Projeto da Nova Lei do Direito Autoral tenta aumentar a presença do Estado e acabar com atrasos do setor, mas enfrentará resistência dos intermediários das obras culturais
Aloisio Milani
Da Retratos do Brasil
O direito autoral no Brasil está numa encruzilhada, acuado entre os exemplos de seu atraso. Nas universidades e faculdades, alunos tiram cópias de livros para estudar a bibliografia sugerida pelo professor. Em outro lugar, internautas trocam arquivos mp3 usando softwares pier-to-pier para, depois, serem ouvidos em players portáteis e celulares. Enquanto isso, bibliotecas trabalham entre a cruz e a espada na preservação e digitalização de obras raras. Se não reproduzirem os livros velhos, podem perdê-los, mas precisam encontrar e negociar os direitos de cada obra para poder salva-las. E mesmo quando o protagonista da “reprodução” é o próprio autor, a lei não o ajuda. A trupe musical Teatro Mágico já foi multada por ter feito um bis em um show com uma canção própria, mas que não estava na lista aprovada no Ecad – órgão que cobra por execuções públicas de músicas.
Todas essas situações, bastante cotidianas, têm algo em comum: são crimes previstos em lei, porque não possuem autorização expressa dos autores e/ou detentores dos direitos. A Lei nº 9.610, sancionada em 1998, é o centro dessa polêmica. Com pouco mais de uma década de existência, a legislação é a única arma para proteger artistas e intelectuais. É abrangente para tratar de livros, cinema, teatro, música, mídia, educação e conhecimento científico, mas não contempla usos já incorporados pela sociedade, nem protege totalmente seu autor – muitas vezes, refém de intermediários que se apropriam da maior parte do lucro das obras. Tampouco a lei indica soluções para um mundo que se “digitaliza”. São essas as regras que ditam o formato de toda estrutura da economia da cultura. Uma cadeia produtiva que movimenta bilhões de reais.
“A Lei de Direitos Autorais como existe hoje não dá conta da proteção efetiva do autor e não tem mecanismos para que a obra circule de maneira mais democrática”, avalia Guilherme Varella, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), um dos articuladores de uma rede de 20 entidades da sociedade civil que apóiam o governo na reforma da lei. “A rede acredita que, além da função privada de proteção do autor, a lei precisa levar em conta a esfera pública. E ela deve ser contemplada para a consagração de outros direitos também fundamentais, como o da educação, cultura e acesso ao conhecimento”.
Quem lidera a formulação de um novo projeto de lei dentro do governo é o Ministério da Cultura. O debate começou três anos atrás com a realização do Fórum Nacional do Direito Autoral. Oito seminários e 80 reuniões com representantes do setor também foram feitas. Muitas propostas foram enviadas e incorporadas ao projeto. O tema dominou a pauta de cinco reuniões do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), tamanha as relações com as demais áreas do governo. Onze pastas estavam na discussão. A minuta do texto foi concluída e submetida à Casa Civil para consulta formal dos ministérios. A íntegra do projeto ficará disponível na internet para receber contribuições e questionamento formais.
“Temos três princípios maiores com este projeto”, explica o coordenador de Direitos Autorais do Ministério da Cultura, Marcos Alves de Souza. “O primeiro é equilibrar a relação do autor com o intermediário, porque a lei hoje privilegia mais o investidor. Precisamos adotar dispositivos, hoje já existente no Código Civil, que permitam a revisão de contratos desfavoráveis ao autor. O outro princípio é melhorar a relação entre os titulares dos direitos autorais e a sociedade. Ou seja, são os usos justos que regem o cotidiano e que não prejudicam a exploração da obra. Isso está representado hoje na lei no capítulo das limitações [artigo 46]. Queremos equilibrar os direitos dos titulares com o direito da população de ter acesso à informação e cultura. O terceiro princípio diz respeito ao papel do Estado, porque a legislação atual tem uma interpretação focada no direito privado, mas há também o interesse público nas relações de consumo, fruição e conhecimento. Precisamos retomar esse papel”.
Qualquer relação entre a obra e sua reprodução é influenciada por essa lei. E há sinais de que ela ainda não consegue abranger o autor em todas as etapas da produção cultural. No audiovisual, por exemplo, roteiristas e diretores pleiteiam há anos receber pela exibição pública das produções. Isso hoje não é possível pelo formato da Lei 9.610 e pela falta de organização da classe. Não existe a figura arrecadadora do cinema, como existe o Ecad para a música. “Não descartamos a função fiscalizadora que eventualmente o Estado possa exercer, mas julgamos que a arrecadação e distribuição dos direitos é tarefa particular e privada”, afirma o presidente da Associação dos Roteiristas de Televisão, Cinema e Outras Mídias, Marcílio Moraes, em documento recente da entidade.
No caso da educação, estão em questão todos os materiais, em qualquer suporte, utilizados como apoio didático, em sala de aula ou no ensino à distância. Para mapear esse setor, o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI) da Universidade de São Paulo elaborou o estudo chamado “O mercado de livros técnicos e científicos no Brasil”. Ao avaliar os livros exigidos no primeiro ano de dez cursos de graduação da USP, os pesquisadores indicaram que um terço da bibliografia estava esgotada, e para a grande maioria dos estudantes, a compra da bibliografia indicada comprometeria quase a totalidade da renda mensal familiar.
Para Pablo Ortellado, um dos coordenadores da pesquisa, a atual Lei do Direito Autoral ainda impede o trabalho de instituições do patrimônio cultural e artístico, porque exige a autorização dos titulares de direito mesmo para tirar uma cópia integral de preservação. “E como, muitas vezes, não se consegue localizar o titular, porque as obras são muito antigas, ou se faz a cópia na ilegalidade, ou se pode perder o acervo”, diz. “Também há uma enorme vigência do direito autoral por aqui – a lei protege toda a vida do autor, mais outros 70 anos depois de sua morte. Isso é em média 20 anos a mais que em outros países. Se uma editora que tem os direitos de publicação, não o faz, a obra não circula”.
Mas é no setor musical que se ouve o maior número de oposicionistas ao anteprojeto, sobretudo quanto à possibilidade de criação de um órgão estatal que regule a cobrança e distribuição dos direitos autorais. Hoje, essa etapa é auto-regulada. Associações privadas organizam suas próprias regras de fiscalização. Entidades de artistas, compositores e advogados fazem a gerência do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) – um órgão não-estatal que comanda as regras do setor. Em 2009, por exemplo, arrecadou R$ 374 milhões com a cobrança de direitos em rádios, televisões, shows, bares, cinemas, festas etc. Os gritos de oposição dessas entidades se baseiam no temor de que o projeto rompa com a rotina e os métodos de trabalho construídos há anos.
A superintendente nacional do Ecad, Glória Braga, já argumentou publicamente que a lei atual é “nova” e cumpre sua função. Procurada, a superintendente não quis se pronunciar mais uma vez antes de ler a íntegra do anteprojeto. A mesma foi a resposta do músico Danilo Caymmi, que há havia criticado por várias vezes a iniciativa. “Prefiro me pronunciar quando tiver o projeto na mão, porque até agora só foi muito discurso para pouca ação”, resumiu. Caymmi foi um dos artistas que esteve presente na criação do Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, grupo que questiona a proposta apresentada pelo governo. No lançamento do comitê, o presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), Roberto Mello, engrossou o coro com um manifesto. “Esse movimento ocorre às escâncaras, na certeza que assim criarão um abismo de interesses entre criadores e ingênuos”, leu Mello durante o evento em abril. Para ele, existe a “clara” intenção de alterar as estruturas que dizem respeito “única e tão somente às classes que têm direitos autorais”.
A encruzilhada de problemas fica mais complicada ao unir ao debate a prática constante e generalizada do “jabá” – prática das gravadoras de injetar dinheiro em canais de rádio e televisão para tocarem seus artistas. Alavancam seus produtos às listas de músicas mais ouvidas e, com isso, recebem mais direitos autorais. Um dinheiro que vai e volta, embora a fórmula não seja admitida em público pelas entidades. “A ironia é que são justamente transações privadas e secretas ocupando rádios e TVs, que são, por essência, concessões públicas e deveriam primar pela diversidade musical”, diz Fernando Anitelli, líder do grupo Teatro Mágico.
De acordo com Marcos Alves de Souza, do Ministério da Cultura, a criação de uma instituição que cuide especificamente de direito autoral só será feita ao final do processo de discussão e aprovação do projeto de lei. “Primeiro, precisamos saber qual o tamanho das novas competências. Sobre as sociedades de distribuição coletiva, o que existe hoje é um monopólio legal só que sem qualquer tipo de supervisão estatal. O projeto prevê isso justamente para garantir transparência, critérios justos e uma instância de resolução de conflitos, porque hoje todos eles deságuam no judiciário”, diz. “Claro que a proposta provoca reações. Eventualmente pode haver um temor desmedido sobre estatizar as sociedades, mas não se trata disso. Não vamos assumir o papel dessas entidades, inclusive porque são elas que cuidam do âmbito privado. Nossa intenção é dar mais proteção aos autores. Quando isso ficar claro, o diálogo vai melhorar”.
A discussão no ambiente da música e dos livros deve ditar os rumos do projeto porque interfere no modelo já construído de negócio. Por outro lado, na contramão deste processo, há um novo mundo surgindo no qual o Brasil engatinha em regulação: as novas tecnologias de acesso a acervos de conteúdo artístico e cultural. A internet facilitou tremendamente o acesso, assim como a capacidade de se fazer cópias privadas e em larga escala. A simples navegação na rede se baseia, tecnicamente, em cópias de arquivos de texto, fotos, vídeo e áudio. Tudo que deriva disso não está contemplado pela legislação. “O difícil é que estamos precisando revolver os problemas analógicos para começar a buscar as soluções para o digital. Nenhum país conseguiu ainda resolver essas novas questões”, reconhece Marcos Alves de Souza.
No saldo da encruzilhada do direito autoral, o desafio maior é como colocar na mesa de negociação interesses tão díspares, do privado e do público, num ano político curto, com Copa do Mundo, eleições presidenciais e logo atrás da já difícil articulação do projeto de mudança da Lei Rouanet, que altera o formato do incentivo à cultura feita por renúncia fiscal.
Fonte: Retratos do Brasil (julho de 2010)
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