Aloisio Milani
Repórter da Agência Brasil
Brasília – Além do projeto de nação desenvolvido pelo governo João Goulart, o golpe militar de 1964 também rompeu com o amadurecimento das relações exteriores do Brasil, desenvolvido na época no interior do Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores havia consolidado na época uma postura que livrava o país de seguir automaticamente qualquer um dos lados que dividiam a hegemonia mundial, Estados Unidos e União Soviética. O que não significava ausência de relações com nenhum deles. Essas orientações, iniciadas no governo Jânio Quadros, formaram a “política externa independente”, posteriormente interrompida e redirecionada pela ditadura.
Historiadores enxergam a política externa de 1961 a 1964 como mais um ingrediente que levou ao golpe. Em muito, causado pelo temor de que o Brasil seguisse os passos da revolução dos “barbudos” de Fidel Castro, em Cuba. Segundo o cientista político René Armand Dreifuss, em seu livro “A Internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional”, as “elites orgânicas articularam-se internacionalmente para desestabilizar o governo Goulart, cuja política exterior provocava aversão”.
Como a política internacional reflete na essência a própria política interna, os militares golpistas optaram, em primeiro lugar, por um desenvolvimento contrário ao que Jango propunha. “Mais do que um simples golpe, os militares optam por um modelo conservador de desenvolvimento em clara contraposição ao projeto reformista da esquerda”, diz o historiador Antonio José Barbosa, autor da tese “O Parlamento e a Política Externa Brasileira (1961-1967)”.
Os princípios da política externa independente (PEI) foram sistematizados essencialmente por três intelectuais que comandaram a chancelaria desde Jânio Quadros até a vitória do golpe. San Tiago Dantas, Araújo Castro e Afonso Arinos de Melo Franco. O primeiro deles publicou um livro pela editora Civilização Brasileira sobre as idéias da PEI no auge dos acontecimentos, em 1962.
As bases da PEI estabeleciam a recuperação dos princípios de “não-intervenção e autodeterminação”, a ampliação dos mercados para o país e o “apoio à descolonização e a auto-formulação de planos de desenvolvimento” de acordo com as regras democráticas internas. “A posição internacional de nosso país tem evoluído de forma consistente para uma atitude de independência em relação aos blocos político-militares existentes, que não deve ser confundida com outras atitudes comumente designadas de neutralismo ou terceira posição”, escreveu San Tiago em seu livro.
“Nessa época, houve um início de contato com algumas das mais importantes lideranças do mundo para se criar um pólo alternativo. Em 1961, como resultado da Conferência de Bandung, surgiu o movimento dos países não-alinhados com Josip Broz Tito (Iugoslávia), Gamal Abdel Nasser (Egito) e Jawaharlal Nehru (Índia). No Brasil, o governo Jânio Quadros se aproxima desses ideais”, explica Barbosa. A cidade de Bandung, na Indonésia, ficou conhecida em 1955 por receber representantes de 29 países da África e Ásia, unidos por um mesmo questionamento: qual seria o lugar do terceiro mundo diante da polarização entre norte-americanos e soviéticos?
O Itamaraty criou a divisão para assuntos da África, até então inexistente, aumentou suas representações diplomáticas e restabeleceu as relações com a União Soviética. No mesmo ano do encontro em Bandung, o ministro Arinos foi o primeiro a chamar a atenção na Organização das Nações Unidas (ONU) para outra “divisão do mundo” que não só norte-americanos versus soviéticos – a entre “ricos e pobres”.
O Brasil apoiou o processo independência da Argélia e de Angola, contrariou os Estados Unidos sobre o bloqueio e a possível intervenção em Cuba. Na Conferência de Punta Del Este, no início de 1962, o governo brasileiro deu sua cartada aos países da América. O ministro San Tiago Dantas declarou que o Brasil assumia uma postura não-alinhada aos norte-americanos. A derradeira para o desagrado das elites conservadoras.
No Congresso, parlamentares atacavam os ministros. Nas audiências de esclarecimento da política, os diplomatas eram questionados sobre a incompatibilidade de ser “subdesenvolvido” e “independente”, acusando-os de aproximação com a “ameaça vermelha”. O deputado Arruda Câmara, por exemplo, em sessão de agosto de 1962, acusou o governo brasileiro, na figura de San Tiago Dantas, de estar “distanciando dos sentimentos da maioria do povo brasileiro, que não aceita de bons olhos essa política de mão estendida” ao comunismo.
Dantas, em contrapartida, atacou: “Quanto a saber se o Ministro das Relações Exteriores pratica a política que quer o povo, peço licença para dizer que não considero que nenhum governo, que nenhum partido, que nenhum deputado isoladamente, possa irrogar-se o privilégio de representar os sentimentos do povo brasileiro”. Somente quem o pode fazer, para o ministro, é o Congresso Nacional.
Os discursos dos ministros se transformavam em manifestos em defesa de uma nova posição nos diversos assuntos do contexto mundial. Leia abaixo trechos dos pronunciamentos dos ministros Afonso Arinos (janeiro a setembro de 1961 e julho a setembro de 1962) e San Tiago Dantas (setembro de 1961 a julho de 1962) em sessões na Câmara dos Deputados. Os depoimentos foram reproduzidos das edições do Diário do Congresso Nacional:
Independência X subdesenvolvimento
“Acho que podemos ter uma atitude independente embora sejamos um país subdesenvolvido. É preciso firmarmos a nossa independência no campo internacional para possibilitar o nosso desenvolvimento. Essa deverá ser a nossa atitude. Entre as razões pelas quais procuramos fazer política independente está a necessidade de sairmos dessa etapa miseranda de subdesenvolvimento. Se formos esperar ser um país desenvolvimento para nos tornarmos independentes chegaremos à conclusão de que não alcançaremos nunca esse estágio. Nunca podermos usar nossa soberania em benefício do nosso desenvolvimento, partindo do princípio de que um país estrangeiro jamais tem atitude de caridade no sentido de desenvolver a economia de outro país (…)”
(Ministro Afonso Arinos, 1961)
Auto-formulação do desenvolvimento
“O que penso é que o Brasil vem mantendo o princípio de que não deseja dividir com nenhum país responsabilidades na orientação dos seus problemas de governo e na adoção de suas soluções, mas tem procurado ajustar condições de cooperação internacional bastante eficazes e em escala correspondente às nossas necessidades.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)
Política externa não se separa da interna
“Considero que a política externa não é separável do conjunto da política realizada num país. Por conseguinte, é indispensável que, ao mesmo tempo que afirmamos nossa independência na nossa vida econômica, [tenhamos] uma política que seja realmente de fomento da emancipação nacional. Acredito, entretanto, que a política externa nos dias de hoje tem em grande parte esse papel pioneiro, talvez porque a definição da posição dos povos vem em grande parte da sua posição no exterior.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)
Conferência de Punta Del Este
“É verdade que se discutiu muito, aqui em nosso país, se a política brasileira, sobretudo depois de Punta Del Este, era ou não era do agrado do Departamento de Estado (dos Estados Unidos). Confesso que não julguei jamais do que meu dever apurar o ponto, pois realmente só desejo saber se a política exterior do Brasil era do agrado da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Se ela é do agrado dessas entidades, ela aduz a opinião do povo brasileiro e será, pelo menos, cumprida a honra de dirigir o Itamaraty.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)
Auto-determinação
“O que é necessário é que não tomemos a posição indiferente e passiva de nos limitarmos a dar o nosso apoio às posições polêmicas em que uma das grandes potências nucleares se venha a colocar, e, sim, que ponhamos a nossa fé, o nosso espírito pacifista e a nossa capacidade de compreensão a serviço da única causa que verdadeiramente remunera: a causa da paz, aquela que nos conduz a encontrarmos, pouco a pouco, o caminho da segurança onde possa de fato florescer o mundo que desejamos viver.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)
Fonte: Agência Brasil (2004)
https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-04-05/em-64-diplomacia-brasileira-tambem-foi-interrompida