No Brasil, ainda há quem faça vistas grossas ao trabalho infantil ligado à indústria, ao comércio e à agricultura. Conheça formas de sua empresa não compactuar com ele
Aloisio Milani
Revista Melhor – Gestão de Pessoas
O trabalho infantil persiste no Brasil. Crianças e adolescentes, proibidos por lei de trabalhar antes dos 16 anos, continuam a enfrentar serviços e empreitadas em diversos setores. Essa violação trabalhista resiste, sobretudo, dentro das famílias, na informalidade e na terceirização. O desafio é encontrar formas de monitorar as etapas de produção para evitar que o trabalho infantil esteja na cadeia produtiva das empresas.
De acordo com a última edição da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, existem 5,1 milhões de meninos e meninas trabalhando. Os dados mostram que a situação melhorou em relação à calamidade existente décadas atrás, quando eles eram encontrados irregularmente dentro das próprias empresas como parte do contingente normal de funcionários. São raríssimas essas situações hoje em dia.
Nos últimos anos, o país demonstrou que conseguiu dar importantes passos na escalada do combate ao trabalho infantil. Ao longo de 11 anos, entre 1995 e 2006, o percentual de crianças e jovens que trabalhavam baixou de 18,7% para 11,5%. Especificamente na faixa etária de 5 a 9 anos, o Brasil conseguiu reduzir os casos mais de 50%. Nem por isso a responsabilidade é menor.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o alerta continua porque a luta no ambiente familiar, na informalidade e na terceirização demanda novo fôlego e novos métodos. Os índices brasileiros melhoraram, mas é evidente que o grande número ainda exige que a sociedade, as empresas e o governo adotem ações para a erradicação dessa violação de direitos (veja BOX o que diz a legislação sobre trabalho infantil).
“No Brasil, o trabalho infantil resiste amplamente pela porta da informalidade. Temos um grande número de famílias nessa situação, em que a criança é a parte mais vulnerável, por ela ser, claro, especial em sua fase de formação”, explica Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
E, dentro das casas, na maioria das vezes de pessoas pobres, a criança trabalha e não existe fiscalização possível a intervir. A alternativa passa a ser por programas de assistência social para impedir que a criança entre na rotina de sustentação econômica da família. Segundo ela, essa situação “difusa e fragmentada” vira notícia somente em casos extremos.
Isa cita a morte do adolescente Andrei Rodrigues, 15 anos, que trabalhava irregularmente à noite na colheita da laranja na fazenda Água de Ouro, em Pederneiras (SP). Ele foi atropelado por um tratorista enquanto carregava uma sacola de 500 quilos de laranja, que seria levada por um caminhão até uma fábrica de sucos. Socorrido, o garoto não resistiu aos ferimentos.
“Temos que encontrar formas de responsabilizar empresas que recrutam crianças e as que fazem vistas grossas à sua cadeia de produção”, defende a secretária do FNPETI. A informalidade e a terceirização são preocupantes. “A globalização impõe sempre custos mais baixos. E traz a necessidade de novos modelos de monitoramento”, afirma Renato Mendes, coordenador da OIT Brasil no combate ao trabalho infantil.
Mendes lembra que alguns tipos de financiamento, do BNDES e do Banco Mundial, já exigem certificados contra trabalho infantil. “As empresas precisam cobrar isso de seus fornecedores por contrato”, diz. “No Brasil, não há um modelo 100% eficiente de monitoramento e garantia de que cada etapa da produção exclui o trabalho de crianças. Mas é possível adotar formas alternativas.”
Uma dessas formas é incluir cláusulas de quebra de contrato em caso de flagrante. Outra é incluir a proibição nos acordos coletivos dos funcionários. A OIT publicou recentemente uma cartilha com orientações específicas aos empregadores para erradicar o trabalho infantil. Uma das recomendações mais importantes é sobre o compromisso da empresa.
“O fornecedor tem de saber que você é sério contra situações de trabalho infantil. Ele
tem de estar ciente de que, se não forem tomadas medidas concretas para eliminar o
problema, os contratos serão rescindidos e não serão refeitos”, registra a guia da OIT, publicada em quatro línguas (inglês, francês, russo e espanhol), mas ainda sem versão em português.
Para endossar o compromisso, Mendes recomenda que as empresas adotem acordos e pactos já existentes, como os feitos pelo Instituto Ethos e pela Fundação Abrinq – ambas entidades sem fins-lucrativos que possuem modelos de acompanhamento, incluindo orientações para o setor corporativo.
A Fundação Abrinq desenvolve trabalho nessa área desde o começo da década de 90. Gestora do Programa Empresa Amiga da Criança, a fundação dá um selo à empresa signatária de um acordo pelo qual se compromete a banir o trabalho infantil de sua produção e alertar seus fornecedores.
“A empresa precisa ter um papel pró-ativo – acabar com a contratação de crianças internamente, cobrar seus fornecedores e exigir que eles se adequem. É preciso entender que as empresas têm poder econômico e poder para influenciar valores. Diante de sua equipe interna, dos fornecedores, dos consumidores”, explica a coordenadora do programa, Andréia Santoro.
Cerca de 1.050 empresas participam do projeto da Fundação Abrinq. Mais da metade relacionada ao setor de serviços. Ao todo, representam 39% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Andréia ressalta que uma usina de álcool já foi excluída do projeto por desrespeito ao trabalho infantil. “Faz parte da gestão do processo. Assim que ela se adequou pôde voltar ao programa”, explica.
Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego realizar fiscalizações contra o trabalho infantil. A ação é prioritária no planejamento das unidades regionais. A atuação é escolhida pelo foco econômico de cada região. O plano é montado a partir de informações da rede local de proteção à criança e ao adolescente e, em seguida, as ações são planejadas nas épocas de maior concentração do trabalho infantil.
Hoje, existe um banco de dados on-line (http://siti.mte.gov.br) para qualquer cidadão acompanhar as fiscalizações. A busca pode ser feita por cidade ou estado. Os resultados trazem o setor econômico flagrado, o número de crianças envolvido e as características do trabalho. Dados sobre empregadores não estão disponíveis. Só podem ser acessados mediante consulta nas superintendências regionais do trabalho.
No início de junho, o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, prometeu a criação de uma “lista suja” do trabalho infantil aos moldes da existente contra o trabalho escravo, embora não tenha apresentado data de divulgação. “Seria um bom instrumento para identificar flagrantes”, aponta Isa Oliveira, do FNPETI. Uma visão semelhante à de Andréa Santoro, da Fundação Abrinq.
Contudo, ambas as entidades concordam que também é preciso ir além da repressão. Ampliar a idéia no setor corporativo de que o trabalho infantil é um problema real, adotar programas de geração de renda e incentivar a educação, inclusive em lugares carentes e isolados. Isso com envolvimento do governo, das empresas e da sociedade.
Roteiro para as empresas
A seguir uma pequena lista de ações contra o trabalho infantil que colhemos com fontes de organizações internacionais e entidades da sociedade civil:
– Erradicação do trabalho infantil deve estar no planejamento estratégico da empresa;
– Assinar pactos setoriais com entidades como Fundação Abrinq e Instituto Ethos;
– Adotar proibições pelos acordos coletivos e códigos de ética empresarial;
– Acompanhar situação dos fornecedores de matéria-prima e dos terceirizados;
– Incluir cláusulas de rescisão de contrato em caso de flagrante de trabalho infantil;
– Criar cadastro de fornecedores infratores para impedir compras pelo tempo necessário;
– Adotar programas de treinamento e capacitação para diretorias comerciais;
– Incentivar fiscalizações trabalhistas nas dependências da empresa e nos fornecedores;
– Elaborar programas de responsabilidade social voltados aos jovens.
O que diz a lei sobre trabalho infantil
Crianças e adolescentes até 16 anos completos são proibidos de trabalhar, de acordo com as leis brasileiras. Depois dessa idade, é permitido o trabalho desde que seja pago um salário equivalente a de um adulto – igual ou superior a um salário mínimo. Quando há trabalho noturno, perigoso ou insalubre a autorização se dá apenas aos 18 anos, quando o jovem atinge sua maioridade. O emprego também precisa ser compatível com as atividades escolares.
Na relação com a educação, o trabalho do jovem na condição de aprendiz é permitido a partir dos 14 anos, como define a Lei 10.097. Ou seja, podem ser aprendizes em empresas que tenham um programa elaborado especificamente para recebê-los. Nenhuma outra opção é permitida. No Brasil, o trabalho infantil não é enquadrado como crime, não é uma violação à lei penal, exceto quando envolve tráfico de crianças e adolescentes, exploração sexual, venda de drogas e trabalho escravo. Nestes casos, os processos podem resultar em prisão em regime fechado para o condenado.
A legislação prevê sanções à empresa e à família no caso do flagrante. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 129 e 130, estabelece que as famílias devem ser encaminhadas a um programa oficial de proteção à família, obrigadas a matricular o filho na escola e acompanhar sua freqüência. Em casos graves, geram advertência, podendo chegar até a perda da guarda. Já a empresa que contratar criança ou adolescente é autuada em flagrante, sendo multada imediatamente. Um processo criminal pode ser instaurado caso as condições de trabalho impostas sejam degradantes.
Uma boa novidade do Brasil foi a adoção oficial de uma lista com as piores formas de trabalho infantil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto regulamentando a Convenção 182, da OIT, que lista as piores formas de trabalho infantil. Entre as 113 atividades descritas, estão: dirigir e operar tratores, máquinas agrícolas, participar do processo produtivo do carvão vegetal, fumo ou cana de açúcar, manusear agrotóxicos. “Fica claro agora para o empresariado o que é proibido expressamente”, explica Isa Oliveira.
Fonte: Revista Melhor – Gestão de Pessoas – Agosto de 2008
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