A redescoberta de Ary Barroso

No centenário do compositor, enfim sua obra musical é catalogada completamente

Aloisio Milani
Site Ciranda Brasil

Não dá para ouvir a história da música brasileira sem ele. Não mesmo. Ary Barroso cravou suas composições na seleção das principais canções populares. Brasileiras e mundiais. Duas delas, Aquarela do Brasil e Na baixa do sapateiro estão entre as vinte mais gravadas do mundo. Em 2003, Ary Barroso faria 100 anos, não fosse uma cirrose que lhe causou a morte no dia 9 de fevereiro de 1964. Quase quatro décadas de saudade que passaram à história ao som de músicas que não caducam.

Ary Barroso foi destaque numa época em que o rádio e o cinema eram gigantes. Quando as grandes orquestras dominavam os salões. No tempo em que o samba começava a sair do gueto. Ary foi músico, compositor, jornalista e político. Era explosivo, cético, irônico e, em certa medida, um conservador. Amante do Flamengo, torcia descaradamente. Incorrigível torcedor mesmo durante as transmissões de rádio.

As comemorações do nascimento de Ary Barroso já começaram. O ministro da Cultura Gilberto Gil montou uma Comissão Nacional para selecionar celebrações do centenário. No grupo, estão o escritor e imortal Antonio Olinto e a própria filha de Ary, Mariúza Barroso Salomão. Diversos shows serão montados pelo país com repertório de Barroso. Marília Pera já estreou um espetáculo em Fortaleza e Wagner Tiso também organiza um para o segundo semestre em Belo Horizonte.

O escritor Antonio Olinto anunciou o lançamento pela editora Mondrian de um ‘livro-exaltação’ à vida e obra do compositor: ‘Ary Barroso – uma paixão brasileira’. O Prêmio TIM, uma reedição do extinto prêmio Sharp, também será inaugurado com homenagem ao Ary. Existe ainda o projeto da construção de um memorial na cidade mineira de Ubá, onde nasceu o músico.

Embora a festança já tenha começado, duas grandes partes da obra de Barroso ainda estão sem rumo. Tanto o acervo pessoal, pertencente à filha Mariúza, quanto a discografia completa, levantada pelo pesquisador Omar Jubran, estão sem previsão para chegar ao público por falta de patrocinadores e parceiros. Sem eles, com certeza teremos muita pompa para pouca coisa. O que interessa, a obra de Ary, continuaria restrita aos armários e velhos sebos.

Garimpeiro de Arys

Ele não faz parte do clube dos pesquisadores e músicos famosos. É, para muitos, somente mais um professor de biologia no ensino médio. Mas Omar Jubran aguarda ansioso a divulgação de uma pesquisa que fez por longos dez anos e que estaria, segundo qualquer critério do patrimônio cultural nacional, entre as principais relíquias brasileiras: a discografia original completa de Ary Barroso.

Autor da conhecida coleção ‘Noel pela primeira vez’, lançada a partir da parceira da gravadora Velas e da Funarte, Jubran conseguiu reunir em 14 CDs as exatas 228 canções das 259 listadas pelos pesquisadores João Máximo e Carlos Didier no livro ‘Noel Rosa, uma biografia’. O trabalho de Omar Jubran é conhecido entre os fanáticos pela música como a coleção definitiva do sambista de Vila Isabel.

Na vida do pesquisador, a busca pela obra de Ary Barroso é anterior à de Noel Rosa. ‘Quando a caixa do Noel Rosa ficou pronta entre 97 e 98, a pesquisa do Ary já estava correndo em paralelo há uns quatro anos. Isso dá dez anos de pesquisa’, calcula Jubran, que percebeu desde o começo que Barroso lhe daria muito mais trabalho. ‘Foi muito mais difícil porque não havia um levantamento rigoroso como o do Noel Rosa, embora houvesse duas biografias ( No tempo de Ary Barroso , de Sérgio Cabral e Recordações de Ary Barroso , de Mário Moraes)’.

Jubran, um rato de sebo começou quase do zero a procura do que nomeia de ‘discografia original’, ou seja, as primeiras gravações das músicas. ‘Não é musicografia, que reúne tudo que foi gravado dele’, explica. Nessa busca, conheceu uma grande colaboradora, a jornalista norte-americana Daniella Thompson, especialista em música brasileira (veja o site).

No saldo final, Jubran contabilizou 308 músicas de Ary Barroso que foram lançadas em disco. Desde a primeira gravação de Aquarela do Brasil , em 1939, interpretada por Francisco Alves com arranjos de Radamés Gnatalli até um jingle para a campanha de Jânio Quadros em 1960. ‘A obra dele vai do 78 rotações até o LP, mas não há um catálogo anual para se buscar as músicas. Tive que garimpar com colecionadores, sebos e pesquisadores’, afirma.

Depois de toda pesquisa, Jubran estima que Barroso tenha mais de 500 músicas gravadas no Brasil, embora esse não tenha sido seu foco. ‘Pelo caminho encontrei muitas informações duvidosas. Tenho, por exemplo, um depoimento do Murilo Caldas, irmão do do Sílvio Caldas, dizendo que tinha gravado, pelo selo Parlaphont, a música ‘Desilusão’, de Ary Barroso. Mas não há nenhuma referência nos catálogos brasileiros’, diz.

Todos os pesquisadores, inclusive Jubran, são unânimes ao dizer que a primeira gravação de uma música de Ary foi Vou à Penha , cantada por Mário Reis em 1928. O compositor, porém, já trabalhava desde os 19 anos como pianista para cinemas que exibiam filmes mudos. Depois que estreou como compositor, não parou mais. No mesmo período, escreveu Amizade , Tu queres muito , Não vou lá , Amor de mulato , Segura a fazenda , O tal bichinho e Vamos deixar de intimidade.

Conhecedor da totalidade da obra, Jubran prefere as músicas de Ary nas interpretações de alguns cantores. ‘Isso é um critério muito pessoal, mas adoro as letras nas vozes do Francisco Alves, do Mário Reis, da Elisa Coelho ( mãe do apresentador Goulart de Andrade ), Araci Cortes e Carmen Miranda. Acho também que No rancho fundo com o Sílvio Caldas é um clássico’, confessa o pesquisador que deixa claro que aquelas músicas fazem parte de outro contexto, portanto de outro critério.

‘Temos que respeitar as épocas. Em meados do século passado, tínhamos verdadeiras orquestras gravando com os cantores. Isso é um costume que não temos mais. O gosto é bem pessoal nesse sentido’, diz Jubran.

Das músicas pesquisadas, somente seis ainda não foram encontradas e, provavelmente, estão perdidas. São raras porque fazem parte de pequenas tiragens ou são interpretadas por artistas pouco conhecidos. São elas: Quero descansar , por Januário de Oliveira; Chiquinha e Dona Catarina , por Palitos; Sabiá de sinhá moça e Não quero você , por Norma Bruno; e a singular Cruel Resistência, que Ary compôs com o ouvinte Irassé N. Silva, ganhador do concurso ‘Seja parceiro de Ary Barroso’.

A gravadora Velas, a mesma que lançou a caixa de Noel Rosa, também quer produzir os discos completos de Ary. Segundo Jubran, ‘há o interesse deles, mas estão procurando patrocínios para o material pelas leis de incentivo à cultura. O material todo teria, pelo menos 20 CDs e seria ótimo se fosse lançado até o fim do ano’. Teríamos que esperar alguma empresa se interessar. E tomara que não fique só para os clientes da mesma.

Publicada originalmente em: http://cirandabrasil.net/
02/06/2003