Em busca do tempo perdido

Projeto da Nova Lei do Direito Autoral tenta aumentar a presença do Estado e acabar com atrasos do setor, mas enfrentará resistência dos intermediários das obras culturais

Aloisio Milani
Da Retratos do Brasil

O direito autoral no Brasil está numa encruzilhada, acuado entre os exemplos de seu atraso. Nas universidades e faculdades, alunos tiram cópias de livros para estudar a bibliografia sugerida pelo professor. Em outro lugar, internautas trocam arquivos mp3 usando softwares pier-to-pier para, depois, serem ouvidos em players portáteis e celulares. Enquanto isso, bibliotecas trabalham entre a cruz e a espada na preservação e digitalização de obras raras. Se não reproduzirem os livros velhos, podem perdê-los, mas precisam encontrar e negociar os direitos de cada obra para poder salva-las. E mesmo quando o protagonista da “reprodução” é o próprio autor, a lei não o ajuda. A trupe musical Teatro Mágico já foi multada por ter feito um bis em um show com uma canção própria, mas que não estava na lista aprovada no Ecad – órgão que cobra por execuções públicas de músicas.

Todas essas situações, bastante cotidianas, têm algo em comum: são crimes previstos em lei, porque não possuem autorização expressa dos autores e/ou detentores dos direitos. A Lei nº 9.610, sancionada em 1998, é o centro dessa polêmica. Com pouco mais de uma década de existência, a legislação é a única arma para proteger artistas e intelectuais. É abrangente para tratar de livros, cinema, teatro, música, mídia, educação e conhecimento científico, mas não contempla usos já incorporados pela sociedade, nem protege totalmente seu autor – muitas vezes, refém de intermediários que se apropriam da maior parte do lucro das obras. Tampouco a lei indica soluções para um mundo que se “digitaliza”. São essas as regras que ditam o formato de toda estrutura da economia da cultura. Uma cadeia produtiva que movimenta bilhões de reais.

“A Lei de Direitos Autorais como existe hoje não dá conta da proteção efetiva do autor e não tem mecanismos para que a obra circule de maneira mais democrática”, avalia Guilherme Varella, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), um dos articuladores de uma rede de 20 entidades da sociedade civil que apóiam o governo na reforma da lei. “A rede acredita que, além da função privada de proteção do autor, a lei precisa levar em conta a esfera pública. E ela deve ser contemplada para a consagração de outros direitos também fundamentais, como o da educação, cultura e acesso ao conhecimento”.

Quem lidera a formulação de um novo projeto de lei dentro do governo é o Ministério da Cultura. O debate começou três anos atrás com a realização do Fórum Nacional do Direito Autoral. Oito seminários e 80 reuniões com representantes do setor também foram feitas. Muitas propostas foram enviadas e incorporadas ao projeto. O tema dominou a pauta de cinco reuniões do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), tamanha as relações com as demais áreas do governo. Onze pastas estavam na discussão. A minuta do texto foi concluída e submetida à Casa Civil para consulta formal dos ministérios. A íntegra do projeto ficará disponível na internet para receber contribuições e questionamento formais.

“Temos três princípios maiores com este projeto”, explica o coordenador de Direitos Autorais do Ministério da Cultura, Marcos Alves de Souza. “O primeiro é equilibrar a relação do autor com o intermediário, porque a lei hoje privilegia mais o investidor. Precisamos adotar dispositivos, hoje já existente no Código Civil, que permitam a revisão de contratos desfavoráveis ao autor. O outro princípio é melhorar a relação entre os titulares dos direitos autorais e a sociedade. Ou seja, são os usos justos que regem o cotidiano e que não prejudicam a exploração da obra. Isso está representado hoje na lei no capítulo das limitações [artigo 46]. Queremos equilibrar os direitos dos titulares com o direito da população de ter acesso à informação e cultura. O terceiro princípio diz respeito ao papel do Estado, porque a legislação atual tem uma interpretação focada no direito privado, mas há também o interesse público nas relações de consumo, fruição e conhecimento. Precisamos retomar esse papel”.

Qualquer relação entre a obra e sua reprodução é influenciada por essa lei. E há sinais de que ela ainda não consegue abranger o autor em todas as etapas da produção cultural. No audiovisual, por exemplo, roteiristas e diretores pleiteiam há anos receber pela exibição pública das produções. Isso hoje não é possível pelo formato da Lei 9.610 e pela falta de organização da classe. Não existe a figura arrecadadora do cinema, como existe o Ecad para a música. “Não descartamos a função fiscalizadora que eventualmente o Estado possa exercer, mas julgamos que a arrecadação e distribuição dos direitos é tarefa particular e privada”, afirma o presidente da Associação dos Roteiristas de Televisão, Cinema e Outras Mídias, Marcílio Moraes, em documento recente da entidade.

No caso da educação, estão em questão todos os materiais, em qualquer suporte, utilizados como apoio didático, em sala de aula ou no ensino à distância. Para mapear esse setor, o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI) da Universidade de São Paulo elaborou o estudo chamado “O mercado de livros técnicos e científicos no Brasil”. Ao avaliar os livros exigidos no primeiro ano de dez cursos de graduação da USP, os pesquisadores indicaram que um terço da bibliografia estava esgotada, e para a grande maioria dos estudantes, a compra da bibliografia indicada comprometeria quase a totalidade da renda mensal familiar.
Para Pablo Ortellado, um dos coordenadores da pesquisa, a atual Lei do Direito Autoral ainda impede o trabalho de instituições do patrimônio cultural e artístico, porque exige a autorização dos titulares de direito mesmo para tirar uma cópia integral de preservação. “E como, muitas vezes, não se consegue localizar o titular, porque as obras são muito antigas, ou se faz a cópia na ilegalidade, ou se pode perder o acervo”, diz. “Também há uma enorme vigência do direito autoral por aqui – a lei protege toda a vida do autor, mais outros 70 anos depois de sua morte. Isso é em média 20 anos a mais que em outros países. Se uma editora que tem os direitos de publicação, não o faz, a obra não circula”.

Mas é no setor musical que se ouve o maior número de oposicionistas ao anteprojeto, sobretudo quanto à possibilidade de criação de um órgão estatal que regule a cobrança e distribuição dos direitos autorais. Hoje, essa etapa é auto-regulada. Associações privadas organizam suas próprias regras de fiscalização. Entidades de artistas, compositores e advogados fazem a gerência do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) – um órgão não-estatal que comanda as regras do setor. Em 2009, por exemplo, arrecadou R$ 374 milhões com a cobrança de direitos em rádios, televisões, shows, bares, cinemas, festas etc. Os gritos de oposição dessas entidades se baseiam no temor de que o projeto rompa com a rotina e os métodos de trabalho construídos há anos.

A superintendente nacional do Ecad, Glória Braga, já argumentou publicamente que a lei atual é “nova” e cumpre sua função. Procurada, a superintendente não quis se pronunciar mais uma vez antes de ler a íntegra do anteprojeto. A mesma foi a resposta do músico Danilo Caymmi, que há havia criticado por várias vezes a iniciativa. “Prefiro me pronunciar quando tiver o projeto na mão, porque até agora só foi muito discurso para pouca ação”, resumiu. Caymmi foi um dos artistas que esteve presente na criação do Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, grupo que questiona a proposta apresentada pelo governo. No lançamento do comitê, o presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), Roberto Mello, engrossou o coro com um manifesto. “Esse movimento ocorre às escâncaras, na certeza que assim criarão um abismo de interesses entre criadores e ingênuos”, leu Mello durante o evento em abril. Para ele, existe a “clara” intenção de alterar as estruturas que dizem respeito “única e tão somente às classes que têm direitos autorais”.

A encruzilhada de problemas fica mais complicada ao unir ao debate a prática constante e generalizada do “jabá” – prática das gravadoras de injetar dinheiro em canais de rádio e televisão para tocarem seus artistas. Alavancam seus produtos às listas de músicas mais ouvidas e, com isso, recebem mais direitos autorais. Um dinheiro que vai e volta, embora a fórmula não seja admitida em público pelas entidades. “A ironia é que são justamente transações privadas e secretas ocupando rádios e TVs, que são, por essência, concessões públicas e deveriam primar pela diversidade musical”, diz Fernando Anitelli, líder do grupo Teatro Mágico.

De acordo com Marcos Alves de Souza, do Ministério da Cultura, a criação de uma instituição que cuide especificamente de direito autoral só será feita ao final do processo de discussão e aprovação do projeto de lei. “Primeiro, precisamos saber qual o tamanho das novas competências. Sobre as sociedades de distribuição coletiva, o que existe hoje é um monopólio legal só que sem qualquer tipo de supervisão estatal. O projeto prevê isso justamente para garantir transparência, critérios justos e uma instância de resolução de conflitos, porque hoje todos eles deságuam no judiciário”, diz. “Claro que a proposta provoca reações. Eventualmente pode haver um temor desmedido sobre estatizar as sociedades, mas não se trata disso. Não vamos assumir o papel dessas entidades, inclusive porque são elas que cuidam do âmbito privado. Nossa intenção é dar mais proteção aos autores. Quando isso ficar claro, o diálogo vai melhorar”.

A discussão no ambiente da música e dos livros deve ditar os rumos do projeto porque interfere no modelo já construído de negócio. Por outro lado, na contramão deste processo, há um novo mundo surgindo no qual o Brasil engatinha em regulação: as novas tecnologias de acesso a acervos de conteúdo artístico e cultural. A internet facilitou tremendamente o acesso, assim como a capacidade de se fazer cópias privadas e em larga escala. A simples navegação na rede se baseia, tecnicamente, em cópias de arquivos de texto, fotos, vídeo e áudio. Tudo que deriva disso não está contemplado pela legislação. “O difícil é que estamos precisando revolver os problemas analógicos para começar a buscar as soluções para o digital. Nenhum país conseguiu ainda resolver essas novas questões”, reconhece Marcos Alves de Souza.

No saldo da encruzilhada do direito autoral, o desafio maior é como colocar na mesa de negociação interesses tão díspares, do privado e do público, num ano político curto, com Copa do Mundo, eleições presidenciais e logo atrás da já difícil articulação do projeto de mudança da Lei Rouanet, que altera o formato do incentivo à cultura feita por renúncia fiscal.

Fonte: Retratos do Brasil (julho de 2010)
http://www.oficinainforma.com.br/

Pena Branca: o encantador de cuitelinhos

Ao lado do irmão Xavantinho, Pena Branca é dono de um invejável cancioneiro sobre o homem do campo. Leia a seguir um perfil recheado por entrevistas recentes concecidas a mim em que Pena Branca fala da vida e das cantorias. Texto publicado originalmente no jornal Brasil de Fato.


Pena Branca dedilha a viola na varanda esperando o “bichinho sem-vergonha”

A varanda da casa no Jaçanã, no caminho da Serra da Cantareira, em São Paulo, era um pequeno paraíso: “lugar das ‘prantinha’ e dos ‘passarim’”, dizia Pena Branca. “Ali, também toco minha viola”. O instrumento de dez cordas era de estimação, cravado no tampo seu nome, preso ao pescoço com corda fina. O braço da viola ainda era outra farra. O cantor foi fotografado certa vez com o truque matuto de pendurar na viola um bebedouro de beija-flor. Então, só aguardava os “cumpanheiro”. “Mano, cuitelinho é um bichinho sem-vergonha, qualquer água com açúcar ele vem mesmo”, comentava às risadas. Pena Branca nunca ficou rico com sua música, mas vivia exclusivamente dela desde a década de 1980, quando abriu com o irmão Xavantinho uma nova trilha entre os caipiras. Morreu no dia 8, depois de um infarto fulminante, dentro de casa. Aos 70 anos, com alma de criança, Pena Branca partiu e findou a história de uma das principais duplas da música de raiz.

José Ramiro Sobrinho – nome de batismo de Pena Branca – nasceu no dia 4 de setembro de 1939, poucos dias depois da invasão da Alemanha sobre a Polônia, na Segunda Guerra Mundial. Mas a pequena Igarapava, no interior paulista, era bem longe. As notícias só chegavam pelo rádio na colônia de trabalhadores da fazenda Usina Junqueira, onde o pai de Pena Branca morava. Família de negros fortes, frondosos, bonitos. Na mesma cidade, no mesmo ano, havia nascido Jair Rodrigues, outro negro da música. Em entrevistas gravadas com o autor deste artigo nos últimos anos, Pena Branca contou sua história. “Com 10 dias de vida, meu pai se mudou com a gente para Cruzeiro dos Peixotos, uma vilinha perto de Uberlândia”, dizia. Pena Branca se tornou mineiro de criação. “Comecei a falar muito ‘uai, né’”, brincava, “e meu irmão Xavantinho é mineiro de inocente”. Ambos conheceram cedo as festas religiosas enfeitadas de música. Acompanhavam o pai, tocador de cavaquinho, nas folias de reis para adorar o menino Jesus e nas congadas em devoção à Nossa Senhora do Rosário.

Do Cio da Terra – “Naquela época a gente tomava conta de uma fazenda. Quem era arrendatário era arrendatário. Quem era meieiro era meieiro. A gente arrendava, mas era tanto tempo ali que sentíamos como se a terra fosse nossa”, disse. Pena Branca era três anos mais velho que o irmão Xavantinho – na verdade, Ranulfo Ramiro Sobrinho. O mais antigo Pena Branca, encantador de cuitelinhos aprendeu viola, o mais moço, violão. No começo, viver a música era ver o pai. Por pouco tempo, porque ficaram órfãos muito cedo, aos 12 e 9, respectivamente. Ambos foram então para a lavoura, semear o sustento da mãe e cinco irmãos. As toadas e modas de viola agora dividiam o tempo com a enxada e o arado. “O ‘cabôco’ na roça, quando assim passa por uma tormenta, igual nós que ‘perdêmo’ nosso pai, fica de cara achando que ir para a cidade é boa saída. Mas chega aqui e não é assim. Se puder escolher, penso que o ‘cabôco’ passa ‘mió’ na roça, ‘quietim’”. Para ele, o que interessa mesmo é o trabalhador ter “Tonico e Tinoco”. Sabe o que é? “Arroz e feijão, isso não pode faltar na mesa”. Pena Branca lembrava que essa rotina de fazenda levou 30 anos de sua vida. Fez os estudos até o “quarto ano”, nada mais. Só conseguiu se dedicar à cantoria depois de adulto.

No Triângulo Mineiro, a dupla se apresentava nas fazendas e nas pequenas rádios. Começou com um nome pomposo, dado por um coronel: Peroba e Jatobá. Mas não gostaram. Na semana seguinte, já era Barcelo e Barcelinho. Um dia, na escola, a professora falava dos índios. “Ela disse que tinha uns índios ainda muito fortes, os xavantes. Aí, eu olhei ‘pro’ meu irmão e disse: ‘tá aí’! O que acha de Xavante? Ele gostou. E o Xavante não tem fi lho? Xavantinho, uai”, recordava. Esse foi o nome da dupla até a partida de Xavantinho para a capital São Paulo em 1968. Ele estava empregado na transportadora Caçula como motorista de caminhão. No ano seguinte, arrumou um emprego da mesma companhia para trazer o irmão mais velho e reunir a dupla de outrora. Na chegada da capital, buscaram rádios sertanejas e festivais de viola. “A gente ‘ralemo’ demais”, contava. De cara, um revés. Já existia em São Paulo uma dupla com o nome de Xavante. Pena Branca falava: “Eles vieram para nós e falaram que podíamos comprar o nome deles. Aí pensamos: o que é isso? Nós, que viemos pobres de Minas e temos que comprar nome agora. Isso é esquisito demais. Aí virou Pena Branca e Xavantinho de 1970 para cá”.

Estrelas com raízes – A dupla dos irmãos Pena Branca e Xavantinho era como se fosse um só. Formaram desde pequenos uma relação perfeita de vozes, como tinham os ídolos Tonico e Tinoco. Ao estilo caipira, divididas em terças, as vozes eram coringas. Uma olhada de lado ou uma batida de viola os fazia trocar quem soltava primeira e segunda vozes. Os tons agudos dos dois faziam a diferença. Chegavam às finais dos festivais de música, mas ainda não levantavam o voo do sucesso. Em 1980, numa apresentação da orquestra de viola de Guarulhos com a cantora Inezita Barroso, foram notados como as vozes mágicas do grupo. “Eu cantava e não acreditava no que ouvia atrás de mim. Quando terminamos, virei e disse que precisavam sair da orquestra para lançar a dupla em disco. Eles eram muito bons. Pena me chamava de madrinha até hoje”, conta Inezita Barroso, na época estreante no comando do programa Viola, minha viola. “Assim, eles se apresentaram pela primeira vez no programa cantando ‘Velha morada’ e ‘Cio da terra’. Foi lindo”. Começava a carreira com 10 discos gravados – após a morte de Xavantinho, em 1999, Pena Branca seguiu carreira solo e gravou mais três discos, sendo que um ganhou o Grammy Latino de melhor disco sertanejo.

Colecionaram amigos na música caipira. Eram adorados. “E dobra esse carinho aí para a MPB”, dizia Pena Branca. Isso porque misturaram os gêneros dentro do sotaque caipira. “Não existia isso antes. Era cada um no seu canto. Aí gravamos ‘Cio da Terra’. A gente levava na rádio sertaneja e eles falavam que aquilo era MPB. Na rádio de MPB, eles diziam que era coisa de caipira. Era de lá para cá”, divertia-se Pena Branca. O cantor lembrava que um crítico musical paulistano dizia que Milton Nascimento tinha assinado o próprio atestado de óbito ao gravar com a dupla, “uns desconhecidos”. “Mas prefiro não falar o nome dele não. Deixa ele no anonimato agora que é mais gostoso”, dizia. No rol de compositores da MPB que gravaram, estão: Milton Nascimento, Chico Buarque, Renato Teixeira, Guilherme Arantes, Théo de Barros, Djavan, Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Dominguinhos, Ivan Lins, Paulo César Pinheiro, João Pernambuco, Hermínio Bello de Carvalho e vários outros. “Era queijo com marmelada para fazer Romeu e Julieta… quer dizer, é goiabada, né? (risos)”, resumia Pena.

“Os óio se enche d’água” – “O disco que fiz com eles, em 1992, ao vivo em Tatuí é um marco na minha carreira e na deles”, conta o amigo Renato Teixeira. Pena Branca adorava a música “Cuitelinho”, folclore recolhido e adaptado por Paulo Vanzolini. A música era figurinha carimbada em seus shows. Depois de 1999, contudo, se sentia sozinho. A morte precoce do irmão Xavantinho, de uma doença degenerativa na medula, o levou a seguir carreira solo. Precisava continuar a cantar. Era o que sabia fazer e ainda precisava se sustentar. Mantinha um grupo de amigos músicos para se apresentar em Uberlândia e outro em São Paulo. Emocionava-se sempre com a lembrança do irmão, segundo ele, “o cabeça da dupla, o estudado, o letrista, é uma parte de mim que foi embora”. Várias pessoas lhe diziam que viam ou sentiam a presença do irmão em seus shows. Pena acreditava. “Eu sinto o mano ‘véio’ mesmo. Ele me ajuda demais. E rezo muito para ele”, falava. “Ele divide espaço com meu anjo da guarda”.

Caipira de nascença e criação, Pena Branca vivia na zona norte paulistana há mais de 40 anos. Montava ali o seu reduto roceiro. Gostava de comer em casa, cozinhava muito bem, não abria mão de um queijo fresco. Sua última apresentação na TV foi justamente no Viola, minha viola onde cantou “Vaca Estrela e Boi Fubá”, “Peixinhos do mar” e “Cio da terra”. No dia de sua morte, dizem os amigos, teve um dia normal, até tocou viola. Passou mal no começo da noite, depois de um dia de forte calor na capital. Socorrido após o infarto, não resistiu. Foi enterrado no túmulo onde está o seu irmão, Xavantinho. Novamente juntos. A dupla de pretos com nome de índios, bem brasileiros.

Revolução da viola: do culto à vanguarda

Pesquisadores e músicos indicam que a viola vive seu período mais fértil na música. Ligada às tradições populares – e, por muito tempo, rejeitada no cenário nacional –, a viola agora tem seu auge com um sem-número de instrumentistas, compositores e mestres. Deixou de ser som de acompanhamento de cantores para abrir, entre roças e cidades, uma nova fronteira melódica e harmônica. Por Aloisio Milani

(Texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, edição outubro 2009)violeiros

Os dedos de Almir Sater ponteiam um blues. O ganso é o nome da música. Composição própria, tocada no palco do programa Viola, minha viola, da TV Cultura, sob o olhar atento da cantora e folclorista Inezita Barroso. O templo da música caipira muda naquele momento. Pelas suas mãos, o Pantanal se aproxima do Mississipi. Almir toca de óculos. Repousa o pé direito sobre o esquerdo, um tipo de suporte próprio para a viola se moldar ao corpo. O blues segue acompanhado pelo violão do irmão mais novo, Rodrigo Sater, que pouco tempo depois repetirá a saga de peão-violeiro em novela – dessa vez, a escolhida é a trama Paraíso, da TV Globo. Mas ali, atrás do palco do blues caipira, na coxia, há algo mais importante. Os violeiros Roberto Corrêa, Paulo Freire e Adelmo Arcoverde observam atentos a apresentação – todos são virtuoses das dez cordas. Mais que regionalistas, eles integram uma geração de instrumentistas brasileiros que conseguiu deslocar a viola para um novo patamar: o de instrumento complexo, de sonoridades amplas, que bebe na inspiração das tradições e voa alto, incorporando novas referências e elementos eruditos e populares.

Ao lado de Almir, o grupo se apresenta como parte do projeto “Violeiros do Brasil”, idealizado e dirigido pela produtora Myriam Taubkin. É um registro de 13 violeiros selecionados em dois momentos: 1997 e 2008. Na década passada, o encontro resultou em um disco ao vivo e ajudou a dar visibilidade para um movimento de contemporanização da viola, com novos instrumentistas e influências. “A viola já tinha mudado. E ali começou a mostrar sua força”, lembra Paulo Freire. Mas voltemos à apresentação televisiva do grupo. A música após o blues de Almir Sater encerrará o programa. Todos juntos farão um arranjo clássico para a voz de Inezita Barroso. Ansioso, o pernambucano Adelmo Arcoverde pergunta: “Que tom ela canta?”. Roberto responde sério: “Si”. A pegadinha faz tremer o rosto do experiente professor e improvisador Adelmo. “Si” é um tom complicado, que exige acordes com pestanas. Com cinco sustenidos, é quase impossível fazer rápidas e precisas progressões na escala. Silêncio estratégico. Depois, risos. A piada se desfaz. Paulo e Roberto se desmancham. E entram no palco. Tocam Boiadeiro errante em “Sol”.

“A viola é passado, presente e futuro”, sentencia Roberto Corrêa, físico graduado e um dos principais violeiros dessa geração, com um intenso trabalho como pesquisador da área. “O que se vê de mais interessante no atual cenário musical brasileiro é o que se tem feito com a viola”. De instrumento incrustado nos rincões do Brasil, servindo de base para cateretês, cânticos religiosos e brincadeiras pagãs, ela rompe o preconceito de ser caipira e se torna contemporânea. É capaz de se misturar a instrumentos de música clássica e aos populares – clarinete, flauta, cello, fagote, piano. “Ela vai no caminho inverso de outros instrumentos, porque há pouca coisa escrita. Não veio do erudito, como o piano, por exemplo, e se popularizou depois do violão”, explica Myriam Taubkin. Para entender essa evolução, é preciso voltar um pouco na história e localizar a origem deste instrumento idiomático. A âncora da tradição nasceu portuguesa e abrasileirou-se.

A evolução

Caipira, nordestina, de arame, cinturada, cantadeira, do capeta ou devota. A viola brasileira pode ter muito nomes e apelidos – aliás, tantos quantos se possa imaginar –, mas sua estrutura é semelhante ao instrumento que desembarcou no Brasil com os colonizadores portugueses. Dez cordas presas nas extremidades e com uma caixa de ressonância de madeira em forma de oito. “A viola veio com os jesuítas para a catequese. Os índios adoravam as escalas musicais. Os cantos eram de devoção. Nossa música paulista começou santa”, relata Inezita Barroso. Em seu apartamento, em São Paulo, Inezita guarda a relíquia de uma imagem de São Gonçalo, o santo violeiro que encantava as mulheres de “vida fácil” com danças, para que elas não caíssem nos pecados da carne. Assim, ganhava força a mística do tocador de viola. Ele era visto como alguém que enfeitiçava as mulheres, ainda que exista quem encontre outras fontes de inspiração para os solos e melodias.

A capacidade de tocar viola sempre esteve ligada a uma espécie de pacto com o lado espiritual. Geralmente com um ente avesso a santos, anjos e querubins. Segundo as tradições populares, era mesmo o diabo que fazia um bom violeiro. Tal como acontece com os tocadores de blues norte-americanos. Robert Johnson, dizem, teria feito um. Receitas não faltam para encontrar o diabo. Paulo Freire, jornalista por formação e violeiro por adoção, conta que o bom mesmo é meter a mão em buraco de igreja do interior. Depois de sentir os dedos quebrados pelo tinhoso, os ponteados estarão todos morando na sua mão. “Funciona”, brinca. O anedotário rural ainda recomenda botar um guizo de cascavel dentro da viola. Uma pesquisa de Mário de Andrade sobre a cultura popular, na década de 1920, registrava que o guizo da cobra dá bom som para o instrumento. Mas na pequena Pindamonhangaba, interior de São Paulo, havia violeiro que tinha um pé atrás com o conselho. “O guizo melhora o som, mas não presta, porque seis meses depois vira a própria cascavel”, registrou o inquérito do escritor modernista.

A viola e seus trejeitos foram passados no boca a boca por muito tempo. Durante a colonização, os bandeirantes a levaram sobre as mulas e cavalos para o interior do Brasil. O isolamento geográfico a aproximou cada vez mais dos temas rurais, tornando-a um instrumento do campo. Só veio a ter algum registro musical bem mais tarde, com pesquisadores. Entrou para a indústria fonográfica por iniciativa pessoal de um folclorista da cidade paulista de Tietê: Cornélio Pires, que pagou do próprio bolso a gravação que a dupla Mariano e Caçula fez da música Jorginho do sertão. O sucesso de Cornélio foi estrondoso. Cinco mil cópias vendidas em 20 dias na carroceria de um caminhão pelo interior. Lançou-se para a história como um dos primeiros “produtores independentes” do país. Um mercado que a elite desconhecia. E detestava.

A música caipira, com a viola no prumo, seguiria como um gênero do interior por décadas a fio. Os principais nomes? Raul Torres e Florêncio, Capitão Furtado, João Pacífico, Tonico e Tinoco, Luizinho, Limeira e Zezinha, Vieira e Vieirinha, Carreirinho, Nenete e Dorinho, Jacó e Jacozinho, José Fortuna e Pitangueira, Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho, Zé Mulato e Cassiano, e tantos outros que não cabem nestas linhas. Dessa lista sem-fim, um músico foi especial: Renato Andrade, cujo trabalho abriu nova trilha para a viola caipira. Mineiro de Abaeté, ele teve formação clássica para o violino, mas trocou de instrumento. Amadureceu uma técnica espetacular para tocar viola. Suas músicas eram verdadeiras novidades melódicas. Autossuficientes. Renato as nomeava como causos rurais: O jeca na estrada, Prelúdio da inhuma e Sinhá e o diabo. Entre suas qualidades também se destacava a de contador de histórias. A receita do pacto do diabo para os violeiros se popularizou em suas apresentações. “Tinha hora que dava para acreditar que ele tinha pacto com o demo mesmo. Era muito som para pouco dedo. Parecia que ele tinha mais de duas mãos”, fala Paulo Freire.

Viola na vanguarda

O primeiro registro do projeto “Violeiros do Brasil”, da produtora Myriam Taubkin, contou com a presença de Renato Andrade e de Zé Coco do Riachão, dois mestres do gênero. Na segunda edição, ambos já tinham morrido, mas os 11 demais são unânimes em avaliar a genialidade musical dos companheiros. “Renato Andrade fez história. Tenho como certo que podemos avaliar o movimento da música de viola antes e depois dele. É um divisor d’água da viola no Brasil”, diz Pereira da Viola, mineiro do Vale do Mucuri. O legado artístico de Renato tem pelo menos quatro discos fantásticos. E uma rapidez inacreditável nos dedilhados. Uma vez, o jornalista José Hamilton Ribeiro, veterano amante dos caipiras, calculou, em uma reportagem do Globo Rural, que Renato Andrade era um dos músicos mais rápidos do mundo. “Era mais rápido que os mais rápidos instrumentistas eruditos”, diz.

Renato trouxe para muitos instrumentistas o caminho das experimentações. Ivan Vilela, mineiro de Itajubá, foi um deles. Apaixonado pelo Clube da Esquina, soube como poucos adentrar no mundo da viola. Em dois discos instrumentais, “Paisagens” (1998) e “Dez cordas” (2007), transita entre o tradicional e o moderno. Toca cururus, flerta com o movimento armorial e rompe preconceitos ao (re)construir Eleanor Rigby, de Lennon e McCartney. Ainda compôs uma ópera caipira, prova de que é teórico e prático do instrumento. Na Universidade de São Paulo (USP), foi o criador do primeiro curso de graduação de viola caipira, lugar em que também levantou um séquito de alunos admiradores. “O aluno de viola precisa ser, além de um bom músico, um pesquisador com pés fincados na antropologia, na sociologia rural e na história. Precisa ser um intelectual capaz de identificar os traços idiomáticos da viola e da música produzida pelos caipiras”, explica.

E assim, cada violeiro vai buscando suas referências. Paulo Freire, por exemplo, já botou distorção de guitarra na sua viola de cocho – aquela viola do Centro-Oeste construída a partir de uma peça única de madeira. Escavada e sem abertura para caixa de ressonância, ela traz um som metalizado. A distorção de guitarra, diz Paulo, está em seu subconsciente musical desde quando ficou marcado pelo solo de Jimi Hendrix, no hino norte-americano contra o fim da Guerra do Vietnã. Paulo, que é filho do anarquista, psiquiatra e escritor Roberto Freire, juntou a distorção de guitarra aos efeitos da música Antônio Conselheiro para simular o bombardeio de Canudos – nossa chaga aberta do sertão nordestino.

Quem também busca sonoridades diferentes é Braz da Viola. Luthier conhecido e autor de um dos mais famosos métodos de aprendizagem de viola, Braz agora mistura timbres da guitarra elétrica e contrabaixo com a viola caipira e a de cocho. Traz as melodias das toadas caipiras e deságua no blues e no jazz.      “A viola tem um imenso caminho pelo século XXI, porque tudo está por ser explorado”, diz Myriam. A trilha mostrada por Braz da Viola e seus companheiros no projeto “Violeiros do Brasil” é uma espécie de ciclo de uma segunda geração de músicos. Isso se pensarmos que a primeira foi a de Renato Andrade, e a segunda, a dos demais aqui citados. Vale ainda lembrar de alguns não contemplados no projeto, e que são igualmente magistrais: Chico Lobo, Zeca Collares e Fernando Deghi.

Uma terceira geração, contudo, já surge no cenário independente, formada sob a influência de caminhos abertos por todos que a antecederam. Uma geração que já reflete uma pluralidade de sons. Em uma década ou menos, a maioria provavelmente será de novos mestres. Está aí a magia de um instrumento que se renova na bagagem das ascendências mestiças do brasileiro. E tudo se mistura no saco da viola. Com o diabo e seus santos. 

“Ipod caipira”

Para os leigos e curiosos no assunto, a modernidade ajuda (e muito): é possível assistir a algumas preciosidades violeiras na teia gigante de pocket-vídeos do YouTube. Em um “Ipod caipira” não podem faltar músicas como:

– A famosa parceria de improviso entre Tião Carreiro e Almir Sater, no pagode;

– O encontro da viola de Roberto Corrêa e da rabeca pernambucana de Siba, no projeto “Rumos” do Itaú Cultural;

– A história ancestral de Vai ouvindo, de Paulo Freire, que diz que a viola ali foi feita de um antigo banquinho, “onde a gente passava as horas juntinho”;

– O arranjo genial dos improvisadores Adelmo Arcoverde e Ivan Vilela, na tradicional Asa Branca, de Luiz Gonzaga, em que as violas parecem adentrar os próprios tocadores.

No caso do projeto “Violeiros do Brasil”, um show recente em Belo Horizonte está editado e dividido em músicas para os internautas. Basta procurar os vídeos adicionados pelo perfil “taubkinmy”.

Update 21 de outubro:

– O programa Mosaicos, da TV Cultura, sobre Tonico e Tinoco;

A vida na nuvem…. de tags

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o amigo rodrigo savazoni indicou o wordle e eu achei muito bom para brincar de coisa séria. uma boa metáfora da vida recentemente, uma nuvem… de tags. coloquei lá um trecho do haitiano Dany Laferrière. e  virou isso aí: um concretismo haitiano, forjado e remixado na net.  escrevo hoje para contar que há tempos não escrevia por aqui. o final de 2008 e toda esta década dos primeiros meses de 2009 foram tempos de muitas mudanças. no mundo, obama foi eleito e tomou posse.  o haiti comemorou. contudo, pouco mudou para aqueles negros de lá.  a crise se aprofundou imensamente. e isso muito mudou para eles. bilhões de dólares foram gastos pelo mundo contra a quebra de empresas e das bolsas. se uma pequena parte tivesse sido usada para os pobres haitianos, a discussão em julho agora seria outra. mas o mundo não gira assim. nem a onu. ah… colaborei com a revista on-line terra magazine neste primeiro semestre de 2009. muita gente deu pitacos e petelecos bons por lá.  dei os meus também.  mas no segundo semestre os vôos serão outros. vou falando, vou falando…

Trabalho escravo, cana-de-açúcar e o discurso da propaganda

Este post faz eco ao texto do jornalista Leonardo Sakamoto, escrito em seu blog. Vamos lá. Passo-a-passo. Quem diz que o Brasil não tem trabalho escravo ligado à cana-de-açúcar? Os empresários, várias fontes da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e, agora, um integrante do Itamaraty preocupado com a imagem no exterior. E quem diz que há trabalho escravo? O próprio Ministério do Trabalho com a lista-suja dos maus empregadores e as organizações não-governamentais, como a Repórter Brasil, que acompanham o setor. E a situação é grave? Já foi muito pior, mas ainda há casos de fazendas com flagrantes de trabalho escravo. O que fazer então? A questão não é negar que exista trabalho escravo e, sim, mostrar a presença do Estado nos casos de violação.

Tenho trabalhado como colaborador na produção e edição do programa Plantão Saúde, distribuído para 400 rádios de todo o país. Neste mês, fiz uma edição sobre os direitos dos cortadores da cana-de-açúcar e a situação do setor. Tem uma entrevista com um auditor fiscal do trabalho e outra do Sakamoto. Destaque para as seguintes informações. 1) Um estudo recente mostra que ao cortar uma média de 12 toneladas por dia, o trabalhador precisa caminhar 8 quilômetros, dar 130 mil golpes de podão. Isso o faz perder 8 litros de água. E ainda realiza a atividade sob efeitos da poeira, da fuligem da cana queimada e do sol quente; 2) Dos 5.999 trabalhadores libertados da escravidão no ano passado, 3.131 estavam em fazendas de cana-de-açúcar, em nove fazendas.

Esse discurso que o Itamaraty adota também está impregnado na propaganda dos empresários e pode cair nas garras do que o governo quer “vender” lá fora. Hoje, o Portal Imprensa publicou uma notícia sobre a licitação que escolheu a agência de relações públicas para promover o Brasil no exterior. O sub-secretário da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), Otoni Fernandes Jr., afirmou que o etanol deve ser um dos principais motes. “A questão etanol é líder porque vem há 33 anos investindo nesse biocombustível”. “Temos o ciclo completo do etanol”, ressatou. “O Brasil é uma marca forte e precisamos aproveitar o momento”, concluiu. Será uma oportunidade de corrigir o discurso… se houver vontade.

Ajuda no Haiti está longe do combate à pobreza e desnutrição

A ajuda humanitária ao Haiti nas últimas semanas responde vagarosamente à tragédia deixada pela passagem de quatro furacões na atual temporada de 2008. O país já tinha uma situação de empobrecimento extremo e se tornou calamidade internacional. Quase 800 pessoas morreram e outras 18 mil ficaram desabrigadas, segundo os últimos dados oficiais. O governo local – chefiado pelo presidente René Préval –, as Nações Unidas – que coordenam uma força de paz no Haiti (Minustah) – e outras organizações não-governamentais reafirmam que a ajuda atual está aquém do mínimo necessário para a situação. Mas a entidade Médicos Sem Fronteiras faz denúncia pior: a de que além de ser insuficiente, não está conectada a nenhuma estratégia clara para suprir as necessidades básicas da população.

”A ajuda alimentar internacional que chega às comunidade é claramente insuficiente em termos de quantidade, inadequada para as necessidades nutricionais das crianças de pouca idade, e ela está sendo distribuída de uma maneira que exclui as mulheres solteiras com filhos. Não existe ainda nenhuma estratégia clara para identificar as necessidades, nem aplicar uma resposta adequada nutricional”, registra um informe da MSF publicado nesta semana. “Apesar da presença significativa de organizações internacionais – com abundância de especialistas e de publicações que mostram isso –, o povo de Gonaives ainda tem precisa ver benefícios. A temporada de furacões termina no final de novembro. Se outro atravessar a região com mais chuvas, moradores aqui pagarão mais uma vez um preço muito alto.”

Diante deste informe, entrevistei o porta-voz da MSF por e-mail. Gregory Vandendaelen explicou que a entidade é especializada no atendimento médico de emergência e que, mesmo após algum tempo dos desastres no Haiti, os casos críticos não diminuem. Entre os fatores está o atendimento impróprio da ajuda humanitária. “Não é só sobre a quantidade da ajuda, é mais sobre a forma como ela é organizada. Contra a desnutrição, por exemplo, não é a quantidade de comida que irá ajudar as crianças e, sim, a qualidade. Arroz, óleo e grãos farão pouco ou nada por eles. Precisam de alimentação terapêutica, rica em proteínas, vitaminas e nutrientes. O que denunciamos aqui é a falta de estratégia e prioridade”, disse. A MSF clama para que as organizações e o governo haitiano examinem imediatamente suas respostas de emergência e priorizem o amparo às crianças vítimas das inundações.

A crise dos alimentos no mundo piorou a situação do Haiti em 2008. Uma notícia do site oficial da Minustah de julho já mostrava o impacto da inflação. “Os preços de produtos como arroz, milho, farinha, açúcar, óleo, palhetas, as mangas têm crescido muito. O saco de milho estava em 400 gourdes no ano passado e agora subiu para 1050 gourdes (1 dólar = 37,50 gourdes). O arroz passou de 125 a 225 gourdes por saco”, afirma. Antes da crise alimentar, observa Stephanie Debere, da Oxfam, as pessoas comiam arroz, feijão e legumes. Agora os vendedores do mercado estão sendo forçados a abandonar a atividade, principalmente após a enxurrada de arroz subsidiado que chegou com a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI). O responsável da Coordenação Nacional para a Segurança Alimentar haitiano (CNSA), Gary Mathieu, estima que 3,3 milhões de pessoas enfrentam problemas para se alimentarem no Haiti após a passagem dos ciclones, que afetaram as safras e a produção agrícola.

No mundo, segundo a FAO, o Haiti se soma a outros 36 países que necessitavam de ajuda estrangeira contra a crise dos alimentos. Na América Latina, Haiti, Honduras e Haiti possuem a combinação explosiva de baixa renda e déficit na produção de alimentos. O último relatório oficial da ONU sobre o Haiti, que embasou a decisão do Conselho de Segurança de prorrogar a força de paz até 2009, indica que a produção nacional de alimentos e ajuda internacional não cobrem mais do que mais do que 43% e 5% de suas necessidades, respectivamente. Isso tem influenciado de maneira direta e intensamente na economia do país e nas condições de vida da população. O déficit comercial do Haiti aumento US$ 185 milhões (2,5% do PIB) durante os seis primeiros meses de 2008 por conta da alta dos alimentos. A inflação dobrou, alcançando 15,8% em junho do ano passado, ante 7,9% de todo o exercício de 2007.

Também repito aqui algumas propostas (minhas e de outras entidades) para ajudar na crise humanitária do Haiti. 1) Perdoar a dívida externa haitiana, sobretudo sua célula-mater em posse da França, antiga metrópole colonial que ganhou rios de dinheiro com a escravidão e ainda cobrou para reconhecer a independência da colônia; 2) Melhorar a produção local de alimentos com incentivos fiscais e reforma agrária, priorizando os pequenos agricultores; 3) Rever todas as negociações em curso do comércio mundial que aprofundam o abismo da importação de alimentos, o que funciona como uma espécie de dumping mundial contra o Haiti. 4) Ajudar a encontrar recursos com países doares para suportar o plano haitiano de combate à pobreza.

PS: este texto foi produzido para integrar as ações do Blog Action Day 2008, celebrado hoje no mundo todo com o tema “pobreza” ao mesmo tempo em que são feitas centenas de atividades do Dia Mundial da Alimentação.

Biógrafo e biografado retratam Cuba

Continuo aqui a recuperar alguns textos que fiz em algum momento do passado. Aqui vale registrar uma entrevista com o poeta, artista e agitador cultural Félix Contreras, o cubano que veio ao Brasil em 2003 para lançar a tradução em português de seu livro “Eu conheci Benny Moré” – biografia do gênio da música cubana, um multi-instrumentista e cantor que viveu o auge das melodias latinas. O livro era o gancho para se discutir a cultura de um país que sabia a dor e o prazer de ser revolucionário e autoritário. O texto foi publicado na editoria de Cultura do site Ciranda Brasil, saudosa e sensacional experiência que contou com a participação dos amigos Rodrigo Savazoni, Leonardo Sakamoto, Daniel Merli, Antonio Martins, Rafael Evangelista e Antonio Biondi. Segue sem mais delongas…

Benny Moré, o gênio da música cubana
O escritor e poeta Felix Contreras lança no Brasil a biografia do cantor

Os cantores cubanos mais populares no Brasil são com certeza Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e a turma mostrada em Buena Vista Social Club, de Win Wenders. Porém, chega ao Brasil pela editora Hedra, a biografia de um dos maiores cantores da história de Cuba: Benny Moré. Um fenômeno. E, mesmo que a metáfora brasileira seja forçada, muitos o comparam a uma mistura de Orlando Silva e Pixinguinha.

O escritor, poeta e pesquisador de música cubana Félix Contreras está no Brasil para o lançamento da tradução de Yo conocí a Benny Moré (Eu conheci Benny Moré). O livro é uma coletânea de artigos e depoimentos que mostram como a vida do guajiro de Santa Isabel de las Lajas transformou-se no gênio musical. A tradução foi feita por Lucio Lisboa, José Luiz de la Hoz e Alexandre Barbosa.

Ex-guerrilheiro e amante da Revolução, Contreras concedeu entrevista exclusiva à Ciranda Brasil. Como escreveu em La música cubana – una cuestión personal, o pesquisador reafirmou que sua obra conta a história da música a partir de seus protagonistas. Falou da influência do jazz e sua particular discussão com o crítico musical José Ramos Tinhorão.

Extremamente humilde, Contreras revelou que somente com o dinheiro da edição brasileira é que poderá comprar um computador para escrever. Fumante exagerado de charutos, o escritor nos deu também sua opinião sobre o atual momento cubano. Tempos em que o presidente George W. Bush discursa contra Fidel, dizendo que “não há mais espaço para ditaduras nas Américas”.

O senhor descreveu Benny como o expoente máximo da música popular cubana. Quais os elementos que o diferenciam? Como surgiu esse grande nome?
Em primeiro lugar, é um homem privilegiado pela natureza, tinha o dom para música. Se tivesse ficado apenas em seu povoado, sua história poderia ter sido outra. Mas, Benny tinha intuição também. E a intuição aguda é própria das pessoas especiais, dos eleitos da natureza. Benny tentou se estabelecer na capital Havana, sabendo que teria dom para o canto. O início do sucesso de Benny começa na emissora de rádio Mil Diez. Acredito, pelas minhas pesquisas, que não havia em 1941, nenhuma rádio parecida em toda América Latina. A Mil Diez transmitia a melhor música do mundo, não somente a de Cuba. Eram convidados os melhores músicos eruditos e populares. Privilegiou a música de um modo extraordinário. E Benny Moré era rato da Mil Diez, acompanhava dia e noite os ensaios e a programação da rádio, embora ainda morasse na rua. Até que Mozo Borgellá, grande músico e responsável pela revelaçãode Benny, convidou-o para um dueto. Começa o mito Benny Moré.

É nesse momento que ele faz sucesso no México?
Miguel Matamoros, criador do trio mais importante de Cuba (Trio Matamoros), precisava de um cantor para uma excursão ao México. Ouviu dizer que exisitia “um grande cantante” em Havana e foi ouvi-lo. Benny exibiu-se maravilhosamente. “Ele é melhor que eu”, exclamava Matamoros. Foram para o México, onde adotou seu nome artístico “Benny”, já que Bartolo, como era chamado em Cuba, significava “burro” nas gírias. México proporcionou o desenvolvimento musical de Benny. E por lá fez grande sucesso.

Cuba sofreu claramente a influência do jazz. Aqui, o crítico José Ramos Tinhorão rejeita essa mistura na música popular brasileira. O senhor concorda com esse purismo?
O jazz chegou na música cubana na década de 20, bem antes que surgisse a bossa-nova aqui. A entrada do jazz está ligada a burguesia compretida com o capital financeiro norte-americano. Isso foi bom para a música cubana. Para mim, assimilar novas culturas não é traumático nunca. A cultura que só vê a si mesma é pobre, um paradigma muito estreito da cultura. Eu conheço o Tinhorão e somos amigos. Ele foi até Cuba um ano atrás, mas brigamos feio, porque é muito dogmático. Uma pena porque é um pesquisador muito bom. Mas não dá para negar o valor da bossa-nova, dizer que é somente o fruto do imperialismo.

Há propostas brasileiras para novas traduções?
Agora, penso na biogradia do Bola di Nieve como um segundo lançamento. É uma figura mais conhecida aqui. Está na moda. Até um documentário sobre ele foi exibido no festival É tudo verdade. Bola di Nieve gravou músicas brasileiras. “O quindim de Yayá”, de Ary Barroso, por exemplo.

Qual sua visão do regime cubano hoje?
Aguardo sempre essa pergunta. Comentei com você, que só com o dinheiro da edição brasileira de Eu conheci Benny Moré é que comprarei um computador. Não temos dólares em Cuba. Nossa moeda não tem resposta comercial nenhuma. Nós vivemos heroicamente. Mas, de qualquer maneira, a minha opinião não coincide com a da maioria. Sou um caso especial. Meu compromisso com o regime cubano tem um elemento singular.

Eu vivia numa favela antes da Revolução. Tinha 20 anos. Sem pai e mãe. Minha mãe me abandonou. Era analfabeto. Minha família materna era muito ignorante, muito explorada e muito maltratada por um capitalismo cubano que era totalmente dependente dos Estados Unidos. Quando se diz que Cuba era uma colônia dos Estados Unidos, não é um exagero. Tenho um compromisso esse regime. Nem gosto de falar “esse governo”. Gosto de dizer “meu governo”.

O senhor foi guerrilheiro?
Sim. Sou um garoto que estava a vinte anos esperando e sonhando ir à escola, ter roupa, ter sapato, trabalhar minha inteligência. E um dia, para minha surpresa, veio um governo e me deu roupas, sonhos e uma bolsa para estudar na melhor escola de Havana. Então isso me dá uma outra visão da Revolução. Eu participei da guerrilha, porém não recebi nenhum privilégio por ter sido guerrilheiro. Nada. De qualquer modo, sou um homem muito beneficiado por esse governo. Não sou socialista pelos livros. Não conheço a Revolução Cubana por uma aula, por uma história. Sou socialista porque vivi os benefícios da Revolução.

Para mim, não há capitalismo que convença a substituição do socialismo em Cuba. Apesar de que precisamos adotar muitas posições complicadas (um pouco de economia americana, um turismo que não gostamos, que banalizou muitos artistas), mas meu passado e o meu governo não vou negar. Estamos em um momento difícil, a posição da dissidência política interna chegou a um ponto complicado. Os fuzilamentos foram um golpe muito grande para mim, um ato extremo, tomado num contexto político internacional, que está muito mais difícil. Mas, foi como a política, um mal necessário.

Trabalho infantil, não!

No Brasil, ainda há quem faça vistas grossas ao trabalho infantil ligado à indústria, ao comércio e à agricultura. Conheça formas de sua empresa não compactuar com ele

Aloisio Milani
Revista Melhor – Gestão de Pessoas

O trabalho infantil persiste no Brasil. Crianças e adolescentes, proibidos por lei de trabalhar antes dos 16 anos, continuam a enfrentar serviços e empreitadas em diversos setores. Essa violação trabalhista resiste, sobretudo, dentro das famílias, na informalidade e na terceirização. O desafio é encontrar formas de monitorar as etapas de produção para evitar que o trabalho infantil esteja na cadeia produtiva das empresas.

De acordo com a última edição da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, existem 5,1 milhões de meninos e meninas trabalhando. Os dados mostram que a situação melhorou em relação à calamidade existente décadas atrás, quando eles eram encontrados irregularmente dentro das próprias empresas como parte do contingente normal de funcionários. São raríssimas essas situações hoje em dia.

Nos últimos anos, o país demonstrou que conseguiu dar importantes passos na escalada do combate ao trabalho infantil. Ao longo de 11 anos, entre 1995 e 2006, o percentual de crianças e jovens que trabalhavam baixou de 18,7% para 11,5%. Especificamente na faixa etária de 5 a 9 anos, o Brasil conseguiu reduzir os casos mais de 50%. Nem por isso a responsabilidade é menor.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o alerta continua porque a luta no ambiente familiar, na informalidade e na terceirização demanda novo fôlego e novos métodos. Os índices brasileiros melhoraram, mas é evidente que o grande número ainda exige que a sociedade, as empresas e o governo adotem ações para a erradicação dessa violação de direitos (veja BOX o que diz a legislação sobre trabalho infantil).

“No Brasil, o trabalho infantil resiste amplamente pela porta da informalidade. Temos um grande número de famílias nessa situação, em que a criança é a parte mais vulnerável, por ela ser, claro, especial em sua fase de formação”, explica Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

E, dentro das casas, na maioria das vezes de pessoas pobres, a criança trabalha e não existe fiscalização possível a intervir. A alternativa passa a ser por programas de assistência social para impedir que a criança entre na rotina de sustentação econômica da família. Segundo ela, essa situação “difusa e fragmentada” vira notícia somente em casos extremos.

Isa cita a morte do adolescente Andrei Rodrigues, 15 anos, que trabalhava irregularmente à noite na colheita da laranja na fazenda Água de Ouro, em Pederneiras (SP). Ele foi atropelado por um tratorista enquanto carregava uma sacola de 500 quilos de laranja, que seria levada por um caminhão até uma fábrica de sucos. Socorrido, o garoto não resistiu aos ferimentos.

“Temos que encontrar formas de responsabilizar empresas que recrutam crianças e as que fazem vistas grossas à sua cadeia de produção”, defende a secretária do FNPETI. A informalidade e a terceirização são preocupantes. “A globalização impõe sempre custos mais baixos. E traz a necessidade de novos modelos de monitoramento”, afirma Renato Mendes, coordenador da OIT Brasil no combate ao trabalho infantil.

Mendes lembra que alguns tipos de financiamento, do BNDES e do Banco Mundial, já exigem certificados contra trabalho infantil. “As empresas precisam cobrar isso de seus fornecedores por contrato”, diz. “No Brasil, não há um modelo 100% eficiente de monitoramento e garantia de que cada etapa da produção exclui o trabalho de crianças. Mas é possível adotar formas alternativas.”

Uma dessas formas é incluir cláusulas de quebra de contrato em caso de flagrante. Outra é incluir a proibição nos acordos coletivos dos funcionários. A OIT publicou recentemente uma cartilha com orientações específicas aos empregadores para erradicar o trabalho infantil. Uma das recomendações mais importantes é sobre o compromisso da empresa.

“O fornecedor tem de saber que você é sério contra situações de trabalho infantil. Ele
tem de estar ciente de que, se não forem tomadas medidas concretas para eliminar o
problema, os contratos serão rescindidos e não serão refeitos”, registra a guia da OIT, publicada em quatro línguas (inglês, francês, russo e espanhol), mas ainda sem versão em português.

Para endossar o compromisso, Mendes recomenda que as empresas adotem acordos e pactos já existentes, como os feitos pelo Instituto Ethos e pela Fundação Abrinq – ambas entidades sem fins-lucrativos que possuem modelos de acompanhamento, incluindo orientações para o setor corporativo.

A Fundação Abrinq desenvolve trabalho nessa área desde o começo da década de 90. Gestora do Programa Empresa Amiga da Criança, a fundação dá um selo à empresa signatária de um acordo pelo qual se compromete a banir o trabalho infantil de sua produção e alertar seus fornecedores.

“A empresa precisa ter um papel pró-ativo – acabar com a contratação de crianças internamente, cobrar seus fornecedores e exigir que eles se adequem. É preciso entender que as empresas têm poder econômico e poder para influenciar valores. Diante de sua equipe interna, dos fornecedores, dos consumidores”, explica a coordenadora do programa, Andréia Santoro.

Cerca de 1.050 empresas participam do projeto da Fundação Abrinq. Mais da metade relacionada ao setor de serviços. Ao todo, representam 39% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Andréia ressalta que uma usina de álcool já foi excluída do projeto por desrespeito ao trabalho infantil. “Faz parte da gestão do processo. Assim que ela se adequou pôde voltar ao programa”, explica.

Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego realizar fiscalizações contra o trabalho infantil. A ação é prioritária no planejamento das unidades regionais. A atuação é escolhida pelo foco econômico de cada região. O plano é montado a partir de informações da rede local de proteção à criança e ao adolescente e, em seguida, as ações são planejadas nas épocas de maior concentração do trabalho infantil.

Hoje, existe um banco de dados on-line (http://siti.mte.gov.br) para qualquer cidadão acompanhar as fiscalizações. A busca pode ser feita por cidade ou estado. Os resultados trazem o setor econômico flagrado, o número de crianças envolvido e as características do trabalho. Dados sobre empregadores não estão disponíveis. Só podem ser acessados mediante consulta nas superintendências regionais do trabalho.

No início de junho, o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, prometeu a criação de uma “lista suja” do trabalho infantil aos moldes da existente contra o trabalho escravo, embora não tenha apresentado data de divulgação. “Seria um bom instrumento para identificar flagrantes”, aponta Isa Oliveira, do FNPETI. Uma visão semelhante à de Andréa Santoro, da Fundação Abrinq.

Contudo, ambas as entidades concordam que também é preciso ir além da repressão. Ampliar a idéia no setor corporativo de que o trabalho infantil é um problema real, adotar programas de geração de renda e incentivar a educação, inclusive em lugares carentes e isolados. Isso com envolvimento do governo, das empresas e da sociedade.

 

Roteiro para as empresas
A seguir uma pequena lista de ações contra o trabalho infantil que colhemos com fontes de organizações internacionais e entidades da sociedade civil:

– Erradicação do trabalho infantil deve estar no planejamento estratégico da empresa;
– Assinar pactos setoriais com entidades como Fundação Abrinq e Instituto Ethos;
– Adotar proibições pelos acordos coletivos e códigos de ética empresarial;
– Acompanhar situação dos fornecedores de matéria-prima e dos terceirizados;
– Incluir cláusulas de rescisão de contrato em caso de flagrante de trabalho infantil;
– Criar cadastro de fornecedores infratores para impedir compras pelo tempo necessário;
– Adotar programas de treinamento e capacitação para diretorias comerciais;
– Incentivar fiscalizações trabalhistas nas dependências da empresa e nos fornecedores;
– Elaborar programas de responsabilidade social voltados aos jovens.

 

O que diz a lei sobre trabalho infantil

Crianças e adolescentes até 16 anos completos são proibidos de trabalhar, de acordo com as leis brasileiras. Depois dessa idade, é permitido o trabalho desde que seja pago um salário equivalente a de um adulto – igual ou superior a um salário mínimo. Quando há trabalho noturno, perigoso ou insalubre a autorização se dá apenas aos 18 anos, quando o jovem atinge sua maioridade. O emprego também precisa ser compatível com as atividades escolares.

Na relação com a educação, o trabalho do jovem na condição de aprendiz é permitido a partir dos 14 anos, como define a Lei 10.097. Ou seja, podem ser aprendizes em empresas que tenham um programa elaborado especificamente para recebê-los. Nenhuma outra opção é permitida. No Brasil, o trabalho infantil não é enquadrado como crime, não é uma violação à lei penal, exceto quando envolve tráfico de crianças e adolescentes, exploração sexual, venda de drogas e trabalho escravo. Nestes casos, os processos podem resultar em prisão em regime fechado para o condenado.

A legislação prevê sanções à empresa e à família no caso do flagrante. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 129 e 130, estabelece que as famílias devem ser encaminhadas a um programa oficial de proteção à família, obrigadas a matricular o filho na escola e acompanhar sua freqüência. Em casos graves, geram advertência, podendo chegar até a perda da guarda. Já a empresa que contratar criança ou adolescente é autuada em flagrante, sendo multada imediatamente. Um processo criminal pode ser instaurado caso as condições de trabalho impostas sejam degradantes.

Uma boa novidade do Brasil foi a adoção oficial de uma lista com as piores formas de trabalho infantil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto regulamentando a Convenção 182, da OIT, que lista as piores formas de trabalho infantil. Entre as 113 atividades descritas, estão: dirigir e operar tratores, máquinas agrícolas, participar do processo produtivo do carvão vegetal, fumo ou cana de açúcar, manusear agrotóxicos. “Fica claro agora para o empresariado o que é proibido expressamente”, explica Isa Oliveira.

Fonte: Revista Melhor – Gestão de Pessoas – Agosto de 2008
https://revistamelhor.com.br/revista_melhor

Parque Iguaçu é “sitiado” por transgênicos

O Parque Nacional do Iguaçu, o segundo criado no país, tem 185 mil hectares – pouco mais do que toda área da cidade de São Paulo – e está sitiado por um arco de soja transgênica. A história do plantio de organismos geneticamente modificados nas regiões próximas às unidades de conservação, onde, em tese, a biodiversidade precisaria ser preservada a todo custo, é um capítulo na grande pressão exercida por grandes agricultores e empresas de tecnologia agrícola para a legalização de um novo modelo de produção no Brasil. Baseado no uso extensivo de agrotóxicos e transgênicos da Monsanto para aumentar exponencialmente a produtividade de uma commoditie muito requisitada no comércio internacional. Mesmo que isso custasse atropelar a legislação ambiental brasileira.

Na fronteira com 14 municípios, o parque nacional está na ponta de um verdadeiro corredor da soja no Paraná, que começa na região de Londrina e segue até depois de Cascavel. Na sua parte norte, próximo a São Miguel do Iguaçu, Medianeira, Matelândia e Céu Azul, o plantio da soja chega até o limite do parque. A região sofreu a mesma pressão da entrada das sementes transgênicas contrabandeadas até a legalização do plantio por medida provisória do presidente Lula em 2003 sem a elaboração de estudos de impacto ambiental. A situação limítrofe do parque nacional ficou legalmente insustentável em 2006 quando foi comprovado que sojicultores plantavam soja transgênica dentro da zona de amortecimento, cuja extensão é de dez quilômetros, apesar das restrições da Lei de Biossegurança (11.105/05).

Uma denúncia da organização não-governamental Terra de Direitos originou uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em março de 2006, contra o plantio de transgênicos próximo ao parque. Treze proprietários de terra de lavouras de soja modificada foram multados e tiveram produção embargada, inclusive um campo experimental da multinacional Syngenta com suspeitas de plantio ilegal até de milho transgênico, variedade então proibida no Brasil. A maioria dos multados eram ligados à Cooperativa Agroindustrial Lar, uma das maiores do país, com financiamento no BNDES e que receberia quase 8 milhões de sacas de soja naquele ano. A cooperativa classificou a fiscalização do Ibama de ação irracional e começou o contra-ataque político.

A Lar articulou um grupo político para fazer o lobby em defesa dos transgênicos e para liberar a soja embargada. Num estado em que o governado Roberto Requião tinha marcado suas posições contra os transgênicos, os principais interlocutores dos sojicultores foram o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, o diretor brasileiro da Itaipu Binacional, Jorge Samek, e o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Foi fundada até uma entidade para reunir a articulação, chamada A-PROLI (Associação dos Produtores Rurais Lindeiros ao Parque Nacional do Iguaçu). O presidente Lula, quando visitou Foz do Iguaçu durante sua campanha eleitoral no segundo turno, aceitou prontamente as demandas dos agricultores. Mudou a lei para permitir o crime ambiental dos produtores de soja.

Lula editou a Medida Provisória 327 que reduziu a proibição do plantio de OGMs nas zonas de amortecimento das unidades de conservação. A MP 327 revogou o artigo 11 da Lei 10.814/03, que proibia o plantio de OGMs por 10 quilômetros do limite das unidades de conservação e terras indígenas. A distância mínima para o plantio passa a ser determinada caso-a-caso para cada uma das variedades transgênicas. Em conjunto, publicou um decreto que definia como 500 metros a distância do parque que deveria estar livre de soja transgênica resistente ao herbicida glifosato. A edição do Decreto nº 5.950 repetiu a fórmula de mudanças na lei sem a elaboração de estudos ambientais.

Na votação no Congresso, as emendas apresentadas na MP 327 ainda conseguiram liberar o algodão transgênico e reduzir o quorum necessário para aprovar novas variedades na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) – leia redação final da lei sancionada pelo presidente. Todas as alterações geraram reações de entidades ambientalistas. A redução da área de contenção ainda é uma polêmica. A ONG Terra de Direitos considera ilegal e inconstitucional as mudanças.

Outro proprietário é o próprio diretor-presidente da Cooperativa Lar, Irineo da Costa Rodrigues. Ele, um dos articuladores da redução da zona de amortecimento, planta OGMs em sua propriedade também no município de Matelândia, a cerca de 5 quilômetros da unidade de conservação. Rodrigues vende sua produção para a própria cooperativa. A propriedade de Irineo da Costa Rodrigues pode ser encontrada pelo georeferenciamento 25º13’52.40” S e 53º57’01.10” O – dá para ver pelo Google Earth.

Na última colheita de soja na safra 2007/2008, na região lindeira ao Parque Nacional do Iguaçu, pelo menos dois grandes proprietários cultivaram variedades transgênicas a menos de 10 quilômetros do parque nacional. Não há registro de transgenia a menos de 500 metros. O primeiro proprietário é Anélio Rota, de Céu Azul (PR) que usou soja modificada numa área bem próxima à sede de sua empresa, o Moinho Rota, e vendeu sua produção à cooperativa Lar. A produção estava a cerca de 6 quilômetros do parque. A propriedade de Anélio Rota pode ser encontrada pelo georeferenciamento 25º10’30.80” S e 53º54’44.60” O.

* esta apuração é um trecho ampliado do que foi publicado no relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis – impactos das lavouras na terra, no meio e na sociedade”, da Repórter Brasil.

Tesouro da música no jogo político

Samba e música clássica. Um barco dos Estados Unidos, com um estúdio de gravação, atracado no cais da Praça Mauá. Em 1940, alguns dos melhores músicos brasileiros e norte-americanos foram agentes do jogo diplomático da Segunda Guerra Mundial. Roosevelt e Getúlio, diálogo intermitente por conta da política pendular. O Brasil ainda não se posicionou diante do conflito mundial. (Corta)

Fuçando meus arquivos, lembrei de um assunto que gostei muito de pesquisar. A Missão Stokowski. Hein? Explico. Essa pauta eu transformei numa reportagem para a Revista Carta Capital, lá atrás, em abril de 2002. Aí, pensei. Vou colocar a dita no blog com uns áudios e umas imagens da pesquisa. Vai ficar bem melhor para ler, assim podendo ouvir. Eis o remix de uma reportagem. (Segundo corte)

Tesouro perdido da Missão Stokowski
Com a ajuda de Villa-Lobos e da nata da música brasileira, o maestro registrou 40 músicas no Rio, em 1940. A maior parte do material está sumida. Há planos de fazer um filme e lançar um CD com o que restou.

A política de boa vizinhança durante a Segunda Guerra Mundial foi a arma dos Estados Unidos para estreitar as relações culturais com o Brasil. Duas viagens ficaram famosas nesse período: a de Walt Disney, em 1941, e a de Orson Welles, em 1942. Mas, antes dos dois, outro artista ilustre já havia desembarcado em terras brasileiras para vender a idéia da unidade pan-americana. Leopold Stokowski, o maestro da trilha do filme Fantasia, protagonizou um flerte com a música brasileira. Um acontecimento que até hoje é pouco estudado mesmo nos livros de História do período.

Foi no dia 7 de agosto de 1940. Nesse dia chegou ao Rio de Janeiro o navio Uruguai, em missão oficial norte-americana. Não trazia somente militares. A bordo estavam Leopold Stokowski e os 109 músicos da All American Youth Orchestra, para apresentações no Teatro Municipal. Era a primeira parada de uma excursão pela América do Sul, que incluiu São Paulo e Buenos Aires.


Depois do concerto com direito a Brahms, Wagner e Tchaikovski, o regente Stokowski voltou ao navio para gravar música brasileira. Isso mesmo. Durante oito horas seguidas foram gravadas 40 músicas nacionais num estúdio da Columbia dentro do próprio Uruguay. No elenco musical, os melhores representantes brasileiros: de Pixinguinha a Cartola, de Villa-Lobos a Jararaca e Ratinho. Realmente uma jóia, ouro puro.

Essa é a história de Native Brazilian Music, um disco brasileiro lançado somente nos Estados Unidos. Uma gravação de pouca memória, mas um marco do namoro cultural dos dois países. Com um pé na política e outro na arte, o disco resultou inacabado. É uma propriedade dos gringos e, mesmo por lá, ficou esquecido. Os fonogramas originais até hoje estão desaparecidos.

Agora o Museu Villa-Lobos e a Academia Brasileira de Música planejam remasterizar o álbum em CD no Brasil. O diretor de cinema Marcelo Serra também tem um projeto para rodar um curta-metragem intitulado Missão Stokowski. Um mote para que a história renasça.

Quando Stokowski escreveu para o maestro Villa-Lobos, pedindo-lhe que organizasse artistas da legítima música brasileira para gravar um disco, não fazia idéia do que estava por vir. Reuniram-se o samba, a macumba, o choro, a embolada, o cântico indígena, o frevo e o maxixe. Atracado no armazém 4 do cais da Praça Mauá, o salão do navio, equipado com estúdio, ficou cheio de jornalistas, fotógrafos e músicos da All American Youth Orchestra. O Tio Sam viu nossa batucada. Provavelmente, numa das primeiras vezes.

Já era quase meia-noite quando começaram as gravações. Pixinguinha soprou seus solos de flauta por vários números. Segundo registros de O Globo, o solo de “Urubu Malandro” arrancou elogios: “Esse é um dos melhores flautistas que já ouvi”, disse um dos chefes de grupo da orquestra. Quem estava ali também presenciou o primeiro registro solo da voz de Cartola. Isso bem antes do seu primeiro LP, lançado pela gravadora Marcus Pereira em 1974.

Cartola cantou “Quem me Vê Sorrir”, “Tristeza”, “Meu Amor” e “Primeiro Amor”, todas com coro e batida da Velha Guarda. Villa-Lobos conhecia a roda da Mangueira como a palma da mão. Dela selecionou a macumba e o samba: Cartola, Zé da Zilda, Zé Espinguela, Aluísio Dias, e o coro das pastoras com Dona Neuma, Cecéia, Nadir, Ornélia, Guiomar, Nesília e Neguinha. Carlos Cachaça, assim como Ataulfo Alves, não foi porque estava trabalhando. O samba também viria representado por Donga, um amigo pessoal de Villa-Lobos, e que ajudou a selecionar os grupos musicais.

Donga deixou sua marca. Depois do clássico “Pelo Telefone”, o primeiro samba registrado no Brasil, emplacou outras oito canções que foram selecionadas para o álbum. A essa altura, até o capitão do grande navio sentou-se para apreciar os brasileiros.

O pai-de-santo Zé Espinguela, conhecido também como Pai Alufá, trouxe o ritmo marcante da origem africana. Macumba de Oxóssi e Macumba de Iansã devem ter incomodado bastante os ouvidos clássicos de quem ainda rejeitava o popular. Mais cômico somente imaginar o erudito Stokowski assistir à embolada de Jararaca e Ratinho: “O sapo dentro do saco,/ o saco c’um sapo dentro,/ o sapo batendo papo,/ o papo fazendo vento”.

No salão foi servido um banquete. No livro Cartola: Todo o Tempo que Eu Viver, do cineasta Roberto Moura, Dona Neuma se lembra: “Eu ainda era criança… foi a primeira vez que nós comemos peru com abacaxi, carne de porco com ameixa, um jantar luxuoso. O samba rolou até de manhã. Nós cantamos num palco, ele (Stokowski) regendo”.

Regeu, mas pouco. Stokowski retirou-se para seu quarto por volta das 3 da manhã. Deixou as gravações sob o cuidado de seu assessor, Michel Meyeberg. Os números continuaram com Zé da Zilda, João da Baiana, Luís Americano, Paulo da Portela, Laurindo de Almeida, Augusto Calheiros, David Nasser, Janir Martins.

Toda essa epopéia tem um outro lado, o político. Em fevereiro de 1940, Stokowski enviou uma carta ao secretário de Estado Cordell Hull pedindo para excursionar com sua orquestra pela América do Sul. A resposta chegou rapidamente, 12 dias depois. Era um “sim” bem largo com a aprovação do presidente Roosevelt. Em tempos de guerra, cativar laços com o vizinho verde-amarelo não era perda de tempo. Ainda mais com as suspeitas de que Getúlio Vargas poderia trocar figurinhas com o nazismo.

Foi quando Heitor Villa-Lobos recebeu a carta de Stokowski, que pedia o favor de organizar músicos da legítima música brasileira para uma gravação a ser utilizada num futuro Congresso Pan-americano de Folclore. Uma tentativa de unir a América por laços culturais. Só que o evento nunca iria acontecer.

Donga selecionou os músicos a pedido do próprio Villa-Lobos. Donga era rato das rodas de samba e de candomblé. Era amigo de Pixinguinha e Zé Espinguela, dois grandes conhecedores da nossa música. Com o projeto feito, Donga pediu, por carta, um “adeantamento” em dinheiro para o cachê dos grupos. Villa-Lobos vai além. Pede a Stokowski US$ 500 (em valores da época) e faz a exigência de que cópias dos originais fiquem no Rio.

Não há registro algum de que esse dinheiro chegou nem que os originais ficaram por aqui. A filha de Donga, Lygia Santos, confirma que o pai não recebeu um tostão. Cartola, um ano e meio depois, recebeu “1$500”, o que comprava só três maços de cigarro. Sobre o restante do grupo? Ninguém recebeu nada.

Parecia um pouco desleixado demais, para não dizer uma jogada política. O jornal Folha da Manhã cita que, na missão oficial, também chegaram tenentes da Aeronáutica americana e outros oficiais. O major Edwin Luther Sibert é um exemplo. Novo adido militar, ele falou ao jornal que seu cargo no Brasil seria muito importante. Quem enfatizou isso a ele, afirma, foi o próprio general George Marshall.

O presidente Roosevelt, no mesmo dia da chegada do navio, afirma nas páginas do Jornal do Brasil: “Falando à imprensa, o presidente Roosevelt diz que a unidade pan-americana é agora, sem dúvida, um fato muito mais concreto do que em qualquer ocasião anterior”.

Aqui já estava o coronel americano Lehman Miller, que foi receber o navio no cais. Miller era o chefe da missão militar americana para estudar a defesa da costa brasileira. Um documento secreto, citado por Moniz Bandeira, no livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, mostra o coronel como autor do plano de “utilização” das bases, portos, estradas e comunicações do Brasil pelas Forças Armadas americanas, caso se tornasse necessário. Fez também um pedido pessoal ao general Góes Monteiro para que mobilizasse a opinião pública a favor dos americanos. Tinha caroço nesse angu.

“Já não pertence mais à praça. Já não é samba de terreiro. Vitorioso ele partiu para o estrangeiro.” Foi assim como canta o samba de Cartola e Carlos Cachaça que Native Brazilian Music começou a ficar no esquecimento. Os próprios livros de história sobre a política da boa vizinhança não citam Stokowski como personagem importante.

Se a viagem não rendeu um disco com a propaganda que se esperava, ela foi pelo menos uma das primeiras tentativas de aproximar as duas almas americanas. Os principais dados existentes sobre essa viagem estão nos livros Pixinguinha – Filho de Ogum Bexiguento e Cartola – os Tempos Idos, os dois de autoria de Marília Barboza e Arthur de Oliveira.

Foi lendo e procurando os detalhes que a jornalista americana Daniella Thompson se atolou até o pescoço com a história. Aos 56 anos, é formada em Literatura Inglesa pela Universidade de Tel-Aviv, em Israel. Roteirista e jornalista, Daniella apaixonou-se pela música brasileira. Começou a escrever para uma revista mensal de Los Angeles, chamada Brazzil, na qual publicou um grande artigo sobre o disco quando a história completou 60 anos.

Ela relembra no texto que a viagem de Stokowski foi anterior à criação de Zé Carioca, por Walt Disney, e às filmagens de Orson Welles para o documentário It’s All True. Com um grande panorama do disco, Daniella começou uma busca desenfreada pelos 40 fonogramas originais, que, em tese, deveriam estar nos arquivos da Columbia, hoje pertencentes à Sony Music americana. “A gravadora nunca respondeu a meus pedidos de procura e não há pistas sobre a possibilidade de estarem no Brasil”, diz.

Daniella Thompson aponta os descuidos com a gravação. Tinha problemas na qualidade do som, o que, para ela, pode ter feito várias músicas serem descartadas. “O técnico de som era norte-americano – pouco familiar com música e instrumentos afro-brasileiros – e ele teve de se contentar em gravar até o último dos 40 números em uma única sessão. Esse era apenas o primeiro sinal de que o bom vizinho do Brasil não dava muita importância para a música.”

De concreto mesmo só a certeza de que a excursão de Stokowski existiu e de que o disco, com 16 músicas, foi lançado às pressas e com muitas imperfeições. A mágica da política.

O desleixo dos gringos
Só 16 das 40 músicas foram aproveitadas no disco americano. Quase todas as faixas saíram com erros grosseiros de grafia

O nome do lançamento foi Columbia Presents – Native Brazilian Music – Leopold Stokowski. Dois 78 rotações com quatro músicas de cada lado. De um total de 40 gravações feitas no navio, apenas 16 foram aproveitadas. Ficaram belas músicas, perderam-se raridades. Um tesouro rachado ao meio.

A deficiência na qualidade de som pode ter vitimado composições como Urubu Malandro, de Pixinguinha. De Cartola somente Quem me Vê Sorrir foi encaixada. Samba da Lua e Sofre quem Faz Sofrer, de Donga e David Nasser, também ficaram para trás.

Mas o pior está por vir. Marília Barboza e Arthur de Oliveira reproduzem em seus livros os erros na grafia dos nomes dos autores e das músicas, que estão em quase todas as faixas: “Jose Espingucla, Rae Alufá, Samba Concao, Macumba de Ochocê, Tocanda pra voce, Passarinho baleu asa, Zamba”, etc. Frustrante para qualquer um.

A capa do álbum possui a silhueta de três rostos, cada um representando as raças formadoras do Brasil. O texto de apresentação afirma que Stokowski escolheu o que pensou ser o melhor e o mais típico. Ele selecionou e supervisionou pessoalmente as gravações. Propaganda demais, mas pouco resultado para quem se dizia amante da cultura brasileira.

Em 1987, o Museu Villa-Lobos lançou o disco remasterizado em long-play. Até então, uma das únicas gravações que estavam no Brasil pertencia ao crítico de música Lúcio Rangel. Justamente um amigo dele, o pesquisador Suetônio Valença, acabará sendo o responsável pela edição brasileira de Native Brazilian Music.

A edição foi limitada e logo se esgotou. Os encartes possuem referências sobre a política da boa vizinhança, um texto do historiador Ary Vasconcelos e as correções dos nomes das músicas. É sensacional escutar o samba “Seu Mané Luís”, o maracatu Zé Barbino, a embolada “Sapo no Saco” e os cânticos indígenas do coro do Orfeão Villa-Lobos.

“Para mim, o disco é uma síntese da música popular da época. É um documento importante sobre o momento em que a música vivia”, afirma Suetônio. Será essa edição que ganhará o suporte digital do CD. “Já temos a verba, só falta a autorização da Sony Music, que tem os diretos da Columbia”, diz Turíbio Santos, diretor do museu.

Nas telas, a visão de uma tragédia
O cineasta Marcelo Serra planeja filmar Missão Stokowski, com o diretor José Celso Martinez no papel do maestro estrangeiro. Tal qual o drama dos jangadeiros, filmado por Orson Welles, Native Brazilian Music tem tudo para virar uma produção para o cinema. O diretor Marcelo Serra tornou-se mais um apaixonado pela história. “Ao mesmo tempo que é sensacional pelos detalhes, é uma tragédia. A gravação da cultura brasileira foi tratada somente para instrumento da política da boa vizinhança”, define.

A trajetória do disco da Columbia seria contada na produção Missão Stokowski, que já tem projeto pronto. Embora esteja à espera de recursos para iniciar a filmagem, Marcelo já rodou algumas entrevistas com pesquisadores do disco, inclusive a jornalista Daniella Thompson. Esse material renderia um documentário, só que a sua idéia principal seria fazer uma releitura do acontecimento. Um curta-metragem atual de uma história antiga.

“Além da ausência de imagens de época para só um documentário, eu gosto de jogar com esse dueto realidade e ficção”, explica Serra. “Seria uma mistura de esquetes com realidade para parodiar passagens e encontros de artistas, aproximando o erudito do popular.” Para dar uma visão atual, Marcelo mostraria o que há de mais autêntico na música brasileira hoje.

Para o elenco, Serra quer convidar Paulo Moura para viver Pixinguinha, Seu Jorge para Zé Espinguela e Yamandú Costa para Villa-Lobos. José Celso Martinez, “o melhor maestro de atores que conheço”, elogia o cineasta, já aceitou fazer o maestro Stokowski. O roteiro ainda possui o enigmático personagem Mr. Broadcast, responsável por manipular a própria trama e jogar ao mar os originais das gravações recém-saídas do forno. Marcelo Serra aguarda o financiamento das produtoras às quais entregou o projeto. É esperar para ver.

Quebra do vazio sanitário da soja

O cultivo de soja no Brasil precisa enfrentar o combate à ferrugem asiática, uma das principais patologias que acomete a plantação. A doença traz a desfolha precoce da planta e o comprometimento da formação da vagem e do grão. A perda da colheita pode chegar a 90% da área plantada. Como precaução, após ter sido registrada em vários pontos do Brasil, instalou-se uma medida preventiva para conter o seu avanço. É o chamado “vazio sanitário”, que é a proibição do plantio de nova área de soja, na safrinha, logo após a colheita da mesma cultura. Não é permitido plantar soja no lugar que se colheu soja há dias. Só na próxima safra. Isso porque o fungo se alastra mais durante o inverno. Sem a planta, o fundo morreria em cerca de 60 dias. Com o segundo plantio, a safrinha traria um elo da doença para a próxima lavoura.

Depois que a doença atingiu 22 milhões de hectares de soja, nove estados brasileiros passaram a adotaram o “vazio sanitário”: Tocantins, Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Paraná. Este último o segundo maior produtor de soja do país. Com a sedução do preço da soja em relação ao milho ou outros produtos, alguns agricultores ainda persistem em furar a regra. Na região próxima ao Parque Nacional do Iguaçu, agora na safrinha, temos o exemplo de uma propriedade no município de Serranópolis (PR) que plantou novo lote de soja após a colheita. A foto abaixo foi tirada de uma estrada pública e mostra a germinação em abril de uma nova área de soja, o que desrespeita a legislação sanitária. O proprietário está sujeito à multa e com a possibilidade de perder toda a produção.

* esta apuração faz parte do projeto do Centro de Monitoramente dos Agrocombustíveis, da Repórter Brasil. Para ler mais, faça o download do relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis”. Clique aqui.

Expansão “brasiguaia” da soja

A soja é um dos itens de maior peso da economia do Paraguai. A produção nacional é estimada em 7,5 milhões de toneladas na safra 2007/2008 – muito se comparado ao tamanho relativamente pequeno do país e à sua população de 6,6 milhões de habitantes. A expansão da sojicultura começou há 30 anos, quando a colheita atingia cerca de 500 mil toneladas. Hoje, o país já está entre os dez maiores produtores do mundo, segundo dados comparativos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

A história do avanço da soja em terras paraguaias, assim como a da modernização agrícola e a dos impactos sociais causados por ela, estão totalmente vinculadas à expansão da cultura no Brasil, a partir da década de 1970. À época da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, fazendeiros, sobretudo os paranaenses, começaram a ocupar terras no Paraguai, atraídos pela proximidade geográfica, o baixo preço da terra e o apoio explícito da ditadura do general Alfredo Stroessner.

Proprietários rurais estimam que a venda de um hectare de terra em uma região sojeira do Paraná resultava em uma quantidade de dinheiro suficiente para comprar, em média, outros quatro hectares no Paraguai. Ou seja, a oportunidade faria com que pequenos e médios produtores pudessem ampliar sua produção. É o caso de brasileiros dos municípios paranaenses de Londrina, Palotina, Cascavel, Marechal Rondon e Campo Mourão, que hoje vivem no país vizinho. Além da venda da terra, o dinheiro acumulado com a produção da soja e o desestímulo devido à decadência do café eram o motor para os “pioneiros” cruzarem a fronteira.

O fazendeiro Virgílio Moreira chegou no final da década de 1970 ao distrito de La Paloma, no Departamento (área administrativa equivalente aos Estados brasileiros) de Canindeyú. Vendeu suas terras no Paraná para se mudar. Segundo ele, á época, havia quem conseguisse comprar 30 vezes mais terras no Paraguai do que possuía no Brasil. “Uma coisa de louco”, recorda-se. Hoje, mora com a família em uma boa casa avarandada, cercada por uma fileira de eucaliptos. O restante da paisagem até o horizonte é soja transgênica – dois mil hectares plantados junto com outros brasileiros. Na safra 2007/2008, o grupo espera conseguir ao menos US$ 800 mil com a venda do produto. La Paloma tem brasileiros donos de silos, empresas de transporte e tecnologia agrícola importada do Brasil.

O brasileiro naturalizado paraguaio Tranquilo Fávero é hoje considerado o maior produtor de soja do Paraguai. Tem propriedades em 13 diferentes departamentos para o plantio de soja e outras culturas, como milho, sorgo, trigo, canola e girassol, além da criação de gado. A entrada intensa do capital brasileiro na agricultura paraguaia acabou por concentrar terras e colocar em risco a produção de subsistência dos pequenos agricultores. O formato de ocupação trouxe impactos semelhantes à modernização da agricultura no Paraná: êxodo rural, concentração de renda, baixa geração de emprego e trabalho em condições degradantes na abertura das fronteiras agrícolas nas décadas de 1970 e 1980.

Impulsionada pelo capital agrícola brasileiro, a soja ocupou vasta área de fronteira, nos departamentos de Canindeyú, Alto Paraná, Itapua, chegando até Caagazú, San Pedro e Guairá – este do lado paraguaio. Aprofundaram-se os laços de integração com o Brasil – e também os de dependência. A sojicultura paraguaia depende do capital de imigrantes brasileiros e das companhias transnacionais, como ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.

Além dos trabalhadores paraguaios, milhares de brasileiros imigraram em busca de emprego. Muitos foram foram submetidos a trabalho escravo, tratados de forma desumana e impedidos de deixar o serviço, em plantações de hortelã, na produção de carvão e na preparação do solo para os sojicultores. Até o começo da década de 90, eram comuns as denúncias chegarem até o lado brasileiro. Reinaldo de Oliveira Paz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guairá, município paranaense localizado na fronteira com o Paraguai, conta que chegou a receber pessoas que fugiam de fazendas. “Eram muitos casos. Tinha gente que fugia das fazendas e chegava ao Brasil atravessando o rio à noite”, relata. A situaçao trabalhista continua precária em muitas fazendas, desrespeitando tanto liberdades individuais quanto direitos humanos.

Nesse contexto, entidades sociais paraguaias e brasileiras discutem a implantação de um Pacto Sul Americano pela Erradicação do Trabalho Escravo, nos moldes do Pacto Brasileiro, fazendo com que empresas que atuem no Paraguai assumam os mesmos compromissos de promoção do trabalho decente com os quais se comprometeram no Brasil.

Em paralelo, o Paraguai passa a conviver com uma inflação dos preços da comida. Os itens alimentares que fazem parte do Índice de Precios al Consumidor (IPC) aumentaram 6,1% no primeiro trimestre de 2008, puxando a inflação global para 3,6% no período. O país tem produção agrícola para atender sua população, embora não consiga distribuí-la igualitariamente. Com grande parte da agricultura voltada para as exportações, a soberania alimentar de sua população torna-se vulnerável às altas das cotações internacionais e à demanda crescente de países consumidores.

*esta análise faz parte do relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis, impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade – soja e mamona”, produzido e publicado pela Repórter Brasil.

Guerrilheiro da Farc acusa crime de perfídia

É a primeira declaração de um representante dos guerrilheiros das Farc após a operação de resgate de Ingrid Betancourt, na Colômbia. Por meio de um advogado, o guerrilheiro Gerardo Antonio Aguilar, nome verdadeiro de “César” que foi detido na operação, disse que viu o emblema do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) nos militares disfarçados. A reportagem da EFE dá a versão do guerrilheiro, mas não explica o motivo da declaração. Como apontei aqui no blog, a situação é a suspeita de crime de perfídia, uma violação da Convenção de Genebra que trata dos crimes de guerra.

As descrições anteriores dos oficiais e da imprensa sobre a operação falam que os helicópteros usavam apenas pintura branca e vermelha, o que induz a pensar em organizações não-governamentais, como CICV. Mas não havia relatos do uso dos emblemas oficiais, o que configuraria crime de perfídia. O Comitê nega que tenha recebido qualquer solicitação ou tenha participado da operação. O guerrilheiro acusa que havia o uso dos emblemas, embora a reportagem não aponte onde ou em quem. Pode ser até um blefe bem dado do advogado de Aguilar, diante de alguns indícios.

Atrás dessa notícia, entrevistei Tarciso Del Maso Jardim, um brasileiro, consultor do Senado para assuntos de direito humanirário internacional e direitos humanos, que mora atualmente na França. Por e-mail, conversamos sobre os limites da operação e a possível configuração de abuso do uso do emblema “civil”, “imparcial”, para “socorro de vítimas de guerra”, por um grupo militar. Segundo ele, a operação mostra que houve uma atuação no “limite da legalidade”. E, ao que parece, estavam muito bem orientados para esse limite tênue. A seguir o comentário dele.

O governo colombiano atuou no limite da legalidade para descaracterizar o resgate da Ingrid Betancourt e dos demais reféns do crime de perfídia. Originalmente previsto para conflitos armados internacionais, o crime de perfídia se diferencia das permitidas artimanhas de guerra, pois são atos dissimulados destinados a enganar o adversário com a finalidade de matá-lo, feri-lo ou capturá-lo. Por exemplo, disfarçar-se de pessoa protegida pelo direito internacional humanitário para tal fim seria perfídia, como seria o caso se militares colombianos se disfarçassem de membros de organização da sociedade civil e ocultassem helicóptero militar sob cores civis, similar ao feito, porém para atacar os guerrilheiros. Esse tipo penal é incorporado pelo direito colombiano (artigo 143 do Código Penal colombiano) e estendido a todos os conflitos armados, inclusive os internos, e seria o ato de combate com objetivo de causar dano ou de atacar o adversário mediante uso de sinais protetores como a cruz vermelha ou simulando ser pessoas protegidas pelo direito internacional. Entretanto, o objetivo do exército colombiano não foi matar ou causar dano ao inimigo, mas salvar reféns, o que constitui a interrupção de outro crime internacional. Os soldados rendidos pelo exército na operação não eram o alvo desta, não houve esse dolo e o direito penal não admite esse tipo de analogia. Mas importa corrigir o veiculado pelas fontes oficiais, de que os demais guerrilheiros, que estavam no local do resgate e não adentraram o helicóptero de salvamento, não foram mortos somente porque isso prejudicaria a liberação de outros reféns, pois, na verdade, se o exército colombiano os atacasse estaria cometendo o crime de perfídia. A seguir o divulgado, parece que estavam muito bem orientados para atuar no limite da legalidade.

Resgate de Ingrid e crime de perfídia

A partir da notícia da libertação da ex-candidata à presidência colombiana Ingrid Betancourt, o que se seguiu pelos sites e jornais do mundo foi uma série de informações apressadas sobre os detalhes da operação. Apenas no dia seguinte, começaram a aparecer mais detalhes do resgate. O que me intrigou de cara foi como os militares colombianos teriam manipulado os rebeldes para levá-los a um helicóptero desconhecido. Depois, li que eles tinham infiltrado agentes na cúpula do movimento. Agora, passados alguns dias, com versões divulgadas e desmentidas, há algum balanço “oficial” do que foi a operação (veja infográfico do G1).

Não acho defensável nem apoio a luta armada paraestatal das Farc na Colômbia, além de sua ligação com o narcotráfico e sua metodologia de seqüestros para arrecadar dinheiro. Mas também não posso deixar de comentar que o resgate de Ingrid Betancourt, organizado pelo Ministério da Defesa da Colômbia, violou uma das convenções de Genebra – aquela que dispões sobre crimes de guerra. O uso de um helicóptero, pintado de branco e vermelho (embora sem nenhum emblema de organização humanitária, como aparece nas imagens), traveste a aeronave como civil. Isso constitui um uso impróprio do significado imparcial de ações humanitárias.

Os militares colombianos infiltrados teriam conseguido convencer os guerrilheiros a reunir os reféns num só grupo, pois estavam em três células diferentes. Um helicóptero militar simulava o transporte de uma ONG “fictícia” e levaria todos os reféns para o sul do país, onde estaria o atual líder Alfonso Cano. Na verdade, a aeronave era dos militares. O grupo renderia os rebeldes e resgataria 15 reféns. À época da negociação da libertação de reféns por intermédio do presidente venezuelano Hugo Chávez, a “ong” que faria o transporte com princípio humanitário (logo imparcial), seria o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

O uso do branco e vermelho é referência clara a serviços médicos e humanitários em tempos de guerra. Usá-lo numa operação dessa deve ser, no mínimo, explicado pela autoridades. Apesar de que a Colômbia já tem histórico de violações: já invadiram o território soberano de outro país, o Equador, para executar rebeldes; que já tinha sido acusado do mesmo crime de perfídia nesta operação; que até pactuaram com a invasão do espaço aéreo brasileiro por um avião francês, em 2003, numa outra tentativa de resgate de Igrid. São precedentes ruins para a negociação de processos de paz e, principalmente, para quem defende as vítimas. De qualquer lado da guerra.

“Soja logo ali, ó”, aponta o líder Kaingang

Confinados numa área de cerca de dois hectares, na zona rural do município de Laranjeiras do Sul, interior do Paraná, o povo Kaingang espera a posse definitiva de sua terra, a Boa Vista. São 34 famílias, totalizando 130 índigenas, que estão em barracos de madeira e telha de fibras com cimento, doadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ou em simples barracos de lona. Há três banheiros construídos pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a captação da água acontece fora da área da aldeia, em um local facilmente atingido por pulverizações de agrotóxicos da soja. Aliás, os sojicultores são muitos em torno da área e dentro da terra indígena de cerca de 7 mil hectares.

Os Kaingang tiveram reconhecidas oficialmente suas terras e sua cultura com a portaria declaratória, publicada em outubro de 2007, a partir do estudo antropológico da professora Cecília Maria Helm, da Universidade Federal do Paraná. Ainda falta a homologação e a retirada definitiva dos não-índios da terra. Os registros oficiais analisados no estudo antropológico mostram a presença antiga dos Kaigang na região. Foram expulsos da terra quando os fazendeiros Juvenal Alves Pires e Antônio Alves Pires anexaram e arrendaram a terra indígena no início do século passado. Na década de 30, houve a titulação das terras sem considerar os direitos do grupo.

Depois de viverem mais de três décadas no “exílio” em outras terras indígenas, em 1995, um grupo de antigos moradores da Boa Vista se mobilizou e realizou uma retomada na terra tradicional. Montaram acampamento e, desde então, vivem uma atitude de permanente reivindicação do direito fundamental à sua terra tradicional. Contra eles, a pressão era constante, principalmente até a publicação da portaria que reconhece a terra. Houve até assassinato de um índio por peões da fazenda vizinha.

A situação amenizou-se nos últimos tempos segundo os próprios índios, embora a aldeia esteja cercada de uma plantação de soja transgênica, cujo agrotóxico traz incômodo para os Kaigang. Funcionários do arrendatário Otomar Civa, presidente da comissão dos não-índios da terra Boa Vista, fazem pulverização de agrotóxicos diante dos olhos e narizes de toda a aldeia, situada a menos de 20 metros do limite da plantação de soja.

“Olha a soja logo ali, ó. A gente sente o cheiro forte quando eles passam com agrotóxicos. Aí, muita gente sente dor de cabeça, as crianças ficam com diarréia, é muito ruim”, diz a liderança Lucas Kaingang. Até hoje, nenhum exame de contaminação da água e do solo foi feito no período próximo às pulverizações para checar o tamanho do impacto na água e na terra. Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a situação é uma forma de os fazendeiros manterem uma pressão, mesmo com o reconhecimento oficial da terra Kaingang.


(( Esta reportagem foi produzida para a ONG Repórter Brasil. Trechos dessa apuração entraram no relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis – os impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade”. Mais sobre comunidades indígenas na página 31 ))

Morro da Providência e a ética do capitão Nascimento

Wellington Gonzaga de Costa, de 19 anos, Marcos Paulo da Silva Correia, de 17, e David Wilson Florêncio, de 24. São esses os nomes dos três jovens do Morro da Providência que foram assassinados por traficantes de uma favela vizinha após terem sido entregues de bandeja por militares do Exército. Os fatos, investigados pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, acabaram por se tornar a quinta parte da série “Haiti e Rio de Janeiro, campos militares brasileiros”. Sobretudo porque “desvios de conduta” como esses racham as diretrizes gerais da segurança pública e dos direitos humanos.

O que os militares fizeram com os três jovens afirma a ética do Capitão Nascimento, protagonista polêmico do filme Tropa de Elite. Dividir o mundo em dois: bandidos e corruptos de um lado e agentes eficientes e eleitos da ordem para o outro. Em nome dela, os fins justificam os meios. Como discuti em “A fina navalha da força militar”. A tese do capitão do Bope admite tortura com saco-plástico ou a entrega de “suspeitos” a uma facção rival no Morro da Mineira. O desfecho da oferta aos traficantes nesse caso era certo. Iriam matá-los. Com isso, os militares teriam incentivado a execução dos jovens.

Os detalhes da investigação da polícia civil apontam que pelo menos três militares confessaram a entrega dos jovens a traficantes da facção . No Instituto Médico-Legal (IML) de Caxias, constatou-se que o adolescente de 17 anos foi executado com dois tiros e os outros dois jovens, com cerca de 20 cada. A maioria dos tiros foi feita no rosto. Após o enterro dos jovens nesta segunda-feira (16), moradores protestaram em frente à sede do Comando Militar do Leste. Há quem diga ainda que moradores criticavam o Exército a mando dos traficantes, mas com esse fato fica difícil acreditar nessa versão.

Agência Estado

O trabalho do Exército na região é uma ação subsidiária (prevista constitucionalmente) por um acordo com o Ministério das Cidades para o programa Cimento Social, que prevê a execução de obras em residências no valor de R$ 12 milhões. O grupo que atua no Morro da Providência advém, em sua maioria, da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada, grupamento que cedeu no ano passado um contingente que atuou na força de paz do Haiti. Inclusive um de seus comandantes, o general Williams José Soares. Havia semelhanças com a ação da Minustah até na realização de ações cívico sociais (acisos).

No Morro da Providência, os militares do Exército estavam desde dezembro. A chegada do grupo aconteceu também em meio a um outro impasse. Diante da dominação do morro por traficantes do Comando Vermelho, moradores rejeitavam a presença dos militares por temerem confrontos maiores. Souberam da participação do Exército no programa Cimento Social somente no dia em que as tropas desembarcaram na comunidade. O projeto é de autoria de um ex-oficial do Exército, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que, segundo reportagem de O Globo, também fez segredo da ação militar.

Em 2006, a mesma comunidade havia passado por uma ocupação do Exército para a tentativa de recuperação de dez fuzis roubados de um quartel. À época, a ação também foi criticada por moradores e aplaudida pela classe média da capital. Um cabo fuzileiro naval desertor, Evanilson Marques da Silva, o Dão, foi investigado por ligação com o tráfico de drogas no morro. A ação gerou diversos tiroteios entre traficantes e militares. As armas foram recuperadas ao final e o Exército deixou a favela.

Há excessos e desvios de conduta em toda e qualquer categoria profissional, como médicos, advogados, jornalistas e militares. Mas não quero escrever sobre porcentagens ou probabilidades. O fato é que os reconhecidos “desvios de conduta” mostram que muitas vezes há um despreparo semelhante entre integrantes das Forças Armadas e os policiais militares que atuam no Rio de Janeiro. A ética do enfrentamento do crime transcende organizações. A discussão sobre o uso das Forças Armadas em conflitos urbanos também precisa ser feita nesses parâmetros.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, classificou os fatos como um “caso isolado de personagens absolutamente irresponsáveis”. Na semana passada, ele reiterou que o projeto para a criação de uma legislação específica para a atuação direta das Forças Armadas em situações de conflitos urbanos deve ser encaminhado ao Congresso Nacional até o final deste ano. “A última grande ação neste sentido ocorreu em 1994, no Rio. Mas o que restou dessa operação? Temos tenentes, sargentos e cabos respondendo a processos na Justiça, sob alegação de atos criminais. E o pior, eles têm de pagar pelo trabalho de advogados de defesa. Ou se muda isso ou não tem conversa.”

A questão é se o país conseguirá amadurecer um sistema de vigilância humanitária até lá para conter “desvios de conduta”. Porque nem de perto teremos a estrutura fiscalizadora que as Nações Unidas mantêm no Haiti, ainda que não sejam onipresentes e infalíveis. Ou correrão o risco de se tornar mais uma força armada no jogo conflituoso do tráfico, do poder e da violação dos direitos. Tal como os militares tentam combater tanto em Porto Príncipe. Agora, é saber como serão julgados os envolvidos, réus confessos. Se na Justiça comum ou na Justiça Militar.

Água de beber? É a luta haitiana

“Haiti: a luta pela água”. Essa é a versão traduzida do título de um especial do Frontline/PBS que assisti neste final de semana. O especial multimídia foi feito em julho de 2004, primeiro mês após a chegada da atual força de paz das Nações Unidas. Portanto, também antes da passagem do furacão Jeanne. Shoshana Guy passou cerca de três semanas no Haiti para registrar a dificuldade de acesso à água potável. Segundo a apuração dela, 60% das pessoas não tinham acesso à água limpa. O roteiro percorre essa luta na casa das famílias, na comunidade, com os caminhões de água, com os vendedores de rua, no hospital e na sagrada cerimônia do vodu.

Capacetes-azuis treinaram na favela do Bope

Diante dos olhos e narizes dos cariocas, há uma constatação. A única favela do Rio de Janeiro que está sob o comando pleno e duradouro da polícia chama-se Tavares Bastos, no bairro de Laranjeiras. Ali não estão as facções criminosas dos narcotraficantes, nem as milícias com sua segurança paraestatal. No alto do morro rochoso, onde se vê o céu azul, o vôo planador dos urubus e a orla carioca, está aquartelada a tropa de elite da polícia militar do estado – o Batalhão de Operações Especiais (Bope) – que cedeu espaço para o treinamento dos militares que seguem para o Haiti.

Em 29 de outubro de 2007, aconteceu ali mais uma das dezenas de treinamentos realizados pelos soldados do Exército que formariam o novo contingente da força de paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah). A “favela do Bope”, junto com a área militar de Paracambi, no interior do Rio, foram as regiões mais usadas para a preparação final dos capacetes-azuis que seguiriam para Porto Príncipe. Eram as etapas por onde passaram a maior mobilização de tropas urbanas desde a Segunda Guerra Mundial.

Desde a entrada do quartel-general do Bope, uma subida acentuada com calçamento de blocos de cimento, caminhões e viaturas militares se enfileiravam no treinamento. No último andar do quartel, um grupo simulava o comando brasileiro em Porto Príncipe. A todo momento eram executados exercícios de progressão no terreno e busca e apreensão. Um mapa indicava o líder da guangue procurada. Seu nome é “Amaral”. A preparação final precisa ser intensificada semanas antes do embarque do contigente para os ensinamentos ficarem frescos na memória dos soldados.

“É claro que todo soldado já tem uma bagagem de preparação. O que fazemos aqui é moldá-lo para uma força de paz. Repassar conceitos de uma missão de paz, exercitar situações específicas para que ele não tenha dúvidas na hora de agir. Treinamos reforço técnico de rito, armamentos, operação e manutenção de equipamentos blindados, e emprego das frações militares, mobilização importante de operações militares em terreno urbano. Além disso, trabalhamos valores. Ser forte, destemido, mas demonstrar que não tem arrogância. O mote é a proteção da vida”, relatou à época o coronel Paul Cruz, que se preparava para assumir o atual oitavo contingente no Haiti.

Na favela Tavares Bastos, os soldados usavam coletes e capacetes com 12 sensores infra-vermelhos cada um para avaliar o número de mortos e feridos na simulação. O equipamento é conhecido como Dispositivos de Simulação de Engajamento Tático (DSET) . Eles buscam elevar o grau de precisão do treinamento com a simulação dos efeitos reais das armas e equipamento. Os líderes das guangues eram soldados disfarçados. A Cruz Vermelha era composta por estudantes de relações internacionais. Todos falando um inglês ou um francês arrastado. O português era proibido na simulação entre os personagens.

Em sua primeira visita ao Haiti, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, destacou que a presença do Brasil na força de paz da ONU precisa ser avaliada também em relação aos interesses do Brasil. “Primeiro que o Brasil não pode ficar alheio às questões que envolvem a América Latina. A condição do Brasil é de liderança e protagonismo regional, portanto é preciso estar presente. Por esse lado, a questão das relações exteriores. O segundo ponto é exatamente a possibilidade de formar doutrinas que dizem respeito a universos urbanos com ações práticas. A possibilidade de você ter formulação de quadro, de oficiais principalmente para cuidar de guerras assimétricas”, explica.

O Haiti é uma atuação real para os brasileiros, mas junto a isso um laboratório de estratégia militar.

As fotos deste post foram tiradas por mim no final do ano passado durante o treinamento da ONU em Tavares Bastos em 2007.

A fina navalha da força militar

Já o professor associado do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante da Brown University, nos Estados Unidos, Paulo Sérgio Pinheiro, discorda de que as Forças Armadas estejam preparadas para esse tipo de intervenção no Rio de Janeiro. Ainda mais seguindo um exemplo do que aconteceu no Haiti. “A meu ver não há nada que mudar. O máximo que pode ser feito é troca de informações e cooperação nas fronteiras com a Polícia Federal e, eventualmente, com os destacamentos militares na fronteira. Agora em meio urbano, a grande colaboração que as Forcas Armadas podem dar é ficarem longe do policiamento urbano. Propor o contrário seria um rotundo equívoco”. Numa entrevista dada por e-mail a este blogueiro, Pinheiro lembra que o histórico de intervenções das Forças Armadas nas favelas do Rio tem sido um “desastre”. “Mais improvisação para a galera ou para a mídia eletrônica sem nenhum benefício efetivo, principalmente para dar segurança à população local.”

Ele lembra que há diferenças grandes entre uma força de paz da ONU e a ação das Forças Armadas dentro do Brasil. “Em termos jurídicos ou humanitários a diferença é total: as missões militares são regidas pelo direito internacional, seus termos são estabelecidos por organizações interestatais como a ONU ou a OEA. Pode haver alguma semelhança no conteúdo das ações, por exemplo, se as forças de intervenção desempenham papel de força policial. Mas o fato de o papel do Brasil na Minustah ter tido algum êxito (assim como em Angola) não significa que essa experiência possa ser transferida para o Brasil. A situação dos grupos não-estatais ligados ao narcotráfico no Rio e São Paulo se situam num contexto extremamente mais complexo do que a situação das gangues em Cité Soleil. As organizações criminosas no Brasil estão inseridas numa estrutura nacional, continental e global que não pode ser reduzida a ações armadas de exércitos.”

Outra ponderação do professor de Relações Internacionais é que se já existe um grave problema de vítimas do conflito armado, uma ação do Exército pode piorar esse quadro. “Perdas civis por balas perdidas já são uma calamidade com as polícias, imagine com recrutas mal treinados?”, indaga. Na mesma linha argumenta o coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos Ariel de Castro Alves também considera “inviável” a proposta. “O que precisamos são polícias bem treinadas e equipadas, atuação comunitária e ações sociais. Para isso, não precisamos utilizar o Exército”, disse numa conversa pelo telefone. “Já existe uma criminalização da pobreza no Brasil, mas, na prática, a ação das Forças Armadas nestes moldes seria uma autorização irrestrita para atuar militarmente nas favelas”.

No Haiti, há inúmeras acusações de organização não-governamentais de violações de direitos humanos nas missões de paz. Até agora foram sistematicamente negadas pelas Nações Unidas. O maior desafio para ações militares é, com certeza, o acompanhamento de sua rotina para checagem de parâmetros transparentes do uso da força. Como atirar? Em quem atirar? Quando não atirar? Estas perguntas precisam ser respondidas previamente para originarem posteriores justificativas. Caso contrário, a máxima implícita nas operações se torna: “os fins justificam os meios”. Qualquer grupo armado ilegal (traficantes, gangues, milícias) não tem regras nem compromisso com a sociedade. Mas o braço armado de um Estado democrático tem a obrigação de refletir e atuar com clareza. Sua legitimidade depende disto. Esta é a fina navalha do uso da força militar. Da mesma maneira como discutimos a ação da “tropa de elite” do Rio de Janeiro (aqui e aqui).

As fotos publicadas fazem parte de uma seleção dos principais trabalhos de fotógrafos que cobriram o Haiti recentemente. As fotos acima são do Haiti Information Project, entidade que vem fazendo seguidas denúncias de violações no Haiti – foram listadas pelo Project Censored como parte de um ranking das principais notícias ignoradas pela mídia em 2006.

Próximo post: Capacete-azuis treinaram em favela do Bope

The fine line of the use of military force.

The associate professor of the Violence Study Nucleus of the University of São Paulo (USP) and visiting professor of Brown University, in the United States, Paulo Sérgio Pinheiro disagrees that the Armed Forces are ready for this kind of intervention in Rio de Janeiro. Moreover following the example of what happened in Haiti. “As I see it there is nothing to change. The most that can be done is the exchange of information and cooperation at the border with the Federal Police, and, possibly, with the military troops at the border. Now, in urban areas, the greatest collaboration from the Armed Forces is to stay away from police action. To propose the contrary would be a huge mistake.” In an e-mail interview for this writer, Pinheiro reminds us that the history of Armed Forces interventions in Rio’s slums has been a “disaster”. “More for show or for the electronic press, without any effective benefit, specially to ensure the safety of the local population.”

He points out that there are big differences between a UN peace force and the action of the Armed Forces inside Brazil. “In legislative or humanitarian terms they are completely different: the military missions are bound by international law and their terms are established by interstate organizations such as the UN or the OAS. There can be some similarities in the contents of the action, for instance, if the intervention forces perform police force duties. But the fact that Brazil had some success playing its part on the Minustah (as it did in Angola) does not mean the experience can be transferred to Brazilian territory. The situation of non-state groups linked to the narcotraffic in Rio and São Paulo is far more complex than that of the gangs in Cité Soleil. The organized crime in Brazil is ingrained in a national, continental and global structures that cannot be reduced to Army campaigns.”

The International Relations professor also ponders that there is already a serious issue of casualties from armed conflicts, and Army activities could worsen the situation. “Civilian casualties to rogue bullets are already a calamity with the police. Imagine if you add poorly trained soldiers?” He asks. Following the same line of thinking, the coordinator of the Human Rights National Movement, Ariel de Castro Alves, also finds the proposition “unviable.” “What we need is a well trained and well equipped police force, community engagement and social development. We don’t need the Army for this”, he told me over the phone. “There is already a criminalization of poverty in Brazil, but in practice, any action of the Armed Forces in this fashion would be an unrestricted authorization to military activity in the slums.”

In Haiti, there are numerous accusations by non-government organizations of human rights violations in the peace missions. So far the accusations have been systematically denied by the United Nations. The biggest challenge to the military action is, surely, the follow up of the routine checks for the transparency in the parameters guiding the use of force. How to shoot? Who to shoot? When not too shoot? These questions have to be answered ahead of time so justifications can be provided afterwards. Otherwise, the implicit maxim of the operation becomes: “the ends justify the means.” Any illegally armed group (drug traffickers, gangs, militia) has no rules and no commitment to society. But the armed hand of a democratic State is obligated to reflect and to act with clarity. Its legitimacy depends on it. This is the fine line of the use of military force. The same way as we discussed the actions of Rio de Janeiro’s “Elite Squad” (here and here).

Haiti, laboratório para a estratégia militar

O diretor-executivo da ONG Viva Rio, Rubem César Fernandes, que também coordena projetos sociais em Porto Príncipe, considera um “legado” fundamental os conceitos utilizados pela força de paz liderada pelo Brasil. “Onde o Haiti se apresenta como um laboratório para nós é na criação de conceitos-chave. A dificuldade é colocar em prática. Por exemplo, a estratégia progressiva de ocupação e desenvolvimento. Como foi no bairro de Bel Air, depois em Cité Militare e, por último, em Cité Soleil. Cada passo foi uma progressiva ocupação”, relata em entrevista pelo telefone a este blogueiro. Aos poucos, os bairros considerados perigosos foram ocupados pela ONU. Junto deles, alguma presença de estruturas de apoio, como a polícia haitiana e agências internacionais de desenvolvimento. Embora sempre muito aquém do necessário para as regiões.

“As operações nas favelas haitianas começam com um planejamento. Todas eram cercadas com barricadas de lixo, então o primeiro desafio era entrar, depois tomar pontos fortes, como se chamam as áreas estratégicas de uma operação militar. Havia a idéia de ocupação progressiva. E paralelamente, o Exército brasileiro, mesmo que com limitações, fazia ações cívico sociais (Acisos) junto à população para ganhar sua confiança. Distribuir água tratada, levar doações a orfanatos, mutirões de limpeza etc. Isso foi feito imediatamente após a ocupação”, descreve. “Também vale lembrar um ponto que é toda a estratégia e formação das tropas voltadas para reduzir o número de vítimas”. Segundo ele, seria um indicador de que a ação do Exército poderia, inclusive, ajudar a reduzir a violência policial na capital carioca.

Fernandes acredita que o debate sobre o uso do Exército na segurança urbana brasileira só faz sentido para o Rio de Janeiro e deve ser acompanhado de uma estrutura de apoio humanitário. “Só entrar o Exército não vai resolver, mas isso poderia alimentar um sentimento de mudança, porque, hoje, ninguém acredita que algo vai mudar”. Em fevereiro, o diretor-executivo publicou no site da Viva Rio um artigo entitulado “Bel Air pode ser como a Lapa“. Nele, conta sua experiência de trabalho no bairro haitiano. “De fato, minha primeira impressão foi a de que já havia passado por lá. Mais enfronhado agora, dedicando ao Haiti um terço do meu tempo, misturo proximidade e estranhamento em doses crescentes a cada viagem mensal que faço”, disse. “Gangue é expressão dos bairros pobres dos Estados Unidos, que tem a ver, mas não se aplica. “Facção” é o nome que damos no Rio, mas em Porto Príncipe eles chamam de “bases”. São menos organizados em cima, menos conectados em rede, mais locais, como o nome sugere.”

Fernandes faz uma comparação entre a atuação das “bases” com a forma de organização das comunidades eclesiais de base, forma de trabalho que tinha o ex-líder padre adepto da teologia da libertação Jean Bertrand Aristide, que, depois de lutar contra a ditadura Duvallier, se elegeu presidente em 1990. O bairro também era reduto de grupos de apoiadores a Aristide durante a chegada da força de paz, em 2004. “Parece que foi inspirado, quem diria, nas Comunidades Eclesiais de Base, marca da teologia da libertação nos anos 80. Ao contrário da Igreja, contudo, que prima pela unidade, as bases no caso cultivam a rivalidade entre vizinhos e iguais, ao ponto da violência mais cruel. São grupos informais de microdomínio territorial, que, embora clandestinos, exercem considerável poder local”. O combate a esses grupos também foi aplicado em Cité Soleil. Veja as explicações do force commander, general Carlos Alberto dos Santos Cruz ao Defesanet.

Por várias vezes, essas ações foram criticadas como perseguição a grupos (armados ou não) de partidários do ex-presidente Jean Bertrand Aristide. Também falou-se muito que ações de combate deveriam ser conduzidas pela Polícia Nacional do Haiti, braço armado nacional legalmente constituído. Contudo, a resposta oficial da Minustah era de que a ONU executava as operações no estilo militar porque a polícia não tinha ainda capacidade e qualificação para realizá-las. Nesse ponto, a força militar da ONU agia na desmobilização dos grupos armados. E que na maioria das vezes resultava em conflitos e tiroteios. As acusações de entidades não-governamentais e a resposta da Minustah precisam, sem sombra de dúvida, serem mais aprofundadas para não darem lugar a críticas e rótulos sem embasamento. Vários comandantes militares defendem o exemplo haitiano para ser usado no Brasil desde que seja amplamente discutido e auditado.

Seguimos agora com outras vozes da sociedade…


As fotos publicadas fazem parte de uma seleção dos principais trabalhos de fotógrafos que cobriram o Haiti recentemente. A terceira foto é de Ariana Cubillos
, da Associated Press.Próximo post: A fina navalha da força militar

Haiti, a military strategy laboratory.

The executive director of the NGO Viva Rio, Rubem César Fernandes, who also coordinates social projects in Porto Príncipe, considers a fundamental “legacy” the concepts utilized by the peace force led by Brazil. “It is in the creation of key concepts that Haiti presents itself to us as a lab. The difficulty is to put it in practice. The strategy of progressive occupation and development, for example, as it was done in the regions of Bel Air, then in Cité Militare, and lastly in Cité Soleil. Every step was done in progressive occupation,” he tells on a phone interview to this blogger. Little by little the UN occupied the areas considered dangerous. Alongside the UN, there was the presence of some support structure, such as the Haitian police and international development agencies, even if underwhelming to the regions’ real needs.

“The operations in the Haitian slums start with planning. Barricades made of garbage surrounded them all, so the first challenge was to get in, and then it was to take the strongholds, the strategic areas on a military operation. There was the idea of progressive occupation, and in parallel, the Brazilian Army, even if in limited fashion, performed civil and social activities (Acisos — in Portuguese) for the population to gain its trust. The distribution of treated water, donations to orphanages, collective effort clean ups, and etc. were all done immediately after occupation” he describes. “It is also worth to mention that all the strategy and preparation of the troops are geared towards reducing the number of casualties.” According to him, this would be an indicator that the Army could also help reduce police violence in the capital of Rio.

Fernandes believes that the debate over the use of the Army in Brazilian urban security only makes sense for Rio de Janeiro and should be accompanied by a humanitarian support structure. “Deployment of the Army alone would solve nothing, but it could spark a sense of change, because, nowadays, nobody believes any changes would ever occur”. In February, the executive director published on the Viva Rio website an article with the title “Bel Air can be like Lapa”. On the article, he recounts his experience working in the Haitian region. “In fact, my first impression was that I had already been there. More intertwined now, dedicating to Haiti a third of my time, I feel a mix of proximity and strangeness in increasing dosage on every monthly trip I take”, he said. “Gangs” is the term used in poor ghettos of the US, which has something to do with it, but doesn’t really apply. “Faction” is what we call it in Rio, but in Porto Príncipe they call it “bases”. They are less organized at the top, less networked, but are local, as the name suggests.”

Fernandes does a comparison between the way the “bases” work with the way the base ecclesiastic communities were organized, type of work of the ex-leader priest adept of the theology of liberation Jean Bertrand Aristide, who, after fighting against the Duvallier dictatorship, was elected president in 1990. The area was also the outpost of supporters of Aristide during the arrival of the peace force in 2004. “It seems to have been inspired, who would think, in the Base Ecclesiastic Communities, mark of the theology of liberation in the 80s. As opposed to the Church, however, that primes by unity, the “bases” instead cultivate rivalry between neighbors and equals, to the point of the cruelest violence. They are informal groups of territorial micro dominance, that, even though underground, exert considerable local power.” The combat to those groups was also deployed in Cité Soleil. See the explanation of the force commander, General Carlos Alberto dos Santos Cruz to Defesanet.

Several times, these actions were criticized as persecution to groups (armed or not) of partisans of the ex-president Jean Bertrand Aristide. There was also talk that the Haitian National Police, legally constituted national armed arm, should conduct the combat actions. However, the official response of the Minustah was that the UN executed the operations in military style because the police was not capable and qualified to do so. At this point the military force of the UN acted to demobilize the armed groups which, in the majority of the times, resulted in conflicts and shooting. The accusations of non-governmental entities and the response of the Minustah need, without a shadow of a doubt, to be deepened so as to not leave room to criticism and labels without base. Several military commanders defend the Haitian example to be used in Brazil as long as it is amply discussed and audited.

We follow now with other voices of society…

Exército pronto para atuar. O que diz a lei?

“Você me pergunta: O Exército está pronto para atuar [em casos urbanos como o Rio]? Está. Mas falta uma mudança na legislação para atuar com clareza. Nossa preocupação é definir isso”, disse o coronel Cunha Mattos, que trabalhou durante seis meses no Haiti e atualmente integra o setor de comunicação do Exército (CCOMSEx). Em uma entrevista que fizemos pelo telefone justamente sobre a possibilidade de atuação no Rio de Janeiro, Cunha Mattos explicou que o Exército possui permanente treinamento de emprego em área urbana, seja ele para operações de combate (a missão da guerra) ou para operações de garantia de lei e da ordem, o que poderia até ser chamada de “não-guerra”. Mas o que isso significa?

As regras de hoje sobre o emprego das Forças Armadas são: o artigo 142º da Constituição Federal, de 1988; e as Leis Complementares 97, de 1999, e 117, de 2004. Esta última, editada poucos meses depois do ingresso do Brasil na força de paz no Haiti. A legislação diz que os militares podem atuar “na garantia da lei e da ordem” desde que haja o reconhecimento formal de que os recursos atuais são insuficientes. “Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no artigo 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes (…)“. A “garantia da lei e da ordem” tem um histórico grande em nossas constituições, como mostra Charles Pacheco Piñon, ao relatar as cartas magnas de 1981, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988.

Ou seja, hoje pela regra do jogo, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, teria que tomar a decisão política de dizer que as polícias do estado fracassaram no combate ao crime organizado para autorizar a ação do Exército. “Mas ainda existe uma lacuna sobre os limites de atuação da tropa, porque não há um estado de defesa constituído, um estado de sítio para intervenção federal. Então, há necessidade de aperfeiçoamento da lei e dos limites desta ação”, explica o coronel do Exército. O conceito de garantia da lei e da ordem é diferente de guerra. Ele está muito mais próximo do conceito da segurança pública, “da garantia da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio”, como prevê também a Constituição Federal no seu artigo 144º.

O panorama do Rio de Janeiro, onde várias operações militares já existem pelo Bope, Core, Força Nacional, a atuação do Exército poderia ser utilizada, como já citaram governantes e o próprio ministro da Defesa, a partir do histórico feito nas favelas do Haiti. A experiência da força de paz das Nações Unidas entraria nesta etapa de legislação, preparação e estratégia militar. E é sobre ela que os militares pedem a solução de lacunas jurídicas. Qual seria a estrutura de comando? As polícias serão forças auxiliares do Exército? O Exército terá força de polícia no local da operação? Há autorização, como no Haiti, para vasculhar casas suspeitas, mesmo que seja necessário arrombá-las? Quais as regras de engajamento para armamento e tipos de disparos? “Isso tudo é necessário para ter segurança na ação e as leis complementares não prevêem”, diz Cunha Matos.

Na capital Porto Príncipe, principal foco da violência no Haiti, o trabalho das tropas da ONU gerou um acúmulo em sua estratégia em quase quatro anos de mandato. Os 1.200 soldados brasileiros, dos diferentes contingentes trocados a cada seis meses, vivenciaram a adequação ao capítulo 7 das regras de engajamento de missões de paz das Nações Unidas – adaptação essa que foi motivo de acalouradas discussões entre os membros da missão. Isso porque ele prevê uma espécie de mandato de busca permanente para impor a paz, diferentemente de outros que não permitem uso da força. “No Haiti, a tropa tem autorização para atirar em uma pessoa que esteja portando uma arma, mesmo que ela não esteja disparando na tropa, mas não pode atirar caso a pessoa esteja de costas ou em fuga”, exemplifica o coronel.

Segundo ele, isso não significa atirar em qualquer um, mas o militar “pode usar a força quando necessário” ou “houver ameaça sobre ele”. E, embora o conceito de “ameaça” possa ser muito subjetivo, o coronel explica que havia um controle rígido da atuação no Haiti. Câmeras de vídeo e visores infravermelhos para uso noturno foram acessórios usados pelos militares com o objetivo de diminuir o número de vítimas. Mas o que acham pesquisadores e entidades não-governamentais da atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem no Brasil? Esse será o tema dos próximos posts.

As fotos publicadas fazem parte de uma seleção dos principais trabalhos de fotógrafos que cobriram o Haiti recentemente. Esta segunda é de Ruth Fremson, do The New York Times, e que já fez vários trabalhos lá, inclusive um bom slide show, que já mostrei em outro post.

Próximo post: Haiti, laboratório para estratégia militar

Army ready to act. What does the law say?

“You ask me: Is the Army ready to act [in urban cases like in Rio]? It is. But it is missing a change in the legislation for it to act with clarity. Our concern is to define this”, stated Cel. Cunha Mattos, who worked for 6 months in Haiti and currently integrates the Army Communication Sector (CCOMSEx in Portuguese). In a telephone interview we did exactly about the possibility of action in Rio de Janeiro Cunha Mattos explained that the Army constantly performs training geared towards urban areas. Be it for combat operations (war missions) or for operations to uphold the law and order, which could even be called de “non-war mission”. But what does this mean?

Today’s rules about the employment of the Armed Forces are: article 142 of the Federal Constitution, from 1988; and the complementary laws 97, from 1999, and 117, from 2004. The latter edited a few months after the ingress of Brazil in the Peace Force in Haiti. The legislation states that the military can act to “ensure the upholding of law and order” as long as there is formal recognition that the current available resources are inefficient. “The instruments related on article 144 of the Federal Constitution are considered extinguished when, on a certain moment, they are formally recognized by the Chief of Federal Executive Power or by the Chief of the State Executive Power as unavailable, inexistent or insufficient (…)”. The “assurance of upholding the law and order” has a long history in our constitutions, as Charles Pacheco Piñon shows reporting the Magna Cartas of 1981, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 and 1988.

So, today, by the rules of the game, Rio de Janeiro’s governor, Sérgio Cabral, would have to take the political decision to declare that the state polices failed in the combat with organized crime to authorize the Army to act. “But there is still a line to ‘fill in the blank’ as to the limits of action by the troops because there is no constituted state of defense, no state of siege for Federal intervention. Therefore, it is necessary to fine tune the law and the limits of this action”, explains the Army Colonel. The concept of assurance of law and order is different from war. It is much closer to the concept of public safety, “to the assurance of public order, safety of the citizens and property”, as also foreseen in article 144 of the Federal Constitution.

Rio de Janeiro’s panorama, where several military operations by BOPE, CORE, Força Nacional already exist, military action could be utilized, as previously cited by government officials and the secretary of Defense himself, based on the history on the Haiti slums. The expertise of the United Nations Peace Force would be used at this stage of legislation, preparation and military strategizing. And it is at this level that the military ask for the solution for the judicial “fill in the blanks.” What would be the chain of command? Would the police forces be auxiliaries to the Army? Would the Army have the strength of the local police in the areas of operation? Is there authorization, like in Haiti, to search suspect houses, even if it is necessary breaking into them? What are the rules of engagement for weaponry and types of shots? “All of this is necessary for the safety of the action and the complementary laws do not foresee”, says Cunha Mattos.

In the capital Porto Príncipe, main pocket of violence in Haiti, the work of the UN troops generated an accumulation of strategic experience in its almost four-year term. The 1200 Brazilian soldiers, from different contingents, changed every six months, lived the adaptation to chapter 7 of the rules of engagement of United Nations’ Peace Missions – adaptation that was the culprit of heated discussion among the mission’s members. That is because it allows for a type of permanent search warrant to impose peace, differently that others that do not permit the use of force. “In Haiti, the troops have authorization to shoot a person that is carrying a weapon, even if the person is not firing towards the troops, but they cannot shoot the person on their back or when they are fleeing”, the Colonel says as an example.

According to him that does not mean shooting at everyone, but the military “can use force whenever necessary” or “when under threat”. And, even though the concept of “threat” can be quite subjective, the Colonel explains that there was a very strict control of the action in Haiti. Video camera and infrared visors for nocturnal usage were accessories used by the military with the objective of decreasing the number of victims. But what is the opinion of researchers and non-governmental entities about the action of the Armed Forces in the assurance of law and order in Brazil? This will be the subject of the next posts.

Haiti e Rio de Janeiro, campos militares brasileiros

A maior favela do Caribe, o conglomerado de barracos de zinco e toscos tijolos de cimento de Cité Soleil, onde moram cerca de 300 mil haitianos, foi palco do principal marco da estratégia militar das tropas das Nações Unidas no Haiti. Soldados brasileiros que integram a força de paz ocuparam gradativamente a região e desmobilizaram grupos armados que influenciavam e até controlavam a vida dos moradores.

A postura das Forças Armadas se tornou exemplo de ação para dirigentes da ONU, políticos haitianos e militares de outros países. Algumas entidades não-governamentais criticaram o processo e denunciaram violações, que, por outro lado, foram sistematicamente negadas pela ONU. O fato é que a favela de Cité Soleil, berço político do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, apesar de continuar paupérrima, deixou de ser a pedra no sapato da força de paz.

O caso ganhou repercussão internacional para ascender um debate recorrente no Brasil sobre a possível atuação das Forças Armadas em situações de violência. Por que não repetir a doutrina de ação no Rio de Janeiro, onde traficantes estruturaram por anos um esquema de venda de drogas – baseado no controle territorial, na cobrança de serviços e na convivência corrupta com o poder público? Existiriam vantagens em empregar soldados do Exército, Marinha e Aeronáutica para combater o crime organizado na capital carioca?

A proposta é citada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e por comandantes militares como viáveis desde que haja mudanças na legislação. O assunto está em estudo por um grupo do governo e das Forças Armadas. Será discutido no contexto da Estratégia Nacional de Defesa, que deve ser concluída até 7 de setembro, para prever as tarefas militares do país. Enquanto isso, os comandos militares das Forças Armadas e das polícias do Rio de Janeiro já trocam informações e conhecimento sobre o assunto.

A partir desta semana, este blog publica uma série jornalística com referências on-line para discutir a possibilidade e a viabilidade da atuação dos capacetes-azuis se tornar uma doutrina de intervenção das Forças Armadas na segurança pública de cidades violentas brasileiras, onde o crime organizado está na rotina da população. Foram ouvidas fontes do Exército, do Ministério da Defesa, organizações não-governamentais, movimentos de direitos humanos e especialistas em segurança pública.

Parte 1O Exército pronto para atuar. O que diz a lei?
Parte 2 Haiti, laboratório para estratégia militar
Parte 3A fina navalha da força militar
Parte 4Capacetes-azuis treinaram em favela do Bope
Parte 5Morro da Providência e a ética do capitão Nascimento

As fotos publicadas fazem parte de uma seleção dos principais trabalhos de fotógrafos que cobriram o Haiti recentemente. Esta da abertura é de Ana Nascimento, profissional da Agência Brasil que viajou comigo ao Haiti em 2004.

Haiti and Rio de Janeiro, Brazilian military camps

Caribbean’s largest favela, the conglomerate of shacks built out of poor cement bricks and zinc roofing on Cité Soleil, where almost 300 thousand Haitians live, was the center stage for the main military strategy of United Nations troops in Haiti. Brazilian peacekeepers gradually occupied the area and disbanded the armed groups that influenced and even controlled the lives of local residents.

The posture of the Brazilian Armed Forces became an example for UN leaders, Haitian Politicians and other countries’ military. Some non-governmental organizations criticized the process and denounced violations, which, in turn, were systematically denied by the UN. The fact of the matter is that Cité Soleil, political cradle of former President Jean Bertrand Aristide, although remaining in extreme poverty, is no longer a pebble in MINUSTAH shoes.

The case gained international repercussion and inflamed a recurring Brazilian debate over the possibility of Armed Forces intervention on violent situations. Why not repeat the doctrine of action in Rio de Janeiro, where drug dealers built a massive structure of drug trading – based on territorial control, charges for various ambiguous services and corrupt coexistence with the public power? Are there advantages in employing Army, Navy, and Air Force soldiers to fight organized crime in Rio?

The proposal is pointed by the Secretary of Defense, Nelson Jobim, and by military commanders as viable if legislation changes were to occur. The subject is under study by some Armed Forces and governmental groups. The discussion will take place in the context of the National Defense Strategy, which is scheduled to be completed by or around September 7th, and will forecast Brazil’s military tasks. Meanwhile, major military commands and the police forces in Rio de Janeiro are exchanging intel on the matter.

From this week forward, this blog will be publishing a journalistic series filled with on-line references to discuss the possibilities and the viability of using the Brazilian blue-helmets methods to become an Armed Forces intervention doctrine for public safety in violent Brazilian cities, where the organized crime is intertwined in the routine of its population. Consulted sources were the Army, the Brazilian Department of Defense, non-governmental organizations, human rights movements and public safety specialists. 

Revolução negra, a independência do Haiti

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Também saiu publicada hoje uma reportagem que fiz sobre a independência do Haiti para a revista História Viva. Chama-se “Revolução negra” e conta como foram as revoltas dos escravos a partir de 1791 sob a influência da Revolução Francesa. Li um monte de livros sobre o assunto, mas a principal referência é “Jacobinos negros”, de Cyril Lionel Robert James. A íntegra do texto está na página da História Viva, abaixo o abre da matéria:

O trabalho na cana era extenuante e desumano. Por décadas, a colônia francesa de São Domingos sustentou um dos mais lucrativos negócios do Novo Mundo com o chicote apontado para o corpo dos escravos africanos. Os negros cavavam valas para o plantio das mudas, cuidavam dos brotos, zelavam pelo crescimento, faziam a colheita e toda a fabricação do açúcar.

Os lucros dependiam da exploração do trabalho. A manutenção da escravidão pelos donos de engenho se baseava em castigos brutais e tinha um nível de perseguição implacável. Os relatos da época descreviam que as punições das chibatas eram mais comuns do que receber comida. Mutilavam-lhes membros, orelhas e genitais; faziam-nos comer excrementos; amarravam-lhes grilhões e blocos de madeira; prendiam-nos a postes fincados no chão.

A tortura sistemática originava, não sem razão, uma sede de vingança. E este foi um dos motivos da revolta que seria iniciada em 1791 e conformou a única rebelião vitoriosa de escravos desde a Antigüidade clássica. A independência do Haiti, proclamada em 1804, só nasceu por causa dela.

A revista também fez na edição online e impressa uma citação ao documentário Bon Bagay Haiti, como parte das pesquisas atuais sobre o país mais pobre das Américas.

De 2007……………para 2008

Os meus destaques pessoais de 2007. Ou “por onde passei”:

Bon Bagay Haiti, web-documentário da Agência Brasil;
– Site O Brasil de Aloysio Biondi;
– O processo da fusão Radiobrás-TVE, que nos distanciamos em outubro;
– Reportagens para a Rolling Stone – Bem Vindos?O Cheiro do Ralo;
– Alguns textos na Agência Brasil – 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
– Este blog, uma soberba vitória para mim;
– Buscar o espaço para a nossa geração de jornalistas. Que tal algo assim?

Site do Laerte

Entre as apostas para 2008:

– Jornalismo na veia, direto de São Paulo;
– Livro-reportagem sobre o Haiti;
– Ir para um mestrado na comunicação;
– Coisas boas que ainda não sei.

Cheiro do ralo… má gestão dos recursos públicos

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Ando sumido do blog, mas justifico. Foram muitas andanças nesses dias. Recomeço minha rotina virtual, ainda longe de Brasília, para falar de uma reportagem que fiz com o André Deak para a Revista Rolling Stone. É sobre a corrupção e a má gestão de recursos públicos no Brasil. O título é uma “brincadeira” com o filme do diretor Heitor Dhalia. Isso porque os focos de irregularidades que sabemos pelas páginas dos jornais formam apenas o cheiro desse grande vazadouro tupiniquim.

A quantidade de verbas públicas devidamente fiscalizadas é mínima. Um relatório dos peritos da Polícia Federal aponta que as investigações mostram que a cada R$ 3 investidos em obras de engenharia, R$ 1 é desviado. Também fizemos nessa reportagem uma análise do perfil dos municípios sorteados e fiscalizados pela Controladoria Geral da União (CGU). Tem cada história… afe!

Fiz uma entrevista com o ministro da CGU sobre o tema. Como não usamos toda, deixo aqui alguns trechos.

Como a CGU avalia a situação atual do Brasil quanto à adequação das instituições (ferramentas, rotinas, funcionários) para o combate e à prevenção da corrupção e má gestão dos recursos públicos?
A situação do Brasil  quanto a isso melhorou muito nos últimos anos, embora ainda exista um longo caminho a ser percorrido. Já construímos um órgão especificamente voltado para essa luta – a Controladoria-Geral da União, que reúne as funções de auditoria (controle interno), correição (sindicâncias e processos administrativos) e prevenção. Esse órgão é integrado por um corpo funcional de primeira qualidade, selecionado por concurso público, bem remunerado, altamente profissionalizado e à margem de influências políticas, o que não é fácil e não é pouca coisa, se lembrarmos qual era a tradição brasileira.

Além disso, esse órgão passou a atuar em articulação estreita com outras instituições de defesa do estado – Ministério Público (com quem o Poder Executivo antes vivia às turras), Polícia Federal (que também passou a priorizar o combate à corrupção), COAF, AGU e outros, inclusive intercambiando informações e agindo em parceria nas investigações.

O resultado está aí: são dezenas e dezenas de operações que vêm estourando verdadeiros esquemas criminosos de corrupção e desvio de dinheiro público. Citarei apenas alguns: Operação Sanguessugas, Gafanhoto, Confraria, Alcaides, Navalha, Metástase, Mecenas, Carranca, Campus Limpo, Selo, etc. A intensidade e a eficiência dessa ação articulada (de auditoria, fiscalização e investigação policial) é tamanha que as descobertas se sucedem quase a cada dia e a população toma conhecimento de tudo de modo que fica a impressão, à primeira vista, de que a corrupção tenha aumentado, quando o que houve, na verdade, foi o aumento da investigação e do combate a ela. Sim, porque qualquer pessoa minimamente informada sabe que a corrupção sempre existiu e isso não é novidade. Só que ela ficava encoberta. Não se investigava, nem se revelava nada.

Agora temos fiscalização e divulgação de tudo. Não se esconde mais debaixo do tapete. Em seguida, depois de feitas as constatações, enviamos os resultados para os órgãos competentes para a punição dos culpados. São eles: primeiro, a nossa própria Corregedoria, que  cuida da instauração das Sindicâncias e Processos Disciplinares, que podem levar às penas de demissão do serviço público e cassação de aposentadoria, dentre outras. E, só aí já excluímos dos quadros do Serviço Público Federal , nesses quatro anos e meio, mais de 1.500  agentes públicos federais flagrados em atos de improbidade, corrupção e assemelhados. Além disso, enviamos tudo para o Tribunal de Contas da União, para as penalidades que cabem a ele e também para o Ministério Público ajuizar as Ações Penais e Civis perante o Judiciário.

Agora, se o Judiciário demora anos a fio para conseguir concluir um processo e as condenações finais não acontecem, aí não é mais conosco. Aí a coisa depende de alterações nas leis processuais que, no Brasil, permitem uma infinidade de recursos e medidas protelatórias de tal ordem que qualquer bom advogado consegue prolongar um processo por dez ou vinte anos; e os corruptos são justamente os que podem pagar os melhores escritórios de advocacia do país.

Mas não bastam as medidas punitivas. Trabalhamos também, agora, na linha preventiva, o que nunca se fez no país. Nessa área, já temos hoje um dos maiores portais existentes no mundo sobre as despesas públicas. O Portal da Transparência expõe para todos os cidadãos, em qualquer lugar, todas as ações, programas e gatos feitos por todos os órgãos do  Governo Federa, real por real, local  por local, com o nome do beneficiário final de cada pagamento (empreiteira, fornecedor, beneficiário da bolsa-família, tudo enfim). Ele já está no ar desde 2004 e já teve mais de 1,2 milhão de visitas até agosto último (o que dá uma média mensal superior a 35,3 mil visitas. O nosso Portal já ganhou muitos prêmios e tem sido reconhecido nos encontros internacionais como dos melhores e mais completos do mundo.

Nós da CGU entendemos que a disponibilidade de informações é o primeiro requisito para a participação social, da cidadania, no controle do poder, no controle dos gestores públicos, no controle do dinheiro que é do povo. E, por isso, entendemos que a transparência, a visibilidade do que se faz com esse dinheiro, é o melhor antídoto (o melhor preventivo) contra a corrupção. Por isso essa ênfase. Além do Portal, cada órgão é obrigado a manter uma página em seu site, onde mostre o extrato de cada contrato, de cada licitação, de cada convênio, etc. Já são quase 120 páginas, hoje, na internet.

A política de prevenção da CGU inclui também o acompanhamento da evolução patrimonial dos servidores, a realização de seminários e cursos à distância para treinar servidores de prefeituras e conscientizar membros de conselhos locais de educação, saúde, etc, os concursos de monografias e de redação para alunos de escolas e faculdades, para despertar a consciência ética na juventude, etc. E inclui também o aperfeiçoamento normativo – leis, decretos, portarias que freqüentemente estão sendo revistas e melhoradas para fechar os ralos que vamos descobrindo.

Onde estão as brechas na legislação que ainda permitem a impunidade para gestores públicos que roubam recursos públicos?
Eu diria que a primeira grande brecha está justamente na legislação processual, que permite o que já mencionei antes. Outra brecha legal está na excessiva proteção dos chamados “sigilos” – bancário e fiscal, principalmente. No Brasil, esse sigilo, que foi instituído para proteger a privacidade dos homens de bem, transformou-se em biombo para proteção de criminosos.

Outra brecha é a falta de tipificação do crime de enriquecimento ilícito. E não é por falta de projeto, pois o Presidente Lula já enviou ao Congresso, em 2005, o Projeto de Lei elaborado pela CGU para isso e até hoje não foi aprovado. Não me pergunte por quê. Pergunte aos nossos parlamentares.

Mas, apesar disso, eu creio que hoje já não é correto falar propriamente em “impunidade” no Brasil, porque algum tipo de punição nós já temos. Uma delas é a punição administrativa, de que a própria CGU se encarrega e que já resultou, como disse, na expulsão de mais de 1.500 pessoas desonestas da Administração Pública, o que não é pouco. E outra é a sanção difusa da sociedade, a partir da divulgação, que tem sido intensa, pela imprensa. Nessa condenação social difusa, por assim dizer, certamente têm sido cometidas até muitas injustiças. Mas só estou lembrando: para o bem ou para o mal, o fato é que ela tem existido, e muito pesadamente.

A corrupção não deixa de ser o distanciamento prático e real da democracia de seu povo? Uma guinada no sentido inverso? Como é possível localizar conceitualmente esses crimes para a atual idade da democracia?
Para mim, esse é o grande risco que a democracia corre hoje, aqui e no mundo. O aperfeiçoamento dos meios investigativos, a maior liberdade de informação e de circulação dessa informação, o fortalecimento da própria democracia, têm levado a um maior conhecimento, uma maior conscientização da sociedade sobre os desvios de conduta dos homens públicos.

Isso pode levar a duas possibilidades opostas. Uma, a boa: se as punições, a correção de rumos e as demais respostas que se impõem vierem, ótimo, fortalece-se a crença na democracia e a vida em sociedade se aperfeiçoa cada vez mais. Outra, a ruim: se nada disso ocorre, a população pode perder a fé nas instituições democráticas, achar que é tudo uma grande farsa e aí os resultados podem ser os piores e mais indesejáveis.

“Os donos da lei e da mídia”

Esta foi a manchete de uma reportagem feita pelo André Deak e por mim para a capa do Jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul na edição de novembro. Coloquei agora no blog porque eles atualizaram o site. Segue o começo da reportagem com o enfoque do “coronelismo eletrônico” e a particularidade da situação gaúcha nessa legislatura do Congresso Nacional:

O Artigo 54 da Constituição afirma que deputados e senadores, a partir do momento em que tomam posse, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. Rádios e televisões são justamente isso: estruturas jurídicas que recebem concessão de uso de uma faixa do espectro eletromagnético por onde transmitem sua programação. Espectro esse que é público, finito e, por isso, regulado pelo Estado. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz o seguinte: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”. Nunca aconteceu.

No Rio Grande do Sul, o deputado Nelson Proença, que atualmente está licenciado, trabalhando como secretário de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais da governadora Yeda Crusius, consta da lista de donos de rádio e televisão divulgada pelo Ministério das Comunicações. O deputado Ruy Pauletti (PSDB), ex-reitor da Universidade de Caxias do Sul, também está na primeira lista do Ministério das Comunicações, mas sua assessoria informou que ele deixou todas as “atividades acadêmicas”, e que inclusive saiu da direção da rádio. Na mesma lista está o deputado estadual Adroaldo Loureiro (PDT), sócio de uma rádio em Santo Ângelo.

Outro caso, de acordo com levantamento feito em 2004 pelo pesquisador Venício de Lima, é o do senador gaúcho Sérgio Zambiasi (PTB). Foi funcionário da Rádio Farroupilha, do grupo RBS, até 2004. Zambiasi também foi o relator do ato que renovou a permissão de uma rádio de outro político, o colega senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). A rádio de Garibaldi tem o sugestivo nome de Trampolim da Vitória Ltda. O próprio Garibaldi era o relator do ato que renovaria a concessão de sua própria rádio, mas foi substituído por Zambiasi. Eleito em 2002, o senador gaúcho diz em seu site que “é impossível separar o pai de família, o político e o radialista”.

Nação Palmares, hipervídeo de um povo

A Agência Brasil acabou de publicar o último especial multimídia que tínhamos quase finalizado antes de sair de lá há cerca de um mês. Foi ao mesmo tempo do Bon Bagay Haiti. É um hipervídeo, conceito a partir do qual o internauta pode navegar dentro de um vídeo principal. E clicar em outros vídeos, links e textos. É como ir abrindo pastas. Ou, na linguagem do Sérgio Gomes, jornalistão das antigas e de espírito jovem na Oboré, seria como ler um livro “com e sem” notas de rodapé. Ou o vídeo dentro do vídeo, algo assim – como ele me falou andando no centro de São Paulo.

quilombolas

Mais do que a filosofia e a inovação da linguagem multimídia, o conteúdo desse especial busca mostrar a luta dos quilombolas. Sem distorções. A grande reportagem foi elaborada por vários profissionais. A apuração in loco foi do Spensy Pimentel, o roteiro e edição foram trabalhados pelo André Deak e Rodrigo Savazoni. A Juliana Cézar Nunes também ajudou. Design e programação com Yasodara Córdova e Mário Marco. A trilha sonora está ótima. Nação Zumbi abre o especial.

Atualizaçã0 (26/11/2007): o André Deak fez um ótimo making off do trabalho no blog dele. O tamanho da descrição é diretamente proporcional ao trabalho dispensado. Até eu tive que refinar a edição de dois ou três vídeos. Mas nem se comprara ao trabalho dos demais.

Atualizaçã0 (05/12/2007): o Rodrigo Savazoni escreveu ontem a genealogia do Nação Palmares. Ou melhor, como foi a busca por novos formatos de narrativo no período em que estivemos na Agência Brasil. Vale para acompanhar a evolução do material multimídia produzido.

Quando a Realidade foi ao Haiti…

Quarenta anos atrás, dois jornalistas brasileiros – um repórter e um fotógrafo – fizeram uma matéria histórica sobre o “país do medo”, o Haiti, onde o ditador Papa Doc comemorava dez anos de poder. Milton Coelho da Graça e Geraldo Mori eram repórteres da Revista Realidade, que marcou o estilo do jornalismo literário no Brasil. O texto trazia não só as impressões dos brasileiros, mas um roteiro de como foi a tática para escapar da vigilância política dos tonton-macoute, o braço repressor da ditadura.

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A reportagem é uma das primeiras da imprensa brasileira in loco no Haiti. Agora, remexendo na edição da revista, tive a idéia de procurar o jornalista Milton Coelho para fazer uma entrevista com ele. Mandei algumas perguntas por e-mail para ele. Muito cordialmente, me respondeu. Aos 77 anos, o jornalista carioca tem quatro filhos e trabalhou em várias publicações brasileiras. Atualmente, mantém uma coluna semanal no Comunique-se e integra do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Milton Coelho e Geraldo Mori percorreram o Haiti durante 27 dias em 1967. Entraram disfaçados como repórteres da revista Quatro Rodas, a pretexto de fazerem uma reportagem sobre turismo. “Durante três semanas, os jornalistas brasileiros enganaram a polícia do ditador. Quando sentiram que a vigilância apertava, Geraldo Mori apanhou os filmes que tinha escondido na caixa d’água do apartamento, guardou as anotações de Milton Coelho no forro do blusão e deixou o país no primeiro avião. A seguir, sem nada que o pudesse comprometer, também Milton partia”, registra a nota inicial da revista.

O bate-papo com Milton Coelho por e-mail reproduzo abaixo, junto com um fac-símile da capa da edição e das duas primeiras páginas da reportagem.

Quais as notícias ou informações que lhe sensibilizaram para fazer uma reportagem no Haiti em 1967?
O fato que motivou a matéria era a comemoração dos 10 anos de [Jean François] Duvalier – o Papa Doc – no poder, ocasião em que ele seria sagrado president à la vie, presidente perpétuo. E a abertura da matéria, como você leu, resume o que sabíamos e acabou se confirmando com a nossa ida ao país.

Como foi a tática para entrar “disfarçado” no Haiti? A idéia de se identificar como repórter da Quatro Rodas distraiu os tonton-macoute até quando?
Havia informações sobre o início de um movimento guerrilheiro e havia amplo repúdio internacional à ditadura de Duvalier. Achamos prudente pedir visto e entrar no país como jornalistas interessados apenas em turismo. Eu era chefe de redação da sucursal Rio da Editora Abril, meu nome saía no expediente de Quatro Rodas e isso ajudou a convencer tanto o cônsul haitiano no Rio como a estreita vigilância que a polícia e todo o aparelho de Estado exerciam sobre qualquer jornalista que visitasse o país.

Eu e o fotógrafo Geraldo Mori conhecemos muita gente do palácio presidencial e do governo em geral, mostramos exemplares de Quatro Rodas. Mas conversava também com pessoal da oposição e tinha de sair algumas vezes à noite para tentar contatos com a guerrilha em lugares brabos, onde brancos – e ainda mais estrangeiros – não eram nem comuns nem bem-vindos. E tinha de ir sozinho, porque o Geraldo não podia sair à noite levando equipamento fotográfico, até para não correr o risco de ser roubado.

Muitas vezes voltei ao hotel na Place Centrale de Port-au-Prince, em nosso fusquinha alugado, depois de viver algumas situações críticas com sujeitos interpelando sobre o que eu fazia no num boteco ou no meio da rua.

O Haiti tem uma bela história a contar, sobretudo a rebelião de ex-escravos que tornou o país uma república. Como sentiu que a população encarava esse símbolo histórico?
Com extremo orgulho. Não sei como é agora, mas há 40 anos era fortíssima a animosidade dos negros em relação aos 8% de mulatos, em geral com um padrão de vida bem melhor, descendentes de funcionários coloniais franceses com mulheres negras. E essa divisão social ajudava – e acho que ainda ajuda – a impedir uma efetiva unidade nacional contra a pobreza, o subdesenvolvimento.

A história do Haiti mostra a repetição de crises política e interferências externas. Como avalia essa situação?
O Haiti é uma chaga do continente americano, uma prova da falta de solidariedade dos outros povos do continente, especialmente dos Estados Unidos, que, mesmo depois de concederem direitos civis aos seus patrícios negros, nunca reconheceram sua grande parcela de responsabilidade na tragédia da miséria haitiana. Todos os ditadores haitianos do século XIX foram apoiados pelos governos americanos sob a condição de não permitirem que uma república negra de ex-escravos pudesse se tornar um exemplo para os escravos americanos. E, mesmo depois de Lincoln e até das leis de direitos civis no tempo de Kennedy, o Haiti mereceu justa atenção dos Estados Unidos.

Na sua avaliação, como o a imprensa brasileira tem acompanhado as crises haitianas em relação à pluralidade, diversidade de fontes, densidade e contextualização?
Mesmo com a ocupação por forças brasileiras em nome da ONU, mesmo os bem-informados sabem muito pouco sobre o Haiti em nosso país (e estou me incluindo também nesse pacote). Acho que o Brasil, junto com tropas, poderia ajudar o Haiti enviando técnicos, professores, médicos. E convencer outros países a fazer isso.

O Haiti precisa de um tratamento de choque na área do conhecimento: um bom programa de planejamento familiar, quem sabe a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce poderiam dar uma olhada na possibilidade de fontes energéticas e minerais, formação de professores (em parceria com a França?) e muitas outras iniciativas que poderiam ser imaginadas por um pequeno núcleo de solidariedade organizado pelo Itamaraty, se possível, com a participação de algumas empresas. Provavelmente o Haiti poderia ser um bom produtor de biocombustíveis.

E, principalmente, no trabalho de convencer os Estados Unidos a se preocuparem com um vizinho que é tão pobre como os mais pobres da África.

A atual missão da ONU tem chances de reverter o processo de crise social do Haiti? Como?
A visão que tenho provavelmente é deformada pela falta de informação. Nossos militares não têm formação nem foram designados para resolver crise social. Mas a presença militar poderia dar forte apoio a um programa de desenvolvimento econômico e social do país.

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Web-documentário exibido na TV Nacional

O vídeo Bon Bagay Haiti, pensado e concebido para a internet, também será exibido na TV Nacional na segunda e terça-feira, dias 22 e 23 de outubro, às 22h30. O material entrará na programação da tv pública na grade relacionada à produção de documentários, como me avisou a chefe da TV, Maria Alice Boelhouwer Lussani. Usaremos uma edição em arquivo AVI em alta resolução. O texto de apresentação se transformará em cartelas iniciais, sem narração para manter a estética do vídeo.

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Bon Bagay Haiti: making of da reportagem

Esta é a história da produção de um web-documentário sobre o Haiti. Publicado nesta semana pela Agência Brasil, o vídeo foi a concretização de um processo de pouco mais de um mês – entre sua idéia, apuração, roteiro e edição. Ele nasce dentro de nosso conceito de linguagem multimídia trabalhado na Radiobrás, segundo o qual os diversos recursos midiáticos devem responder à necessidade de contar uma história. E não o inverso. Nada melhor para isso do que a internet. Sobretudo com a execução de uma equipe brilhante: André Deak, editor-executivo multimídia; Rodrigo Savazoni, editor-chefe; Marcello Casal Jr., editor de fotografia; Yasodara Córdova, editora de arte; e Mário Marco Machado, nosso homem-programadô.

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Menino olhando para nós lá em Ti Haiti, o miolo de Cité Soleil


A idéia

Nossa idéia surgiu na saleta do Rodrigo Savazoni após chegar a possibilidade de eu ir pela quarta vez ao Haiti, o país onde uma missão da ONU tenta conter uma crise política e social. Rodrigo e André queriam algo de impacto estético para contarmos histórias desse povo, que há quase quatro anos freqüenta as páginas dos jornais brasileiros, mas ainda são desconhecidos. E uma idéia brotou a partir de nossa observação do MediaStorm. Fazer um documentário, entremeando fotos preto-e-branco e vídeos coloridos. Sem off, sem passagem. Somente a edição de depoimentos dos haitianos. “Precisamos de algo novo no Brasil. E só com haitianos falando”, dizia Rodrigo.

O objetivo também era potencializar a ação de especiais da Agência Brasil feitos com audiovisual, uma tendência que tem dominado a nata do conteúdo jornalístico dos grandes sites internacionais, como o do Washington Post. “Trata-se da utilização, na internet, das linguagens consagradas pela fotografia e pela televisão. Como há um texto de abertura, que serve ao mesmo tempo de sinopse e introdução, pode-se dizer que também a liguagem de texto contribui para essa reportagem multimídia, multiplataforma”, explica conceitualmente o Deak. Aliás, sobre o jornalismo multimídia ele escreve muito. É uma referência para o assunto hoje.

O cronograma da viagem era apertado. Seria o acompanhamento de uma comitiva da primeira visita do ministro da Defesa, Nelson Jobim, ao Haiti. Com ele, os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Na pauta, uma reunião importante de todos os ministros sul-americanos da Defesa que possuem tropas militares no Haiti. Eu teria que “fugir” em algum momento da cobertura de autoridades para buscar esse material. Iríamos com uma equipe multimídia: um fotógrafo, um cinegrafista e um repórter.

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Mulher carrega sacos de comida, enquanto passa por ponte de fiscalização das tropas brasileiras que integram a missão da ONU

Apuração

Decolamos em um avião da Força Aérea Brasileira de Brasília. Na escala em Boa Vista (RR) não pudemos seguir. O furacão Félix passava. O centro dele era exatamente na nossa rota até o aeroporto Toussaint Loverture, em Porto Príncipe. Tivemos que pernoitar lá. Com isso, o cronograma foi fatiado. Só teríamos um dia e meio de apuração no Haiti, incluindo a cobertura das autoridades. Achava que era o fim do especial. Contatei meu guia no Haiti e avisei dos imprevistos, numa tentativa de adiar nossa apuração em Cité Soleil. O guia é um haitiano de classe média alta lá. Tem casa, trabalho bom, caminhonete tracionada e falava fluentemente inglês, espanhol, francês e creoule.

Mesmo atrasado, combinei com ele que teríamos metade de uma tarde para fazer nossa apuração. Mataria a cobertura do Jobim na sede da Minustah, onde o “prejuízo” de informação seria menor. Assim foi. Saímos do hotel, Marcello Casal Jr., Oswaldo Alves e eu. Seguimos para Cité Soleil. Entramos pela rua principal e paramos em Soleil 6. Lá conversamos com Mário Sejour, um ajudante de obras afixionado pelo Brasil. Seu primeiro filho é uma homenagem ao atacante da Copa de 94: Romário. Foi elogioso à ação das tropas, mas disse que o problema deles não era só segurança. Era “trabalho, saúde, escola”, elencou. Ao seu redor um grupo de 15 pessoas se amontava para ver a “filmagem” dos brasileiros.

Depois, fomos para Ti Haiti, pequeno Haiti em creoule, local bem pobre de lá. Aí conversamos com dona Enel, uma senhora que vendia salgados nas vielas para pagar a escola de um de seus nove filhos. Era uma espécie de fogazza recheada com repolho. Custava 5 gourdes, na moeda local. Ela reclamava da falta de ocupação para os jovens. Só lembrando que no Haiti, mais da metade dos 8,5 milhões de habitantes tem menos de 20 anos de idade. Uma população jovem. Na maioria, também sem escola ou emprego. Na seqüência, só com um gravador de MP3 gravei o líder comunitário Jean, explicando um trabalho de formiga que faz por lá. Também comprei cd’s com músicas haitianas para servir como BGs do especial.

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Mário Sejour, ajudante de obras em uma empresa da zona portuária


Roteiro

Na volta, Marcello Casal Jr. fez uma edição sobre o material fotográfico. Era primoroso. Ganhamos esteticamente o especial ali, com aquelas fotos. Oswaldo Alves separou os 20 minutos de vídeo, gravados em uma câmera PD. Aí entrava o meu trabalho de roteirização. Como a base eram os depoimentos, precisava fazer a transcrição. Foi a luta maior. Eu havia entendido o sentido geral dos depoimentos por intermédio de meu intérprete, e para o inglês. Mas precisava da transcrição ipsis literis. Depois de uma semana procurando alguém para ajudar, inclusive na Embaixada do Haiti no Brasil, conheci duas haitianas que moram em Brasília e falam creoule. Foi a salvação.

Ficamos quatro horas transcrevendo tudo para usar nas legendas do especial. A partir dali, fiz uma sugestão de ordem das fotos com os três depoimentos em seqüência, divididos em duas sonoras cada. Então, o Rodrigo Savazoni pegou o original. E em 30 minutos fez um trabalho primoroso de misturar as “cartas”. Misturou a ordem das sonoras e deu uma seqüência lógica aos depoimentos e às cartelas – os textos que aparecem sobre o fundo preto no vídeo. Como exemplo, coloco aqui um trechinho original do roteiro.

(…)
BG – FADE IN – CD RASIN KREYOL – MÚSICA 12
FOTOS
CARTELA: “250 mil pessoas vivem na maior favela do mais pobre país das Américas”
FOTOS
BG – FADE OUT
SONORA 1 – ARQUIVO MOVIE 004 – 00″19′ a 01″20′ – Duração 00″59′
00″19′ – “Eu sou Mário Sejour, estou vivendo em Cité Soleil, tenho quatro filhos, tenho 27 anos, eu vou ao trabalho, tenho esposa e filhos”
00″35″ – “Aliás, estou muito feliz porque todas vezes que os jornalistas vêm eles não entram dentro de Cité Soleil para fazer o que vocês estão fazendo. Estou muito feliz. Sempre dizem que vão vir e nunca entram em Cité Soleil”
(…)

Haiti2
Garoto de Ti Haiti. Para nós o símbolo do termo “bon bagay”.
Ele me falava assim: “Ei, you. Give me chocolá”


Edição

Após o roteiro, Deak e Yaso definiram que o especial teria uma moldura máxima de 750 pixels por 500 pixels. Seria uma caixa preta com design minimalista para destacar a estética das fotos preto-e-branco e dos vídeos coloridos. O título do especial seria “Bon bagay Haiti, histórias de Cité Soleil”, uma sugestão do Spensy Pimentel. Escolhemos uma foto dos pés de dona Enel, ao lado das filhas. O chão de terra batida tinha uma área limpa para escrevermos o título em uma fonte leve e alaranjada. Paralelamente, o vídeo começou a ser montado pelo Deak no editor de vídeo Premier. Um trabalho chato em computadores de pouca memória. A programação foi feita pela Yaso e Mário Marco em action script.

Acabamos tudo na terça-feira (16), com a revisão das legendas. Aquela idéia inicial nascia depois de muitos obstáculos, com pequenas chances de ser concluída diante das condições de execução. O final está lá na Agência Brasil. E, posso dizer, este é meu último trabalho de reportagem na agência. Nesses quatro anos, redimensionamos editorialmente e esteticamente esse veículo digital da Radiobrás. Com sentimento de dever cumprido. Não deixa de ser um presente para todos os que acreditaram e fizeram parte desse processo.

Bon bagay!

 

Ah, o André Deak colocou no You Tube também. O embed tá aqui.

Missão fica no Haiti até outubro de 2008

A renovação da missão das Nações Unidas no Haiti era certa, todo mundo sabia – comentei isso num post anterior. A questão era saber por quanto tempo e se haveria alguma mudança. Os capacetes-azuis, sob a liderança do Brasil, ficarão no Haiti pelo menos até outubro de 2008. A decisão saiu das reuniões prévias do Conselho de Segurança no dia 10.

Na Agência Brasil, eu e a Ana Luiza Zenker fizemos uma matéria com esse furo. Entrevistamos, em primeira mão, um dos integrantes da missão brasileira na ONU, o ministro Paulo Tarrisse. O rascunho da nova resolução aponta recomendações para o combate ao tráfico de drogas e a fiscalização das fronteiras marítimas e terrestres.

Houve pequenas mudanças no perfil da missão. Uma delas será a redução de 140 soldados do limite máximo do contingente militar – de 7.200 para 7.060 – e um aumento no teto do contingente policial para 2.091. Essa era uma das recomendações do último informe do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

“Na prática, isso não afetou o componente militar, porque nunca se chegou a 7.200. Na questão policial, foi aumentada porque acredito que o problema hoje é muito mais de [garantia de] lei e ordem. A ONU pediu mais policiais porque eles têm uma interação maior com a população e têm outro tipo de finalidade em relação ao componente militar”, explicou o diplomata brasileiro.

UN Photo/Devra Berkowitz

Atualização (15/10/2007): essa matéria teve uma boa repercussão na imprensa neste final de semana. Vários jornais copiaram as informações ou registraram o temas em pequenas notas, alguns sem crédito, como receita o chupa-chupa desordenado da internet. Alguns deles – Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Jornal de Brasília, O Estado de S.Paulo e Zero Hora.

Lei de Crimes Hediondos mudou após casos de comoção nacional, mostram estudos

Por Aloisio Milani
Da Agência Brasil

Brasília – Alterações na legislação que trata de crimes hediondos – que significam repulsivos e horríveis, pelo dicionário – são realizadas em momentos posteriores a crimes de grande repercussão nacional. Segundo um parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária de 2005 e um estudo do advogado catarinense Rafael Antonio Piazzon, as mudanças foram feitas como respostas a essas demandas.

A análise mostra que a maior parte das mudanças se deu após casos como os seqüestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina, em 1990, o assassinato da atriz Daniela Perez, em 1992, e a veiculação de cenas de tortura e assassinato por policiais na Favela Naval, em Diadema, Grande São Paulo, em 1997.

A Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, estabelece quais são os crimes hediondos e determina aqueles que não poderão ter benefício ou anistia, regulamentando o inciso 43 do artigo 5º da Constituição Federal. Entre os crimes hediondos, estão homicídio qualificado, estupro e seqüestro. Os tipos de crimes foram adicionados à lei aprovada em 1990 de acordo com reações da sociedade. Diversos juristas, entre eles o próprio ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, se pronunciaram sobre problemas gerados pelo que chamam de “legislação do pânico”.

No estudo “A Progressão de Regime em Crime Hediondo”, o advogado Rafael Antonio Piazzon explica que a aprovação da lei, em 1990, foi impulsionada pelo caso do seqüestro de Roberto Medina e Abílio Diniz. “Os trabalhos no Congresso se adiantaram de tal forma que em 15 dias após o seqüestro de Medina estava aprovada a lei”, registra. Contudo, a rapidez na aprovação da proposta deixou de fora o homicídio entre esses crimes. “Mas outra vez foi graças à influência dos meios de comunicação que o mesmo foi incluído, pois foi com o assassinato da atriz Daniela Perez, filha da escritora de novelas Glória Perez, que o homicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos”, lembra no artigo.

Já a tortura entrou na lei em 1997, com a definição legal como crime. “Novamente houve um grande apelo popular para que a lei fosse aprovada, e dessa vez o que serviu de mote foi o escândalo numa favela de São Paulo, aquele do policial Rambo”, explica o advogado em referência às cenas de tortura na Favela Naval. O advogado conclui que essa relação é importante para entender a criação dessas leis. “É necessário reconhecer que a opinião pública pensa exatamente o contrário e reivindica penas criminais e tratamento prisional ainda mais severos. Por isso é difícil esperar um posicionamento do Congresso Nacional, que é sensível aos apelos da população.”

Segundo um parecer do conselheiro Carlos Weis, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, os conceitos que geraram a Lei de Crimes Hediondos são vistos como contraditórios em relação aos “princípios elementares do direito penal”, sobretudo o princípio da humanidade e o da ressocialização da pena (que prevê a reinserção gradual do detento na sociedade).

O conselheiro cita o trabalho do jurista César Barros Leal como forma de demonstrar a reação primeira da sociedade a essa lei: “mergulhada no espiral da violência e manipulada pelos meios de comunicação social e pelos movimentos de lei e ordem (law and order), a sociedade, atemorizada, em pânico, sem saber o que fazer, é induzida a não pensar nas raízes do problema, na possibilidade de enfrentá-lo em suas origens e simplesmente demandar mais repressão, novos tipos penais, mais prisão.”

Um levantamento do Núcleo de Estudos, da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisou os debates sobre segurança pública de 1822 a 2005, concluiu que as políticas para a área no Brasil são pensadas sempre em caráter de emergência.

Agora, a Câmara dos Deputados colocou novamente na pauta dois projetos de lei (PLs) que alteram a Lei de Crimes Hediondos. O primeiro deles, o PL 6.793 de 2006, de autoria do Poder Executivo, torna mais rígida a progressão do regime prisional para os condenados por crimes hediondos. A alteração prevê o aumento do tempo mínimo da pena em regime fechado de um sexto para um terço do total – somente após esse período haveria espaço para mudar o regime. O PL 4.500 de 2001, do Senado, também exige essa mudança.

Obs.: texto publicado originalmente na Agência Brasil no dia 14 de fevereiro de 2007.

Em 64, diplomacia brasileira também foi interrompida

Aloisio Milani
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Além do projeto de nação desenvolvido pelo governo João Goulart, o golpe militar de 1964 também rompeu com o amadurecimento das relações exteriores do Brasil, desenvolvido na época no interior do Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores havia consolidado na época uma postura que livrava o país de seguir automaticamente qualquer um dos lados que dividiam a hegemonia mundial, Estados Unidos e União Soviética. O que não significava ausência de relações com nenhum deles. Essas orientações, iniciadas no governo Jânio Quadros, formaram a “política externa independente”, posteriormente interrompida e redirecionada pela ditadura.

Historiadores enxergam a política externa de 1961 a 1964 como mais um ingrediente que levou ao golpe. Em muito, causado pelo temor de que o Brasil seguisse os passos da revolução dos “barbudos” de Fidel Castro, em Cuba. Segundo o cientista político René Armand Dreifuss, em seu livro “A Internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional”, as “elites orgânicas articularam-se internacionalmente para desestabilizar o governo Goulart, cuja política exterior provocava aversão”.

Como a política internacional reflete na essência a própria política interna, os militares golpistas optaram, em primeiro lugar, por um desenvolvimento contrário ao que Jango propunha. “Mais do que um simples golpe, os militares optam por um modelo conservador de desenvolvimento em clara contraposição ao projeto reformista da esquerda”, diz o historiador Antonio José Barbosa, autor da tese “O Parlamento e a Política Externa Brasileira (1961-1967)”.

Os princípios da política externa independente (PEI) foram sistematizados essencialmente por três intelectuais que comandaram a chancelaria desde Jânio Quadros até a vitória do golpe. San Tiago Dantas, Araújo Castro e Afonso Arinos de Melo Franco. O primeiro deles publicou um livro pela editora Civilização Brasileira sobre as idéias da PEI no auge dos acontecimentos, em 1962.

As bases da PEI estabeleciam a recuperação dos princípios de “não-intervenção e autodeterminação”, a ampliação dos mercados para o país e o “apoio à descolonização e a auto-formulação de planos de desenvolvimento” de acordo com as regras democráticas internas. “A posição internacional de nosso país tem evoluído de forma consistente para uma atitude de independência em relação aos blocos político-militares existentes, que não deve ser confundida com outras atitudes comumente designadas de neutralismo ou terceira posição”, escreveu San Tiago em seu livro.

“Nessa época, houve um início de contato com algumas das mais importantes lideranças do mundo para se criar um pólo alternativo. Em 1961, como resultado da Conferência de Bandung, surgiu o movimento dos países não-alinhados com Josip Broz Tito (Iugoslávia), Gamal Abdel Nasser (Egito) e Jawaharlal Nehru (Índia). No Brasil, o governo Jânio Quadros se aproxima desses ideais”, explica Barbosa. A cidade de Bandung, na Indonésia, ficou conhecida em 1955 por receber representantes de 29 países da África e Ásia, unidos por um mesmo questionamento: qual seria o lugar do terceiro mundo diante da polarização entre norte-americanos e soviéticos?

O Itamaraty criou a divisão para assuntos da África, até então inexistente, aumentou suas representações diplomáticas e restabeleceu as relações com a União Soviética. No mesmo ano do encontro em Bandung, o ministro Arinos foi o primeiro a chamar a atenção na Organização das Nações Unidas (ONU) para outra “divisão do mundo” que não só norte-americanos versus soviéticos – a entre “ricos e pobres”.

O Brasil apoiou o processo independência da Argélia e de Angola, contrariou os Estados Unidos sobre o bloqueio e a possível intervenção em Cuba. Na Conferência de Punta Del Este, no início de 1962, o governo brasileiro deu sua cartada aos países da América. O ministro San Tiago Dantas declarou que o Brasil assumia uma postura não-alinhada aos norte-americanos. A derradeira para o desagrado das elites conservadoras.

No Congresso, parlamentares atacavam os ministros. Nas audiências de esclarecimento da política, os diplomatas eram questionados sobre a incompatibilidade de ser “subdesenvolvido” e “independente”, acusando-os de aproximação com a “ameaça vermelha”. O deputado Arruda Câmara, por exemplo, em sessão de agosto de 1962, acusou o governo brasileiro, na figura de San Tiago Dantas, de estar “distanciando dos sentimentos da maioria do povo brasileiro, que não aceita de bons olhos essa política de mão estendida” ao comunismo.

Dantas, em contrapartida, atacou: “Quanto a saber se o Ministro das Relações Exteriores pratica a política que quer o povo, peço licença para dizer que não considero que nenhum governo, que nenhum partido, que nenhum deputado isoladamente, possa irrogar-se o privilégio de representar os sentimentos do povo brasileiro”. Somente quem o pode fazer, para o ministro, é o Congresso Nacional.

Os discursos dos ministros se transformavam em manifestos em defesa de uma nova posição nos diversos assuntos do contexto mundial. Leia abaixo trechos dos pronunciamentos dos ministros Afonso Arinos (janeiro a setembro de 1961 e julho a setembro de 1962) e San Tiago Dantas (setembro de 1961 a julho de 1962) em sessões na Câmara dos Deputados. Os depoimentos foram reproduzidos das edições do Diário do Congresso Nacional:

Independência X subdesenvolvimento

“Acho que podemos ter uma atitude independente embora sejamos um país subdesenvolvido. É preciso firmarmos a nossa independência no campo internacional para possibilitar o nosso desenvolvimento. Essa deverá ser a nossa atitude. Entre as razões pelas quais procuramos fazer política independente está a necessidade de sairmos dessa etapa miseranda de subdesenvolvimento. Se formos esperar ser um país desenvolvimento para nos tornarmos independentes chegaremos à conclusão de que não alcançaremos nunca esse estágio. Nunca podermos usar nossa soberania em benefício do nosso desenvolvimento, partindo do princípio de que um país estrangeiro jamais tem atitude de caridade no sentido de desenvolver a economia de outro país (…)”
(Ministro Afonso Arinos, 1961)

Auto-formulação do desenvolvimento

“O que penso é que o Brasil vem mantendo o princípio de que não deseja dividir com nenhum país responsabilidades na orientação dos seus problemas de governo e na adoção de suas soluções, mas tem procurado ajustar condições de cooperação internacional bastante eficazes e em escala correspondente às nossas necessidades.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)

Política externa não se separa da interna

“Considero que a política externa não é separável do conjunto da política realizada num país. Por conseguinte, é indispensável que, ao mesmo tempo que afirmamos nossa independência na nossa vida econômica, [tenhamos] uma política que seja realmente de fomento da emancipação nacional. Acredito, entretanto, que a política externa nos dias de hoje tem em grande parte esse papel pioneiro, talvez porque a definição da posição dos povos vem em grande parte da sua posição no exterior.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)

Conferência de Punta Del Este

“É verdade que se discutiu muito, aqui em nosso país, se a política brasileira, sobretudo depois de Punta Del Este, era ou não era do agrado do Departamento de Estado (dos Estados Unidos). Confesso que não julguei jamais do que meu dever apurar o ponto, pois realmente só desejo saber se a política exterior do Brasil era do agrado da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Se ela é do agrado dessas entidades, ela aduz a opinião do povo brasileiro e será, pelo menos, cumprida a honra de dirigir o Itamaraty.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)

Auto-determinação

“O que é necessário é que não tomemos a posição indiferente e passiva de nos limitarmos a dar o nosso apoio às posições polêmicas em que uma das grandes potências nucleares se venha a colocar, e, sim, que ponhamos a nossa fé, o nosso espírito pacifista e a nossa capacidade de compreensão a serviço da única causa que verdadeiramente remunera: a causa da paz, aquela que nos conduz a encontrarmos, pouco a pouco, o caminho da segurança onde possa de fato florescer o mundo que desejamos viver.”
(Ministro San Tiago Dantas, 1962)

Fonte: Agência Brasil (2004)
https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-04-05/em-64-diplomacia-brasileira-tambem-foi-interrompida