Crime de guerra, sim, na Colômbia de Uribe

Os fins justificam os meios no país dos sonhos de Uribe. Para recuperar a ex-candidata Ingrid Betancourt das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e realizar um “resgate cinematográfico” (nas palavras do ministro da Defesa da Colômbia), os militares que atuaram na operação se fantasiaram de defensores do direito humanitário internacional – aquele que fala do direito e dos deveres dos combatentes e das vítimas de guerra, regulado pela Convenção de Genebra. Antes divulgado oficialmente como um “disfarce”, agora o crime foi reconhecido pelo próprio presidente Álvaro Uribe. O anúncio foi feito por ele, seguido por um pedido de “desculpas”.

Segundo reportagem da BBC, Uribe reconheceu que, por um “erro” e por “nervosismo”, um membro da equipe militar utilizou sobre sua roupa o símbolo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) durante o resgate dos reféns que estavam em poder das Farc. Mas qual o problema disso?, pergunta alguém pelo mundo blogueiro-internético. Respondo. Em tempos de guerra, conflitos armados ou violência extrema, a Convenção de Genebra estabelece regras de respeito às vítimas (militares ou civis). Uma delas é o direito ao atendimento médico e socorro. Feito inclusive por entidades imparciais, que não tomam parte no conflito justamente para preservar esses direitos.

É crime de guerra usar os símbolos dessa ajuda humanitária (no caso as cores branca, vermelha e o símbolo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha) para atacar o inimigo. O que diz a lei? “Cada Estado Parte às Convenções de Genebra tem a obrigação permanente de adotar medidas para coibir e reprimir qualquer abuso do emblema. Cada Estado deve, em particular, formular legislação destinada à proteção dos emblemas da cruz vermelha e do crescente vermelho. Qualquer uso que não seja expressamente autorizado pelas Convenções de Genebra e seu Protocolos Adicionais constitui um abuso do emblema”.

Ah… e mais: ” O uso do emblema da cruz vermelha e do crescente vermelho em tempos de guerra para proteger combatentes armados ou equipamento militar (e.g., ambulâncias ou helicópteros marcados com o emblema e usados para transportar combatentes armados; depósitos de munição disfarçados com bandeiras da cruz vermelha) é considerado um crime de guerra”. Eu já tinha escrito sobre o caso no blog (aqui e aqui), mas não havia a confirmação de crime. Uma jogada de cinema, realmente. Fingir ser ajuda humanitária enquanto executa uma missão militar. Usando o figuro do CICV, o mesmo que se propôs a fazer o transporte dos reféns à época da negociação com o presidente venezuelano Hugo Chávez.

O CICV repudiou o uso do emblema na operação, mas não fez nenhum pronunciamento público contra o presidente Uribe. Agora, com o reconhecimento público do governo colombiano está dada a condição para se iniciar até para um processo internacional. Como a Colômbia é signatária de convenção internacional, pode ser julgada, sim, pelo Tribunal Penal Internacional. Mesmo depois das desculpas e do anúncio do CICV de que não haverá iniciativa de processo contra Uribe.

Guerrilheiro da Farc acusa crime de perfídia

É a primeira declaração de um representante dos guerrilheiros das Farc após a operação de resgate de Ingrid Betancourt, na Colômbia. Por meio de um advogado, o guerrilheiro Gerardo Antonio Aguilar, nome verdadeiro de “César” que foi detido na operação, disse que viu o emblema do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) nos militares disfarçados. A reportagem da EFE dá a versão do guerrilheiro, mas não explica o motivo da declaração. Como apontei aqui no blog, a situação é a suspeita de crime de perfídia, uma violação da Convenção de Genebra que trata dos crimes de guerra.

As descrições anteriores dos oficiais e da imprensa sobre a operação falam que os helicópteros usavam apenas pintura branca e vermelha, o que induz a pensar em organizações não-governamentais, como CICV. Mas não havia relatos do uso dos emblemas oficiais, o que configuraria crime de perfídia. O Comitê nega que tenha recebido qualquer solicitação ou tenha participado da operação. O guerrilheiro acusa que havia o uso dos emblemas, embora a reportagem não aponte onde ou em quem. Pode ser até um blefe bem dado do advogado de Aguilar, diante de alguns indícios.

Atrás dessa notícia, entrevistei Tarciso Del Maso Jardim, um brasileiro, consultor do Senado para assuntos de direito humanirário internacional e direitos humanos, que mora atualmente na França. Por e-mail, conversamos sobre os limites da operação e a possível configuração de abuso do uso do emblema “civil”, “imparcial”, para “socorro de vítimas de guerra”, por um grupo militar. Segundo ele, a operação mostra que houve uma atuação no “limite da legalidade”. E, ao que parece, estavam muito bem orientados para esse limite tênue. A seguir o comentário dele.

O governo colombiano atuou no limite da legalidade para descaracterizar o resgate da Ingrid Betancourt e dos demais reféns do crime de perfídia. Originalmente previsto para conflitos armados internacionais, o crime de perfídia se diferencia das permitidas artimanhas de guerra, pois são atos dissimulados destinados a enganar o adversário com a finalidade de matá-lo, feri-lo ou capturá-lo. Por exemplo, disfarçar-se de pessoa protegida pelo direito internacional humanitário para tal fim seria perfídia, como seria o caso se militares colombianos se disfarçassem de membros de organização da sociedade civil e ocultassem helicóptero militar sob cores civis, similar ao feito, porém para atacar os guerrilheiros. Esse tipo penal é incorporado pelo direito colombiano (artigo 143 do Código Penal colombiano) e estendido a todos os conflitos armados, inclusive os internos, e seria o ato de combate com objetivo de causar dano ou de atacar o adversário mediante uso de sinais protetores como a cruz vermelha ou simulando ser pessoas protegidas pelo direito internacional. Entretanto, o objetivo do exército colombiano não foi matar ou causar dano ao inimigo, mas salvar reféns, o que constitui a interrupção de outro crime internacional. Os soldados rendidos pelo exército na operação não eram o alvo desta, não houve esse dolo e o direito penal não admite esse tipo de analogia. Mas importa corrigir o veiculado pelas fontes oficiais, de que os demais guerrilheiros, que estavam no local do resgate e não adentraram o helicóptero de salvamento, não foram mortos somente porque isso prejudicaria a liberação de outros reféns, pois, na verdade, se o exército colombiano os atacasse estaria cometendo o crime de perfídia. A seguir o divulgado, parece que estavam muito bem orientados para atuar no limite da legalidade.

Resgate de Ingrid e crime de perfídia

A partir da notícia da libertação da ex-candidata à presidência colombiana Ingrid Betancourt, o que se seguiu pelos sites e jornais do mundo foi uma série de informações apressadas sobre os detalhes da operação. Apenas no dia seguinte, começaram a aparecer mais detalhes do resgate. O que me intrigou de cara foi como os militares colombianos teriam manipulado os rebeldes para levá-los a um helicóptero desconhecido. Depois, li que eles tinham infiltrado agentes na cúpula do movimento. Agora, passados alguns dias, com versões divulgadas e desmentidas, há algum balanço “oficial” do que foi a operação (veja infográfico do G1).

Não acho defensável nem apoio a luta armada paraestatal das Farc na Colômbia, além de sua ligação com o narcotráfico e sua metodologia de seqüestros para arrecadar dinheiro. Mas também não posso deixar de comentar que o resgate de Ingrid Betancourt, organizado pelo Ministério da Defesa da Colômbia, violou uma das convenções de Genebra – aquela que dispões sobre crimes de guerra. O uso de um helicóptero, pintado de branco e vermelho (embora sem nenhum emblema de organização humanitária, como aparece nas imagens), traveste a aeronave como civil. Isso constitui um uso impróprio do significado imparcial de ações humanitárias.

Os militares colombianos infiltrados teriam conseguido convencer os guerrilheiros a reunir os reféns num só grupo, pois estavam em três células diferentes. Um helicóptero militar simulava o transporte de uma ONG “fictícia” e levaria todos os reféns para o sul do país, onde estaria o atual líder Alfonso Cano. Na verdade, a aeronave era dos militares. O grupo renderia os rebeldes e resgataria 15 reféns. À época da negociação da libertação de reféns por intermédio do presidente venezuelano Hugo Chávez, a “ong” que faria o transporte com princípio humanitário (logo imparcial), seria o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

O uso do branco e vermelho é referência clara a serviços médicos e humanitários em tempos de guerra. Usá-lo numa operação dessa deve ser, no mínimo, explicado pela autoridades. Apesar de que a Colômbia já tem histórico de violações: já invadiram o território soberano de outro país, o Equador, para executar rebeldes; que já tinha sido acusado do mesmo crime de perfídia nesta operação; que até pactuaram com a invasão do espaço aéreo brasileiro por um avião francês, em 2003, numa outra tentativa de resgate de Igrid. São precedentes ruins para a negociação de processos de paz e, principalmente, para quem defende as vítimas. De qualquer lado da guerra.