobre o Haiti

Há algum tempo tenho navegado pela ferramenta “mapa-mundi” do Flickr, uma sensação ótima de estar viajando pelos olhos dos outros. Um vouyer internético. Então, compartilho com os leitores o mapa do Haiti com as fotos atuais de lá, produzidas por profissionais e pessoas comuns. Deixo em destaque a página do fotógrafo chileno Sebastian Utreras, com ótimas imagens em preto e branco. E também Dan Gerding, com um trabalho ótimo de luz.

Pressão dos EUA sobre Aristide até para liberar projeto de água no Haiti

Um grupo de entidades de direitos humanos no Haiti acusa o governo dos Estados Unidos de fazer manobras diplomáticas para bloquear recursos financeiros que seriam usados para o abastecimento de água potável no Haiti em 2001. Isso seria, segundo eles, também uma forma de fortalecer pressões contra o regime governamental do país, à época chefiado pelo presidente Jean Bertrand Aristide. Anos mais tarde, em 2004, o presidente seria retirado do país por tropas franco-americanas. Estados Unidos e França forçariam a versão de renúncia, enquanto Aristide anunciaria que sofrera um golpe.

Em 1998, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou US$ 54 milhões para ajudar a reorganizar o sistema de água e saneamento básico. Mas nunca foram aplicados porque o governo estava sob influência de Aristide, o que desagradava ao governo norte-americano. Os movimentos obtiveram indícios dessa estratégia com informações obtidas com os requisitos da Freedom Of Information Act (FOIA), aquela lei dos norte-americanos que permite o acesso de informações de estruturas de representação pública do país.

O governo norte-americano condicionou a liberação dos recursos à um “acordo político” com o governo Aristide. Ou seja, liberaria o dinheiro do empréstimo desde que houve um “compromisso” do presidente haitiano. O e-mail que circulou na diretoria do Departamento do Tesouro também mostra que o empréstimo não seria liberado porque o embaixador não considerava o momento apropriado. A legislação do BID proíbe qualquer uso político dos recursos, mas como os Estados Unidos tinham grande porcentagem nos votos da instituição, a decisão fica nas mãos deles. O NYTimes tentou ouvir o governo e não teve resposta.


A denúncias estão no relatório chamado “Wòch nan Soley: The Denial of the Right to Water in Haiti“, elaborado pelas entidades Center for Human Rights and Global Justice (CHRGJ), Partners In Health (PIH), the Robert F. Kennedy Memorial Center (RFK Center), and Zanmi Lasante. O documento é um ótimo relato do tamanho da luta que os haitianos tem para conseguir água potável. Aliás, já tinha comentado algo sobre isso no blog (aqui e até dentro do documentário Bon Bagay). No relatório, tem um histórico interessante sobre as tentativas de recuperar o sistema de saneamento e os relatos de problemas de saúde originados da carência extrema de água por lá.

Terceira indicação para primeiro-ministro no Haiti

O presidente haitiano, René Préval, indicou o terceiro nome para assumir o cargo de primeiro-ministro de seu governo. Desta vez é uma mulher, a economista Michele Pierre-Louis, que atualmente é diretora de uma organização não-governamental. A nomeação está indefinida desde os protestos populares contra a inflação dos alimentos, época em que o ex-premier Edouard Alexis recebeu veto de censura do Senado haitiano.

René Préval

Os outros dois nomes foram recusados: Ericq Pierre, ex-dirigente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, e Roberto Manuel, ex-secretário de Segurança da última gestão de Préval como presidente. Ambos foram rejeitados por requisitos constitucionais – o primeiro não era filho de cidadãos haitianos e o segundo não comprovou que morou no Haiti nos últimos cinco anos.

Manuel, inclusive, enfrentava a oposição de movimentos sociais que o acusavam de ter comandado um massacre no bairro de Cité Soleil, em 1996, quando a ONU também mantinha uma missão no país. Algumas matérias atuais, como a da Reuters, citam que ele teve problemas políticos. A verdade nua e crua era que ele comandou uma repressão contra manifestantes e grupos armados que resultou na morte de 10 pessoas.

Justamente o período de residência no Haiti que ele não pôde comprovar ao Congresso foi o tempo em que ele ficou fora do país após a repercussão negativa da ação em Cité Soleil. Manuel é amigo pessoal de René Préval e tinha o apoio de membros da elite haitiana, que cobram uma “mão forte” para acabar com seqüestros e a violência no país. Assim, como também fazem pressão sobre os militares das Nações Unidas.

A nova indicação de Préval, a economista Michele Pierre-Louis, é diretora-executiva da ONG Fondation Konesans ak Libète (Fokal), que trabalha com projetos sócio-educativos. Seu financiamento parte de entidades da União Européia e também do “ex-megaespeculador” George Soros. O trabalho da entidade inclui incentivo à elaboração de bibliotecas, métodos educacionais de ensino fundamental e espetáculos artísticos.

Michele Pierre-Louis

Pela rede internética a voar, é fácil encontrar um texto de Pierre-Louis que discute as causas da morte do jornalista Jean Dominique, assassinado em 2000 em frente à rádio de onde transmitia seu programa às 7 horas da manhã. Sua execução foi investigada num inquérito policial cheio de inconsistências. O artigo aponta problemas políticos do país de oito anos atrás. E que veríamos se repetir. Grupos armados, assassinatos planejados e cerceamento da liberdade de imprensa.

Haiti chega à 3ª fase das eliminatórias da Copa do Mundo

Tinha me esquecido por alguns dias de acompanhar o futebol, talvez pela trajetória descendente do escrete canarinho. Mas lembrei que preciso manter a minha cobertura inédita – o único blog brasileiro que dá resultados sobre o futebol haitiano. Esse país ocupado pela crise política e por força da ONU também sonha em conquistar a vaga para sua segunda Copa do Mundo. Em 2010, na África do Sul.

Vamos lá então. O time pouco entrosado do Haiti, aquele mesmo que tinha jogado recentemente um amistoso com a Venezuela (que, por sua vez, surrou o Brasil), conseguiu empatar com as Antilhas Holandesas no primeiro jogo em Porto Príncipe. A partida aconteceu lá no estádio Sylvio Cator, aquele onde a seleção brasileira jogou em 2004. A disputa dava direito a entrar na terceira fase das eliminatórias.

O jogo de volta, em Willemstad, era vida ou morte. Os haitianos venceram por 1 a 0, o suficiente para colocá-los no grupo C, da disputa da América do Norte, Central e Caribe para a Copa do Mundo. Agora, vai jogar contra Costa Rica (time melhor), Suriname (tem futebol lá?), e El Salvador (não sei como jogam os sandinistas). Ainda é o grupo mais fácil, longe de pegar logo o México ou Estados Unidos.

Clique neste link para ver como ficou a tabela da Concacaf. Em agosto, quando os jogos voltarem, dou mais notícia do mundo futebolístico haitiano. Essa foto aí acima é da AFP durante o primeiro jogo, lá no gramado do Sylvio Cator, na região central de Porto Príncipe.

Ecos da Providência e acusações no Haiti

Após um vai-e-volta na Justiça, a Polícia Militar começa gradativamente a ocupar posições que estavam com o Exército no Morro da Providência. A transição acontece depois da pressão por conta da morte de três jovens detidos por militares e entregues no Morro da Mineira, onde uma facção rival os executou com 46 tiros. A substituição se dá com policiais militares que estavam no Complexo do Alemão. As mães dos jovens mortos se encontraram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Guanabara e enfatizaram o pedindo de saída das Forças Armadas da comunidade.

O site Contas Abertas também fez uma reportagem sobre os desencontros administrativos da atuação do Ministério das Cidades e do Ministério da Defesa no Morro da Providência. O acordo de cooperação técnica entre os dois ministérios só teria sido formalizado no final de janeiro, ou seja, depois do início da ocupação na comunidade. Um projeto de lei do senador Marcelo Crivella, que autoriza a presença de militares em projetos de melhoria habitacional em locais de risco, ainda não foi aprovado no Congresso. O site não ouviu o lado do Exército ou do Ministério das Cidades.

O “já” candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, o deputado Fernando Gabeira (PV), aproveitou para disparar contra o adversário, o senador Marcelo Crivella (PRB). Segundo ele, a execução dos jovens acabou por se tornar um crime eleitoral. “A campanha [eleitoral no Rio de Janeiro] começa manchada de sangue. Manchada com o sangue dos garotos da Providência, que foram entregues ao tráfico pelo Exército brasileiro. Manchada por culpa do presidente da República, por culpa do vice-presidente da República [José Alencar], por culpa do Marcelo Crivella. Não podemos ser cúmplices desse crime”, acusou Gabeira. “O Exército não pode se envolver num crime desse sem que haja uma lei específica.”

Aproveitando as acusações, a Folha de S.Paulo fez um texto, sem fontes em “on” (não sei o por quê?), para dizer que as Forças Armadas do Brasil também são acusadas de excessos na força de paz das Nações Unidas no Haiti. Mesmo após várias e várias tentativas de entidades haitianas de denunciar possíveis violações pelos militares da ONU, o assunto só ecoou por aqui nos jornais de grande circulação após o “desvio de conduta” do Morro da Providência. O que é investigado lá parece não ter a mesma dimensão daqui, mas muitos assassinatos de civis aconteceram nas favelas sem esclarecimentos formais.

Na última visita de Lula ao Haiti, entidades se mobilizaram para protestar contra a força da ONU e listaram o nome de quatro pessoas que teriam sido vítimas de ações violentas. Nelson Romelus, Stanley Romelus, Sonia Romelus, Lelene Mertina. E, assim como as mães da Providências, algumas entidades de lá pedem a retiradas das tropas da ONU. Estranha maneira de prestarmos atenção no problema dos haitianos.

Os olhos de Pierre Verger no Haiti

A nossa maior ligação com o Haiti é sem dúvida a diáspora africana, a origem comum dos escravos que, seqüestrados e torturados, foram trazidos para o trabalho na cana-de-açúcar. Enquanto os portugueses exploravam os negros nas plantações nordestinas, a burguesia francesa lucrava com o comércio de escravos principalmente para a colônia de São Domingos, que, posteriormente, se chamaria Haiti. A opressão sobre suas vidas não lhes exterminou os costumes e crenças, motivo de resistência cultural até hoje.

No século 20, um fotógrafo e etnólogo francês estudaria essa história dos negros e sua relação com a religião. Antes de estudar o candomblé na Bahia, Verger fez uma passagem pelo Haiti, onde registrou as celebrações do vodu. São menores os seus registros sobre o país caribenho do que a enorme bibliografia sobre o Brasil. Contudo, suas fotos registram uma frondosa e exuberante semelhança entre nossas matrizes negras. Encontrei algumas fotos digitalizadas no site da Fundação Pierre Verger, sediada em Salvador. As imagns complementam outros posts que já fiz do vodu (aqui e aqui).

Vídeos sobre a Aids… e o Haiti

A idéia era simples. A entidade “The Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria” contratou a agência Magnum Photos para registrar a mudança na vida de pessoas soropositivas de nove países que começam a receber medicamentos antiretrovirais. Mesmo que seja uma espécie de vídeo institucional da entidade, o trabalho dos fotógrafos é impressionante. Achei bem fortes as imagens. Destaco aqui o vídeo de 13 minutos que eles fizeram no Haiti, que tem o maior índice de infecção do vírus nas Américas. Nesse outro link, o trabalho completo. Cheguei ao material via Washington Post.

Atualização no dia 21/06: O Léo Caobeli, do Garapa, fez uma ponderação interessante aqui nos comentários sobre o tipo de coquetel usado pela ONG para distribuir entre os países pobres. Concordo plenamente e faço uma mea culpa. Isso mostra a força de um produto esteticamente bonito sobre nossos corpos e mentes.

Debate sobre atuação dos militares na segurança pública

Atirando para cima os impulsos ideológicos contra e favor do Exército brasileiro, o caso do assassinato dos três jovens no Morro da Providência acende uma fagulha para começar um debate mais profundo sobre a possível atuação das Forças Armadas na segurança pública do Brasil. A proposta, de longa data reivindicada nas opiniões dos cariocas, ganhou força com os relatos da atuação brasileira na força de paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah). Contudo, a morte dos três jovens coloca novo capítulo nesse debate, como podemos acompanhar a repercussão com os parlamentares nesta quinta-feira (19), em Brasília.

Na Câmara dos Deputados, a avaliação do Projeto de Decreto Legislativo 515/2008, que amplia em 100 engenheiros o contingente brasileiro na força de paz no Haiti, se tornou uma ladainha sobre o cuidado do uso das tropas militares. Aprovado por unanimidade pelas declarações das lideranças partidárias (PSDB, PT, DEM, PMDB e bloco PSB/PDT/PCdoB/PMN e PRB), a mensagem presidencial virou mote para retomar o caso do assassinato dos jovens, encontrados no Lixão do Gramacho. As lideranças do DEM, PSDB e do PSB fizeram ponderações sobre o assunto.

“Não obstante, no bojo dessa discussão, é indispensável refletirmos sobre o papel do Exército Brasileiro, em especial em função do trágico e abominável episódio do Rio de Janeiro”, falou o tucano Otavio Leite (RJ). O deputado Raul Jungmann (PPS-PE) deu um relato triste de sua visita ao Rio de Janeiro. Durante o encontro com as famílias dos jovens no Rio, ouviu de uma das mães que abriu o caixão e não reconheceu o rosto do filho morto. As 46 perfurações foram contabilizadas pelos médicos legistas do IML (Instituto Médico Legal) de Duque de Caxias (Baixada Fluminense).

Jungmann disse que, além da questão explícita dos direitos humanos, o caso do Morro da Providência levanta uma “questão política”. “Em primeiro lugar, a matriz desse e de outros erros advém do fato que até hoje a chamada garantia da lei e da ordem (GLO), que são atribuições subsidiárias das Forças Armadas, não foram regulamentadas, passados são 10 anos que tivemos nossa nova Constituição”, disse. Esse tema discuti aqui no blog no post “O Exército pronto para atuar. O que diz a lei?

O deputado pernambucano ainda comunicou em plenário que a Comissão de Segurança decidiu criar duas subcomissões. Uma para acompanhar a investigação sobre o Morro da Providência e a segunda para aprofundar para discutir um projeto de lei complementar que regulamente a GLO, “que é imprescindível porque quando se trata de instituições nacionais permanentes como Exército [não pode haver] a sua utilização casuística, a sua utilização pontual, e sua eventual politização”, enfatizou.

O teor do projeto é o mesmo que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, tem prometido para o final do ano. A mesma discussão tinha sido bloqueada no peito pelo ex-ministro Waldir Pires, que discordava da atuação das Forças Armadas nas cidades brasileiras, apesar dos sucessivos pedidos do governador Sérgio Cabral. A subcomissão precisa se abastecer nos inúmeros estudos do Ministério da Defesa, do Exército e de organizações não-governamentais para avaliar o impacto de mudanças na legislação para ações da garantia da lei e da ordem. Qual o tamanho do mandado que o Exército pode ter nesses momentos?

Com toda a discussão, o projeto do governo, apoiado pelas Forças Armadas, de ampliar a companhia de engenharia brasileira na força de paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah) foi aprovada na Câmara dos Deputados. Segue agora para o aval do Senado Federal, depois, da sanção do presidente Lula. Para comentar rapidamente o estágio atual a missão de paz, a decisão não deixa de significar também um pleito antigo dos haitianos para ajudar as necessidades básicas da população. E um passo, pelo jeito a longo prazo, para começar a mudar o perfil da atuação das tropas.

Morro da Providência e a ética do capitão Nascimento

Wellington Gonzaga de Costa, de 19 anos, Marcos Paulo da Silva Correia, de 17, e David Wilson Florêncio, de 24. São esses os nomes dos três jovens do Morro da Providência que foram assassinados por traficantes de uma favela vizinha após terem sido entregues de bandeja por militares do Exército. Os fatos, investigados pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, acabaram por se tornar a quinta parte da série “Haiti e Rio de Janeiro, campos militares brasileiros”. Sobretudo porque “desvios de conduta” como esses racham as diretrizes gerais da segurança pública e dos direitos humanos.

O que os militares fizeram com os três jovens afirma a ética do Capitão Nascimento, protagonista polêmico do filme Tropa de Elite. Dividir o mundo em dois: bandidos e corruptos de um lado e agentes eficientes e eleitos da ordem para o outro. Em nome dela, os fins justificam os meios. Como discuti em “A fina navalha da força militar”. A tese do capitão do Bope admite tortura com saco-plástico ou a entrega de “suspeitos” a uma facção rival no Morro da Mineira. O desfecho da oferta aos traficantes nesse caso era certo. Iriam matá-los. Com isso, os militares teriam incentivado a execução dos jovens.

Os detalhes da investigação da polícia civil apontam que pelo menos três militares confessaram a entrega dos jovens a traficantes da facção . No Instituto Médico-Legal (IML) de Caxias, constatou-se que o adolescente de 17 anos foi executado com dois tiros e os outros dois jovens, com cerca de 20 cada. A maioria dos tiros foi feita no rosto. Após o enterro dos jovens nesta segunda-feira (16), moradores protestaram em frente à sede do Comando Militar do Leste. Há quem diga ainda que moradores criticavam o Exército a mando dos traficantes, mas com esse fato fica difícil acreditar nessa versão.

Agência Estado

O trabalho do Exército na região é uma ação subsidiária (prevista constitucionalmente) por um acordo com o Ministério das Cidades para o programa Cimento Social, que prevê a execução de obras em residências no valor de R$ 12 milhões. O grupo que atua no Morro da Providência advém, em sua maioria, da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada, grupamento que cedeu no ano passado um contingente que atuou na força de paz do Haiti. Inclusive um de seus comandantes, o general Williams José Soares. Havia semelhanças com a ação da Minustah até na realização de ações cívico sociais (acisos).

No Morro da Providência, os militares do Exército estavam desde dezembro. A chegada do grupo aconteceu também em meio a um outro impasse. Diante da dominação do morro por traficantes do Comando Vermelho, moradores rejeitavam a presença dos militares por temerem confrontos maiores. Souberam da participação do Exército no programa Cimento Social somente no dia em que as tropas desembarcaram na comunidade. O projeto é de autoria de um ex-oficial do Exército, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que, segundo reportagem de O Globo, também fez segredo da ação militar.

Em 2006, a mesma comunidade havia passado por uma ocupação do Exército para a tentativa de recuperação de dez fuzis roubados de um quartel. À época, a ação também foi criticada por moradores e aplaudida pela classe média da capital. Um cabo fuzileiro naval desertor, Evanilson Marques da Silva, o Dão, foi investigado por ligação com o tráfico de drogas no morro. A ação gerou diversos tiroteios entre traficantes e militares. As armas foram recuperadas ao final e o Exército deixou a favela.

Há excessos e desvios de conduta em toda e qualquer categoria profissional, como médicos, advogados, jornalistas e militares. Mas não quero escrever sobre porcentagens ou probabilidades. O fato é que os reconhecidos “desvios de conduta” mostram que muitas vezes há um despreparo semelhante entre integrantes das Forças Armadas e os policiais militares que atuam no Rio de Janeiro. A ética do enfrentamento do crime transcende organizações. A discussão sobre o uso das Forças Armadas em conflitos urbanos também precisa ser feita nesses parâmetros.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, classificou os fatos como um “caso isolado de personagens absolutamente irresponsáveis”. Na semana passada, ele reiterou que o projeto para a criação de uma legislação específica para a atuação direta das Forças Armadas em situações de conflitos urbanos deve ser encaminhado ao Congresso Nacional até o final deste ano. “A última grande ação neste sentido ocorreu em 1994, no Rio. Mas o que restou dessa operação? Temos tenentes, sargentos e cabos respondendo a processos na Justiça, sob alegação de atos criminais. E o pior, eles têm de pagar pelo trabalho de advogados de defesa. Ou se muda isso ou não tem conversa.”

A questão é se o país conseguirá amadurecer um sistema de vigilância humanitária até lá para conter “desvios de conduta”. Porque nem de perto teremos a estrutura fiscalizadora que as Nações Unidas mantêm no Haiti, ainda que não sejam onipresentes e infalíveis. Ou correrão o risco de se tornar mais uma força armada no jogo conflituoso do tráfico, do poder e da violação dos direitos. Tal como os militares tentam combater tanto em Porto Príncipe. Agora, é saber como serão julgados os envolvidos, réus confessos. Se na Justiça comum ou na Justiça Militar.

O abade francês contra a escravidão negra

Aproveito a retomada do blog para fazer um complemento ao texto que escrevi na Revista História Viva sobre a independência haitiana e a luta contra a escravidão. É um capítulo francês deste momento. É a repercussão das idéias libertárias de um abade francês, chamado Henri Gregóire, que condenava o tráfico negreiro, o preconceito racial e a postura autoritária sobre a colônia de São Domingos.

O francês nasceu em 1750 em Veho, Lorraine. Foi ordenado em 1775. Na convocação dos Estados Gerais (organização formada por integrantes da nobreza, do povo e do clero), em 1789, nas margens da Revolução Francesa, Gregóire foi eleito deputado. Por sua atuação, foi essencial para o fim das subvenções do governo francês ao comércio negreiro e, posteriormente, pela abolição da escravatura nas colônias.

Manteve freqüente correspondência com o líder haitiano Toussaint Loverture, que comandou a maior parte da chamada Revolução de São Domingos, o marco da independência do Haiti. Gregóire se opôs violentamente à força expedicionária de 1801, encarregada de restabelecer a escravidão nas Antilhas. O exército de Napoleão enviado para a ilha de São Domingos sofreu uma devastadora derrota da rebelião dos negros.

Desde 1789, o abade fez parte da Sociedade dos Amigos dos Negros, instituição que difundia idéias abolicionistas. Vale lembrar uma de suas citações na abertura do livro “De littérature dês Nègres”, inspirado nas ações da entidade, em que cita uma longa lista de intelectuais e personalidades de pensamentos abolicionistas de diversos países europeus e dos Estados Unidos. Mas nenhum de Portugal. Segundo ele, a metrópole lusitana ignorava os negros como parte da humanidade.

Vários autores já escreveram sobre o abade francês. Navegando pela internet dá para encontrar o artigo do professor Marco Morel, do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sobre Gregóire. O historiador nos lembra a célebre frase que o abade disse pouco antes do início da Revolução São Domingos. “(…) que um dia nas costas das Antilhas o sol iluminará homens livres e que os raios do astro que espalha a luz não cairão mais sobre ferros e escravos”.

Também achei um site traduzido para o português “A Rota das Abolições da Escravidão e dos Direitos Humanos” que traz um resumo da história dele, como exemplo da luta contra a abolição junto com Toussaint Louverture, Victor Schoelcher e os habitantes de Champagney. De lá, reproduzo o trecho da negociação entre Haiti, ex-colônia, com a Franca, ex-metrópole, pelo reconhecimento da independência.

“Em 1825, quando os representantes de Haiti chegam a Paris para cobrar o reconhecimento da independência do seu país pela França, fica proíbido – pelas autoridades francesas – todo e qualquer encontro com Gregoire. Desafiando a interdição oficial, os haitianos vão se inclinar ao pé de quem tinha sido proclamado o amigo dos homens de todas as cores.”

Militares da Amazônia no Haiti

O nono contingente brasileiro da força de paz das Nações Unidas no Haiti já começou a atuar. É a primeira vez em que a origem do grupamento enviado tem sua base na Amazônia, cujo comando militar está nas mãos do general Augusto Heleno, primeiro force commander da atual missão no país caribenho.

No site da Defesa, o general explica que mandar tropa de selva para o Haiti era uma aspiração antiga. “O combate na selva é uma realidade diferente do cenário urbano do Haiti. Os nossos militares terão uma boa oportunidade de treinamento e será uma experiência fantástica para eles”, disse.

Os militares que compõem o 9º contingente trabalharão no Haiti até dezembro. O 8º contingente, que deixou o país este mês, era formado por militares do Comando Militar do Leste. O próximo contingente, que chegará ao país em dezembro, será integrado por militares do Comando Militar do Nordeste.

A violência semelhante entre Brasil e Haiti

Assim é a situação diante dos resultados de uma metodologia apresentada pela Vision Humanity, na Inglaterra, que compila em indicadores um ranking da violência pelo mundo. No caso da América Latina, Colômbia, Venezuela e Haiti estejam classificadas na categoria “situação de paz muito baixa”, o Brasil está bem perto. A diferença no Índice Global de Paz 2008 entre as posições do Haiti e do Brasil são de 19 posições. Apesar de estar na pior situação, a posição haitiana está mais próxima da brasileira do que da colombiana, o pior quadro latino-americano. A metodologia do estudo não responde, porém, qual o impacto da atuação da ONU no Haiti e da política de segurança pública brasileira.

Haiti, por Sérgio Ranalli

Durante os protestos dos haitianos contra o aumento do preço dos alimentos, um fotógrafo brasileiro estava lá para registrar as imagens. Era Sérgio Ranalli. Em seu blog, ele conta um pouco de sua viagem. Vale dar uma olhada. Destaque para uma série que ele fez sobre a fome e a variedade das comidas. No caso dos protestos, as fotos estão bem focadas nas tropas da ONU. Aliás, não consegui ver quem tivesse ouvido o grupo organizador dos protestos para explicar mais detalhadamente as ações. Ele escreveu um belo depoimento sobre o olhar das crianças.