Criminoso haitiano condenado nos EUA

Há quem diga que a justiça tarda, mas não falha. Nesse caso, ela errou em um e acertou em outro. Terminou nesta semana, o julgamento do criminoso de guerra Emmanuel “Toto” Constant (foto abaixo). Ele foi condenado a 15 anos de prisão. Mas, como havia falado aqui, não pelas violações dos direitos humanos. E, sim, por uma fraude no sistema hipotecário nos Estados Unidos. Constant que foi líder do grupo paramilitar FRAPH (Frente para o Avanço e Progresso do Haiti) e perseguiu partidários do ex-presidente Jean Bertrand Aristide após o golpe contra ele em 1990. Organizações de direitos humanos comemoraram a condenação da hipoteca como justiça pels crimes passados. Via Herald Tribune.

Tesouro da música no jogo político

Samba e música clássica. Um barco dos Estados Unidos, com um estúdio de gravação, atracado no cais da Praça Mauá. Em 1940, alguns dos melhores músicos brasileiros e norte-americanos foram agentes do jogo diplomático da Segunda Guerra Mundial. Roosevelt e Getúlio, diálogo intermitente por conta da política pendular. O Brasil ainda não se posicionou diante do conflito mundial. (Corta)

Fuçando meus arquivos, lembrei de um assunto que gostei muito de pesquisar. A Missão Stokowski. Hein? Explico. Essa pauta eu transformei numa reportagem para a Revista Carta Capital, lá atrás, em abril de 2002. Aí, pensei. Vou colocar a dita no blog com uns áudios e umas imagens da pesquisa. Vai ficar bem melhor para ler, assim podendo ouvir. Eis o remix de uma reportagem. (Segundo corte)

Tesouro perdido da Missão Stokowski
Com a ajuda de Villa-Lobos e da nata da música brasileira, o maestro registrou 40 músicas no Rio, em 1940. A maior parte do material está sumida. Há planos de fazer um filme e lançar um CD com o que restou.

A política de boa vizinhança durante a Segunda Guerra Mundial foi a arma dos Estados Unidos para estreitar as relações culturais com o Brasil. Duas viagens ficaram famosas nesse período: a de Walt Disney, em 1941, e a de Orson Welles, em 1942. Mas, antes dos dois, outro artista ilustre já havia desembarcado em terras brasileiras para vender a idéia da unidade pan-americana. Leopold Stokowski, o maestro da trilha do filme Fantasia, protagonizou um flerte com a música brasileira. Um acontecimento que até hoje é pouco estudado mesmo nos livros de História do período.

Foi no dia 7 de agosto de 1940. Nesse dia chegou ao Rio de Janeiro o navio Uruguai, em missão oficial norte-americana. Não trazia somente militares. A bordo estavam Leopold Stokowski e os 109 músicos da All American Youth Orchestra, para apresentações no Teatro Municipal. Era a primeira parada de uma excursão pela América do Sul, que incluiu São Paulo e Buenos Aires.


Depois do concerto com direito a Brahms, Wagner e Tchaikovski, o regente Stokowski voltou ao navio para gravar música brasileira. Isso mesmo. Durante oito horas seguidas foram gravadas 40 músicas nacionais num estúdio da Columbia dentro do próprio Uruguay. No elenco musical, os melhores representantes brasileiros: de Pixinguinha a Cartola, de Villa-Lobos a Jararaca e Ratinho. Realmente uma jóia, ouro puro.

Essa é a história de Native Brazilian Music, um disco brasileiro lançado somente nos Estados Unidos. Uma gravação de pouca memória, mas um marco do namoro cultural dos dois países. Com um pé na política e outro na arte, o disco resultou inacabado. É uma propriedade dos gringos e, mesmo por lá, ficou esquecido. Os fonogramas originais até hoje estão desaparecidos.

Agora o Museu Villa-Lobos e a Academia Brasileira de Música planejam remasterizar o álbum em CD no Brasil. O diretor de cinema Marcelo Serra também tem um projeto para rodar um curta-metragem intitulado Missão Stokowski. Um mote para que a história renasça.

Quando Stokowski escreveu para o maestro Villa-Lobos, pedindo-lhe que organizasse artistas da legítima música brasileira para gravar um disco, não fazia idéia do que estava por vir. Reuniram-se o samba, a macumba, o choro, a embolada, o cântico indígena, o frevo e o maxixe. Atracado no armazém 4 do cais da Praça Mauá, o salão do navio, equipado com estúdio, ficou cheio de jornalistas, fotógrafos e músicos da All American Youth Orchestra. O Tio Sam viu nossa batucada. Provavelmente, numa das primeiras vezes.

Já era quase meia-noite quando começaram as gravações. Pixinguinha soprou seus solos de flauta por vários números. Segundo registros de O Globo, o solo de “Urubu Malandro” arrancou elogios: “Esse é um dos melhores flautistas que já ouvi”, disse um dos chefes de grupo da orquestra. Quem estava ali também presenciou o primeiro registro solo da voz de Cartola. Isso bem antes do seu primeiro LP, lançado pela gravadora Marcus Pereira em 1974.

Cartola cantou “Quem me Vê Sorrir”, “Tristeza”, “Meu Amor” e “Primeiro Amor”, todas com coro e batida da Velha Guarda. Villa-Lobos conhecia a roda da Mangueira como a palma da mão. Dela selecionou a macumba e o samba: Cartola, Zé da Zilda, Zé Espinguela, Aluísio Dias, e o coro das pastoras com Dona Neuma, Cecéia, Nadir, Ornélia, Guiomar, Nesília e Neguinha. Carlos Cachaça, assim como Ataulfo Alves, não foi porque estava trabalhando. O samba também viria representado por Donga, um amigo pessoal de Villa-Lobos, e que ajudou a selecionar os grupos musicais.

Donga deixou sua marca. Depois do clássico “Pelo Telefone”, o primeiro samba registrado no Brasil, emplacou outras oito canções que foram selecionadas para o álbum. A essa altura, até o capitão do grande navio sentou-se para apreciar os brasileiros.

O pai-de-santo Zé Espinguela, conhecido também como Pai Alufá, trouxe o ritmo marcante da origem africana. Macumba de Oxóssi e Macumba de Iansã devem ter incomodado bastante os ouvidos clássicos de quem ainda rejeitava o popular. Mais cômico somente imaginar o erudito Stokowski assistir à embolada de Jararaca e Ratinho: “O sapo dentro do saco,/ o saco c’um sapo dentro,/ o sapo batendo papo,/ o papo fazendo vento”.

No salão foi servido um banquete. No livro Cartola: Todo o Tempo que Eu Viver, do cineasta Roberto Moura, Dona Neuma se lembra: “Eu ainda era criança… foi a primeira vez que nós comemos peru com abacaxi, carne de porco com ameixa, um jantar luxuoso. O samba rolou até de manhã. Nós cantamos num palco, ele (Stokowski) regendo”.

Regeu, mas pouco. Stokowski retirou-se para seu quarto por volta das 3 da manhã. Deixou as gravações sob o cuidado de seu assessor, Michel Meyeberg. Os números continuaram com Zé da Zilda, João da Baiana, Luís Americano, Paulo da Portela, Laurindo de Almeida, Augusto Calheiros, David Nasser, Janir Martins.

Toda essa epopéia tem um outro lado, o político. Em fevereiro de 1940, Stokowski enviou uma carta ao secretário de Estado Cordell Hull pedindo para excursionar com sua orquestra pela América do Sul. A resposta chegou rapidamente, 12 dias depois. Era um “sim” bem largo com a aprovação do presidente Roosevelt. Em tempos de guerra, cativar laços com o vizinho verde-amarelo não era perda de tempo. Ainda mais com as suspeitas de que Getúlio Vargas poderia trocar figurinhas com o nazismo.

Foi quando Heitor Villa-Lobos recebeu a carta de Stokowski, que pedia o favor de organizar músicos da legítima música brasileira para uma gravação a ser utilizada num futuro Congresso Pan-americano de Folclore. Uma tentativa de unir a América por laços culturais. Só que o evento nunca iria acontecer.

Donga selecionou os músicos a pedido do próprio Villa-Lobos. Donga era rato das rodas de samba e de candomblé. Era amigo de Pixinguinha e Zé Espinguela, dois grandes conhecedores da nossa música. Com o projeto feito, Donga pediu, por carta, um “adeantamento” em dinheiro para o cachê dos grupos. Villa-Lobos vai além. Pede a Stokowski US$ 500 (em valores da época) e faz a exigência de que cópias dos originais fiquem no Rio.

Não há registro algum de que esse dinheiro chegou nem que os originais ficaram por aqui. A filha de Donga, Lygia Santos, confirma que o pai não recebeu um tostão. Cartola, um ano e meio depois, recebeu “1$500”, o que comprava só três maços de cigarro. Sobre o restante do grupo? Ninguém recebeu nada.

Parecia um pouco desleixado demais, para não dizer uma jogada política. O jornal Folha da Manhã cita que, na missão oficial, também chegaram tenentes da Aeronáutica americana e outros oficiais. O major Edwin Luther Sibert é um exemplo. Novo adido militar, ele falou ao jornal que seu cargo no Brasil seria muito importante. Quem enfatizou isso a ele, afirma, foi o próprio general George Marshall.

O presidente Roosevelt, no mesmo dia da chegada do navio, afirma nas páginas do Jornal do Brasil: “Falando à imprensa, o presidente Roosevelt diz que a unidade pan-americana é agora, sem dúvida, um fato muito mais concreto do que em qualquer ocasião anterior”.

Aqui já estava o coronel americano Lehman Miller, que foi receber o navio no cais. Miller era o chefe da missão militar americana para estudar a defesa da costa brasileira. Um documento secreto, citado por Moniz Bandeira, no livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, mostra o coronel como autor do plano de “utilização” das bases, portos, estradas e comunicações do Brasil pelas Forças Armadas americanas, caso se tornasse necessário. Fez também um pedido pessoal ao general Góes Monteiro para que mobilizasse a opinião pública a favor dos americanos. Tinha caroço nesse angu.

“Já não pertence mais à praça. Já não é samba de terreiro. Vitorioso ele partiu para o estrangeiro.” Foi assim como canta o samba de Cartola e Carlos Cachaça que Native Brazilian Music começou a ficar no esquecimento. Os próprios livros de história sobre a política da boa vizinhança não citam Stokowski como personagem importante.

Se a viagem não rendeu um disco com a propaganda que se esperava, ela foi pelo menos uma das primeiras tentativas de aproximar as duas almas americanas. Os principais dados existentes sobre essa viagem estão nos livros Pixinguinha – Filho de Ogum Bexiguento e Cartola – os Tempos Idos, os dois de autoria de Marília Barboza e Arthur de Oliveira.

Foi lendo e procurando os detalhes que a jornalista americana Daniella Thompson se atolou até o pescoço com a história. Aos 56 anos, é formada em Literatura Inglesa pela Universidade de Tel-Aviv, em Israel. Roteirista e jornalista, Daniella apaixonou-se pela música brasileira. Começou a escrever para uma revista mensal de Los Angeles, chamada Brazzil, na qual publicou um grande artigo sobre o disco quando a história completou 60 anos.

Ela relembra no texto que a viagem de Stokowski foi anterior à criação de Zé Carioca, por Walt Disney, e às filmagens de Orson Welles para o documentário It’s All True. Com um grande panorama do disco, Daniella começou uma busca desenfreada pelos 40 fonogramas originais, que, em tese, deveriam estar nos arquivos da Columbia, hoje pertencentes à Sony Music americana. “A gravadora nunca respondeu a meus pedidos de procura e não há pistas sobre a possibilidade de estarem no Brasil”, diz.

Daniella Thompson aponta os descuidos com a gravação. Tinha problemas na qualidade do som, o que, para ela, pode ter feito várias músicas serem descartadas. “O técnico de som era norte-americano – pouco familiar com música e instrumentos afro-brasileiros – e ele teve de se contentar em gravar até o último dos 40 números em uma única sessão. Esse era apenas o primeiro sinal de que o bom vizinho do Brasil não dava muita importância para a música.”

De concreto mesmo só a certeza de que a excursão de Stokowski existiu e de que o disco, com 16 músicas, foi lançado às pressas e com muitas imperfeições. A mágica da política.

O desleixo dos gringos
Só 16 das 40 músicas foram aproveitadas no disco americano. Quase todas as faixas saíram com erros grosseiros de grafia

O nome do lançamento foi Columbia Presents – Native Brazilian Music – Leopold Stokowski. Dois 78 rotações com quatro músicas de cada lado. De um total de 40 gravações feitas no navio, apenas 16 foram aproveitadas. Ficaram belas músicas, perderam-se raridades. Um tesouro rachado ao meio.

A deficiência na qualidade de som pode ter vitimado composições como Urubu Malandro, de Pixinguinha. De Cartola somente Quem me Vê Sorrir foi encaixada. Samba da Lua e Sofre quem Faz Sofrer, de Donga e David Nasser, também ficaram para trás.

Mas o pior está por vir. Marília Barboza e Arthur de Oliveira reproduzem em seus livros os erros na grafia dos nomes dos autores e das músicas, que estão em quase todas as faixas: “Jose Espingucla, Rae Alufá, Samba Concao, Macumba de Ochocê, Tocanda pra voce, Passarinho baleu asa, Zamba”, etc. Frustrante para qualquer um.

A capa do álbum possui a silhueta de três rostos, cada um representando as raças formadoras do Brasil. O texto de apresentação afirma que Stokowski escolheu o que pensou ser o melhor e o mais típico. Ele selecionou e supervisionou pessoalmente as gravações. Propaganda demais, mas pouco resultado para quem se dizia amante da cultura brasileira.

Em 1987, o Museu Villa-Lobos lançou o disco remasterizado em long-play. Até então, uma das únicas gravações que estavam no Brasil pertencia ao crítico de música Lúcio Rangel. Justamente um amigo dele, o pesquisador Suetônio Valença, acabará sendo o responsável pela edição brasileira de Native Brazilian Music.

A edição foi limitada e logo se esgotou. Os encartes possuem referências sobre a política da boa vizinhança, um texto do historiador Ary Vasconcelos e as correções dos nomes das músicas. É sensacional escutar o samba “Seu Mané Luís”, o maracatu Zé Barbino, a embolada “Sapo no Saco” e os cânticos indígenas do coro do Orfeão Villa-Lobos.

“Para mim, o disco é uma síntese da música popular da época. É um documento importante sobre o momento em que a música vivia”, afirma Suetônio. Será essa edição que ganhará o suporte digital do CD. “Já temos a verba, só falta a autorização da Sony Music, que tem os diretos da Columbia”, diz Turíbio Santos, diretor do museu.

Nas telas, a visão de uma tragédia
O cineasta Marcelo Serra planeja filmar Missão Stokowski, com o diretor José Celso Martinez no papel do maestro estrangeiro. Tal qual o drama dos jangadeiros, filmado por Orson Welles, Native Brazilian Music tem tudo para virar uma produção para o cinema. O diretor Marcelo Serra tornou-se mais um apaixonado pela história. “Ao mesmo tempo que é sensacional pelos detalhes, é uma tragédia. A gravação da cultura brasileira foi tratada somente para instrumento da política da boa vizinhança”, define.

A trajetória do disco da Columbia seria contada na produção Missão Stokowski, que já tem projeto pronto. Embora esteja à espera de recursos para iniciar a filmagem, Marcelo já rodou algumas entrevistas com pesquisadores do disco, inclusive a jornalista Daniella Thompson. Esse material renderia um documentário, só que a sua idéia principal seria fazer uma releitura do acontecimento. Um curta-metragem atual de uma história antiga.

“Além da ausência de imagens de época para só um documentário, eu gosto de jogar com esse dueto realidade e ficção”, explica Serra. “Seria uma mistura de esquetes com realidade para parodiar passagens e encontros de artistas, aproximando o erudito do popular.” Para dar uma visão atual, Marcelo mostraria o que há de mais autêntico na música brasileira hoje.

Para o elenco, Serra quer convidar Paulo Moura para viver Pixinguinha, Seu Jorge para Zé Espinguela e Yamandú Costa para Villa-Lobos. José Celso Martinez, “o melhor maestro de atores que conheço”, elogia o cineasta, já aceitou fazer o maestro Stokowski. O roteiro ainda possui o enigmático personagem Mr. Broadcast, responsável por manipular a própria trama e jogar ao mar os originais das gravações recém-saídas do forno. Marcelo Serra aguarda o financiamento das produtoras às quais entregou o projeto. É esperar para ver.

Reino dos deuses do vodu

A mitologia do vodu haitiano é muito semelhante à do candomblé. Os deuses haitianos, assim como os orixás do candomblé, possuem histórias de vida, sentimentos humanos e uma divindade que beira o nosso mundo cotidiano. A ética judaico-cristã, que pressupõe o pecados e a culpa diante da busca da salvação, não está presente no culto da religião.

O último post me lembrou de um livro haitiano que li há algum tempo. Chama-se “Pays sans chapeau”, de Dany Laferrière, escritor haitiano que deixou o país durante a ditadura de Papa Doc. Li, na verdade, a tradução do livro, que, se não me engano, sequer foi publicada. A tradução está na tese de mestrado de Heloísa Caldeira Alves Moreira, pela Universidade de São Paulo.

Aqui o rosto do Dany, autor do livro, retratado pelo jornal Le Monde.

Reproduzo abaixo um trecho em que o narrador está numa viagem pelo reino dos deuses do vodu. Encontra Ogum, deus da guerra, e sua esposa Erzulie, deusa do amor… e lá vai ele:

(…)

Ogum, o deus do fogo.

Um homem de grande estatura, sem camisa, trabalhando diante de uma forja. Ele atiça o fogo com um sopro. Paro, um momento, para olhá-lo. Ele se vira na minha direção, lançando-me um terrível olhar antes de voltar a seu ferro vermelho.

– O senhor viu minha filha?
– Não sei dizer, senhor. (Seria eu a única pessoa a ter chamado um deus de senhor?). Vi muitas mocinhas perto da fonte.

Ele explode de rir.

– É Marinette. Aquela que chamamos de Marinette das pernas finas. Ela o fez acreditar que havia várias meninas na fonte, continua. É sua brincadeira preferida. Ela estava, com certeza, lavando seu vestido branco para a cerimônia de hoje à noite.
– Ela é muito bonita, sua filha…
– É filha da mãe que tem. Ela não tem nada meu, exceto o nariz. Fora isso, é a mãe escarrada. Tal mãe, tal filha também. Duas sacanas… E agora, meu jovem, tenho coisas a fazer. Se quer conversar, continue reto até a figueira, depois vire à direita e encontrará minha mulher. Você não pode errar. Aliás, ela vai se apresentar a você.

Os deuses classe média

Decididamente, não é o inferno de Dante. Eu que pensava cair no meio de uma chuva de formas estranhas em um mundo bizarro, um universo tão poderoso, tão lotado de símbolos, tão complexo, que teria me ajudado, nutrindo minha prosa de detalhes suculentos que ultrapassam a compreensão humana, a ponto de enfrentar as revelações de São João ou o inferno de Dante. No lugar disso, tenho que engolir as gozações de uma deusa adolescente, e as lamentações de um pai, supostamente o terrível Ogum Ferreiro, que para mim mais parece um pobre operário afundado até o pescoço nas frustrações matrimoniais. Estaria eu aqui para ouvir um deus me contar suas dificuldades com a mulher? E principalmente, é com esse monte de besteiras pequeno-burguesas que o vodu pretende enfrentar os mistérios do catolicismo? Não quero acreditar.

O caminho sem fim

Quando um deus ou simplesmente um camponês lhe disser que não é muito longe, desconfie. A concepção que eles têm da distância difere da nossa. Não sei se andei dias ou horas, ou mesmo anos, já que estamos na escala da eternidade aqui. Em todo caso, fiquei mais de uma vez desesperado no caminho para alcançar aquela maldita figueira. E quando a vi, à medida que avançava em sua direção, ela recuava. Finalmente a alcancei. Logo em seguida, achei a trilha a minha direita da qual Ogum tinha falado. Há tantos calangos que correm para todo lado em torno de mim que poderíamos batizar esse lugar de jardim dos calangos. E ao longe, na encosta da montanha, aquela charmosa casinha de cores tão brilhantes que parecia ter saído diretamente de um quadro de pintura primitiva. Aproximo-me, no entanto, temeroso. De repente, pegam-me pelo pescoço.

– O que o senhor faz na minha casa?

Tão logo me viro, reconheço-a.

– Sou Erzulie Fréda Dahomey ou Erzulie Dantor, depende se quero branca ou preta. O amor ou a morte.

Tremo levemente.

– Então, continua, meu excelente marido enviou você para me dizer bom dia…

Ela agarra um calango e lhe dá uma abocanhada.

– Estou de regime, explica, só me alimento de calangos atualmente… Então, você acabou de ver Ogum e ele te enviou. Ele tem esses delicados cuidados com sua cara esposa.

Ela larga enfim meu pescoço e começa a dançar em volta de mim. Ela não é alta, mas cheia de energia, principalmente muito sensual. Uma esposa amante, como dizem aqui.

– Devo dizer-lhe que, desde que meu caro Ogum não dá mais no couro, sou obrigada a encontrar parceiros dentre os mortais, e eles não estão à altura, naturalmente. Posso trepar facilmente um mês inteiro sem parar.
– Para fazer amor um mês inteiro, é preciso…
– Escute, meu jovem, os humanos fazem amor, mas os deuses trepam.
– Certo, mas para trepar um mês sem parar…

Ela tem o riso num crescente, levemente histérico.

– Digo um mês, assim, mas no fundo nem sei, talvez seja um ano ou mais, não sei contar na medida de vocês. Sou uma analfabeta. A única coisa que posso te dizer é que, tirando Ogum, meu marido, nenhum outro deus pode acompanhar meu ritmo.

Senti um novo arrepio percorrer minha espinha.

– Quando estou no cio, continuou, posso consumir uma quantidades astronômica de humanos… Homens ou mulheres, tanto faz. Ela me pega pelo pescoço, dessa vez com ternura, e quando alguém te pega assim pelo pescoço, deus ou mortal, é que ele quer te pedir algum favor.

– O que ele estava fazendo?
– Quem? pergunto, um pouco desconcertado.
– Meu marido…
– Estava trabalhando.
– Ah… (Um tempo…) Ele estava trabalhando… E onde estava a pequena atrevidinha?
– Quem?
– Pare de se fazer de bobo… Onde estava minha filha?
– Eu a encontrei perto da fonte.
– O que ela estava fazendo lá?

Seus olhos se tornavam cada vez mais vermelhos.

– Estava lavando.
– Eu sei que estava lavando. Lavava o quê?
– Acho que lavava um vestido branco para uma cerimônia.

Um longo silêncio.

– Era tudo o que eu queria saber. De qualquer forma, se aquele velho avarento te mandou aqui é porque ele queria que eu soubesse… Bom… Então, ele está pensando em casar com sua filha… Há! há! háháháháháhá! faz entrando em sua casinha.

Um riso estranho, um pouco artificial, que me gela o sangue. Eu a olho andando de um lado para o outro em sua pequena sala abarrotada de bugigangas. Na parede, sobre uma grande toalha de banho vermelha: uma foto de Martin Luther King apertando a mão de John Kennedy.

– Você quer tomar alguma coisa?

Ela não espera minha resposta e tira uma garrafa de coquetel de cerejas de um pequeno armário coberto de poeira que ela mantém fechado a chave.

– Não sei desde quando tenho este coquetel aqui. Temos visitas raramente. As pessoas daqui preferem ficar em casa. Só Zaka vem me ajudar às vezes….

Olho pela janela e vejo um velho homem capinando o jardim. É ele, Zaka, o deus dos camponeses.

– Sabe o que vai fazer?… Você vai voltar para ver Ogum e, falando com ele, vai dar um jeito para que ele pense que dormimos junto.
– Mas isso não terá nenhum efeito, uma vez que a senhora mesma me disse que…
– Sim, mas não aqui, não no leito conjugal…Trata-se talvez de um deus, mas também de um homem, você entende o que quero dizer…
– Se se tratar de um homem, sei o que vai acontecer.
– Bem, se ele atacar você, terá que se haver comigo…
– Sim, mas enquanto isso…
– Se você morrer por mim, poderá vir morar aqui comigo por toda eternidade, diz com os olhos de noite.

É preciso que eu pense rápido.

– Eu, se fosse a senhora, em vez disso, iria reconquistar Ogum, o que seria fácil pois a senhora é bem mais bonita, e principalmente bem mais experiente que sua filha.

– Sim, mas ela é mais jovem.
– Me disseram que o tempo não existia aqui.
– Não para essas coisas, diz com um jeito maroto.
– Oh! então é relativo?
– Tudo é relativo, meu bem, fala avançando em minha direção.

Eis que ela começa a rebolar. Que situação mais estranha estar sentado aqui, neste salão kitsch, olhando Erzulie Fréda Dahomey, a mais terrível deusa da cosmogonia vodu, tentando me seduzir para que eu vá ferir, com a arma do ciúme, o coração de seu marido, Ogum Badagris ou Ogum Ferreiro, o intratável deus do fogo e da guerra.

– A senhora talvez seja menos jovem, mas tem as pernas mais bonitas do que as de sua filha que apelidamos de Marinette das pernas finas.

Desta vez, acho que acertei na mosca e que não terá cerimônia nenhuma, mais tarde. Mas antes que tudo exploda, tem alguém que precisa dar no pé daqui bem rápido. (…)

Amor e beleza no vodu haitiano

Saut d’Eau é uma cidade da região central do Haiti. É onde acontece uma importante festa religiosa do país, que mistura valores católicos e do vodu. O sincretismo de Erzulie Freda, deusa do amor e da beleza no vodu, com a imagem católica de Nossa Senhora do Carmo. Na cidade de Saut D’Eau há uma grande cachoeira perto de uma igreja, para onde fiéis vão se banhar e festejar suas crenças – forma de fazer uma oferenda nas águas, das quais Freda gosta, assim como o orixá Oxum do candomblé afro-brasileiro.

Só conhecendo um pouco mais da cultura do Haiti para entender que existem diferentes formas de olharmos o empobrecimento do país caribenho. Ele reside, sobretudo, na política partidária, nos serviços públicos e na garantia dos direitos. Mas não atinge a dimensão cultural de um povo que tem história, religião e uma riqueza plural. A celebração aconteceu na semana passada. Fiz uma coleta de fotos deste ano pela internet. Algumas são da página oficial da Minustah, registradas pelo fotógrafo Marco Dormino, e outras do pessoal do Haiti Innovation, no link do slideshow do Flickr.

Aí estão…



Quebra do vazio sanitário da soja

O cultivo de soja no Brasil precisa enfrentar o combate à ferrugem asiática, uma das principais patologias que acomete a plantação. A doença traz a desfolha precoce da planta e o comprometimento da formação da vagem e do grão. A perda da colheita pode chegar a 90% da área plantada. Como precaução, após ter sido registrada em vários pontos do Brasil, instalou-se uma medida preventiva para conter o seu avanço. É o chamado “vazio sanitário”, que é a proibição do plantio de nova área de soja, na safrinha, logo após a colheita da mesma cultura. Não é permitido plantar soja no lugar que se colheu soja há dias. Só na próxima safra. Isso porque o fungo se alastra mais durante o inverno. Sem a planta, o fundo morreria em cerca de 60 dias. Com o segundo plantio, a safrinha traria um elo da doença para a próxima lavoura.

Depois que a doença atingiu 22 milhões de hectares de soja, nove estados brasileiros passaram a adotaram o “vazio sanitário”: Tocantins, Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Paraná. Este último o segundo maior produtor de soja do país. Com a sedução do preço da soja em relação ao milho ou outros produtos, alguns agricultores ainda persistem em furar a regra. Na região próxima ao Parque Nacional do Iguaçu, agora na safrinha, temos o exemplo de uma propriedade no município de Serranópolis (PR) que plantou novo lote de soja após a colheita. A foto abaixo foi tirada de uma estrada pública e mostra a germinação em abril de uma nova área de soja, o que desrespeita a legislação sanitária. O proprietário está sujeito à multa e com a possibilidade de perder toda a produção.

* esta apuração faz parte do projeto do Centro de Monitoramente dos Agrocombustíveis, da Repórter Brasil. Para ler mais, faça o download do relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis”. Clique aqui.

Expansão “brasiguaia” da soja

A soja é um dos itens de maior peso da economia do Paraguai. A produção nacional é estimada em 7,5 milhões de toneladas na safra 2007/2008 – muito se comparado ao tamanho relativamente pequeno do país e à sua população de 6,6 milhões de habitantes. A expansão da sojicultura começou há 30 anos, quando a colheita atingia cerca de 500 mil toneladas. Hoje, o país já está entre os dez maiores produtores do mundo, segundo dados comparativos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

A história do avanço da soja em terras paraguaias, assim como a da modernização agrícola e a dos impactos sociais causados por ela, estão totalmente vinculadas à expansão da cultura no Brasil, a partir da década de 1970. À época da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, fazendeiros, sobretudo os paranaenses, começaram a ocupar terras no Paraguai, atraídos pela proximidade geográfica, o baixo preço da terra e o apoio explícito da ditadura do general Alfredo Stroessner.

Proprietários rurais estimam que a venda de um hectare de terra em uma região sojeira do Paraná resultava em uma quantidade de dinheiro suficiente para comprar, em média, outros quatro hectares no Paraguai. Ou seja, a oportunidade faria com que pequenos e médios produtores pudessem ampliar sua produção. É o caso de brasileiros dos municípios paranaenses de Londrina, Palotina, Cascavel, Marechal Rondon e Campo Mourão, que hoje vivem no país vizinho. Além da venda da terra, o dinheiro acumulado com a produção da soja e o desestímulo devido à decadência do café eram o motor para os “pioneiros” cruzarem a fronteira.

O fazendeiro Virgílio Moreira chegou no final da década de 1970 ao distrito de La Paloma, no Departamento (área administrativa equivalente aos Estados brasileiros) de Canindeyú. Vendeu suas terras no Paraná para se mudar. Segundo ele, á época, havia quem conseguisse comprar 30 vezes mais terras no Paraguai do que possuía no Brasil. “Uma coisa de louco”, recorda-se. Hoje, mora com a família em uma boa casa avarandada, cercada por uma fileira de eucaliptos. O restante da paisagem até o horizonte é soja transgênica – dois mil hectares plantados junto com outros brasileiros. Na safra 2007/2008, o grupo espera conseguir ao menos US$ 800 mil com a venda do produto. La Paloma tem brasileiros donos de silos, empresas de transporte e tecnologia agrícola importada do Brasil.

O brasileiro naturalizado paraguaio Tranquilo Fávero é hoje considerado o maior produtor de soja do Paraguai. Tem propriedades em 13 diferentes departamentos para o plantio de soja e outras culturas, como milho, sorgo, trigo, canola e girassol, além da criação de gado. A entrada intensa do capital brasileiro na agricultura paraguaia acabou por concentrar terras e colocar em risco a produção de subsistência dos pequenos agricultores. O formato de ocupação trouxe impactos semelhantes à modernização da agricultura no Paraná: êxodo rural, concentração de renda, baixa geração de emprego e trabalho em condições degradantes na abertura das fronteiras agrícolas nas décadas de 1970 e 1980.

Impulsionada pelo capital agrícola brasileiro, a soja ocupou vasta área de fronteira, nos departamentos de Canindeyú, Alto Paraná, Itapua, chegando até Caagazú, San Pedro e Guairá – este do lado paraguaio. Aprofundaram-se os laços de integração com o Brasil – e também os de dependência. A sojicultura paraguaia depende do capital de imigrantes brasileiros e das companhias transnacionais, como ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.

Além dos trabalhadores paraguaios, milhares de brasileiros imigraram em busca de emprego. Muitos foram foram submetidos a trabalho escravo, tratados de forma desumana e impedidos de deixar o serviço, em plantações de hortelã, na produção de carvão e na preparação do solo para os sojicultores. Até o começo da década de 90, eram comuns as denúncias chegarem até o lado brasileiro. Reinaldo de Oliveira Paz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guairá, município paranaense localizado na fronteira com o Paraguai, conta que chegou a receber pessoas que fugiam de fazendas. “Eram muitos casos. Tinha gente que fugia das fazendas e chegava ao Brasil atravessando o rio à noite”, relata. A situaçao trabalhista continua precária em muitas fazendas, desrespeitando tanto liberdades individuais quanto direitos humanos.

Nesse contexto, entidades sociais paraguaias e brasileiras discutem a implantação de um Pacto Sul Americano pela Erradicação do Trabalho Escravo, nos moldes do Pacto Brasileiro, fazendo com que empresas que atuem no Paraguai assumam os mesmos compromissos de promoção do trabalho decente com os quais se comprometeram no Brasil.

Em paralelo, o Paraguai passa a conviver com uma inflação dos preços da comida. Os itens alimentares que fazem parte do Índice de Precios al Consumidor (IPC) aumentaram 6,1% no primeiro trimestre de 2008, puxando a inflação global para 3,6% no período. O país tem produção agrícola para atender sua população, embora não consiga distribuí-la igualitariamente. Com grande parte da agricultura voltada para as exportações, a soberania alimentar de sua população torna-se vulnerável às altas das cotações internacionais e à demanda crescente de países consumidores.

*esta análise faz parte do relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis, impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade – soja e mamona”, produzido e publicado pela Repórter Brasil.

Podcast “Músicas do Haiti”

Começo neste post uns testes que vou fazer com podcasts para o blog. Subi o arquivo MP3 fora do wordpress, e puxei o link para cá. Na estréia, fiz um formato “vitrola”, são três músicas do Haiti e uma brasileira sobre o Haiti (sim, é aquela famosa). Ainda está em mono, mas logo vou melhorando a qualidade. A primeira música é um rap haitiano (busquei num blog do Canadá), depois uma canção e uma batida de vodu (que trouxe de discos haitianos). No final, a famosa composição de Caetano Veloso. Bom, é só ouvir.

1. Mission (Anbiskad 64);
2. Mon Rêve (Emeline Michel);
3. Dangere (Azor);
4. Haiti (Elza Soares).

Crime de guerra, sim, na Colômbia de Uribe

Os fins justificam os meios no país dos sonhos de Uribe. Para recuperar a ex-candidata Ingrid Betancourt das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e realizar um “resgate cinematográfico” (nas palavras do ministro da Defesa da Colômbia), os militares que atuaram na operação se fantasiaram de defensores do direito humanitário internacional – aquele que fala do direito e dos deveres dos combatentes e das vítimas de guerra, regulado pela Convenção de Genebra. Antes divulgado oficialmente como um “disfarce”, agora o crime foi reconhecido pelo próprio presidente Álvaro Uribe. O anúncio foi feito por ele, seguido por um pedido de “desculpas”.

Segundo reportagem da BBC, Uribe reconheceu que, por um “erro” e por “nervosismo”, um membro da equipe militar utilizou sobre sua roupa o símbolo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) durante o resgate dos reféns que estavam em poder das Farc. Mas qual o problema disso?, pergunta alguém pelo mundo blogueiro-internético. Respondo. Em tempos de guerra, conflitos armados ou violência extrema, a Convenção de Genebra estabelece regras de respeito às vítimas (militares ou civis). Uma delas é o direito ao atendimento médico e socorro. Feito inclusive por entidades imparciais, que não tomam parte no conflito justamente para preservar esses direitos.

É crime de guerra usar os símbolos dessa ajuda humanitária (no caso as cores branca, vermelha e o símbolo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha) para atacar o inimigo. O que diz a lei? “Cada Estado Parte às Convenções de Genebra tem a obrigação permanente de adotar medidas para coibir e reprimir qualquer abuso do emblema. Cada Estado deve, em particular, formular legislação destinada à proteção dos emblemas da cruz vermelha e do crescente vermelho. Qualquer uso que não seja expressamente autorizado pelas Convenções de Genebra e seu Protocolos Adicionais constitui um abuso do emblema”.

Ah… e mais: ” O uso do emblema da cruz vermelha e do crescente vermelho em tempos de guerra para proteger combatentes armados ou equipamento militar (e.g., ambulâncias ou helicópteros marcados com o emblema e usados para transportar combatentes armados; depósitos de munição disfarçados com bandeiras da cruz vermelha) é considerado um crime de guerra”. Eu já tinha escrito sobre o caso no blog (aqui e aqui), mas não havia a confirmação de crime. Uma jogada de cinema, realmente. Fingir ser ajuda humanitária enquanto executa uma missão militar. Usando o figuro do CICV, o mesmo que se propôs a fazer o transporte dos reféns à época da negociação com o presidente venezuelano Hugo Chávez.

O CICV repudiou o uso do emblema na operação, mas não fez nenhum pronunciamento público contra o presidente Uribe. Agora, com o reconhecimento público do governo colombiano está dada a condição para se iniciar até para um processo internacional. Como a Colômbia é signatária de convenção internacional, pode ser julgada, sim, pelo Tribunal Penal Internacional. Mesmo depois das desculpas e do anúncio do CICV de que não haverá iniciativa de processo contra Uribe.

Criminoso de guerra julgado por fraude na hipoteca

Um haitiano criminoso de guerra é julgado nos Estados Unidos por fraude na hipoteca. Essa é a idéia do título do artigo do ator norte-americano e militante dos direitos humanos, Danny Glover, sobre o ex-líder paramilitar haitiano Emmanuel (Toto) Constant que é acusado de inúmeras violações humanitárias. Ele não está sendo julgado por seus crimes contra os haitianos, a maioria deles contra partidários de Aristide, mas por ter fraudado a hipoteca. Fiz a tradução de parte do texto aqui para o blog. O resto podem ver por este link em inglês.

Emmanuel (Toto) Constant, um ex-líder paramilitar do Haiti, começou a ser julgado no Brooklyn nesta terça-feira (08). Mas, apesar de sua brutal herança de massacres, torturas e outras violações cometidas sob o seu comando durante 1993-94, este antigo líder de esquadrão da morte não está enfrentando justiça pelo seus crimes de guerra.

Em vez disso, ele está no banco dos réus por conta de uma fraude na hipoteca. Alguma coisa está errada com esta cena. Documentos do governo dos Estados Unidos, obtidos em meados da década de 1990 pelo Center for Constitutional Rights, confirmam o chocante recorde de violações humanitárias de Constant – crimes cometidos enquanto, à época como chefe do grupo paramilitar FRAPH (Frente para o Avanço e Progresso do Haiti), ele orquestrou uma campanha de terror contra os partidários do então presidente Jean-Bertrand Aristide.

Mas curiosamente, por mais de uma década até 2006, Constant tem vivido num relativo conforto do Queens, em parte graças à intervenção do nosso próprio governo federal. As voltas e mais voltas do destino do líder paramilitar Constant, como réu a aguardar julgamento por fraude na hipoteca, nos diz muito sobre a última década da difícil história do Haiti – e a confusa política norte-americana no país mais pobre do nosso hemisfério.

Constant chegou aos Estados Unidos em dezembro de 1994, depois de o governo de Aristide decretar sua prisão por violações dos direitos humanos. Em setembro de 1995, Constant estava prestes a ser deportado pelos Estados Unidos – quando ele revelou o seu papel como um agente da CIA. De repente, a deportação foi esquecida na mesa e ele foi autorizado a permanecer em solo americano.

O que diz José Renato Baptista…

O Haiti sempre parece um labirinto com muitos caminhos para andar e se perder. Entender o que acontece ali, sobretudo suas relações com o passado, é tarefa difícil. No mundo, alguns poucos tem se debruçado sobre isso. Venho publicando os comentários de alguns nesta série “O que disse…”. E navegando pela internet, conheci o blog do antropólogo brasileiro José Renato Baptista, uma ótima referência se você quiser ler (em português) o diário de alguém que vive por lá. Doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), seu blog Aytian Nuvels é um belo registro de um pesquisador em sua apuração de campo. Deixo abaixo alguns de suas histórias, que, em seu blog, são entremeadas por cômicas análises futebolísticas e expressões em creole. É, sem dúvida, um dos principais depoimentos do que acontece no Haiti de hoje, fora das discussões das forças da ONU e da geopolítica americana. E, sim, sobre o Haiti das ruas, do seu povo, de sua miséria e riqueza.

(…) entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.

Cada vez que converso com um haitiano que encontro pelo caminho das minhas pesquisas sobre o vodu, tenho a impressão de que muitos haitianos crêem que seu país sofre de algum tipo de maldição proferida por Deus ou pelos deuses. (…) a cosmologia de certa parcela dos intelectuais daqui pode ser enquadrada nos mesmos marcos que as explicações nativas sobre um suposto mal de raiz, uma “natureza” dos haitianos voltada para o mal, apoiadas nas crenças religiosas de católicos, voduissants e protestantes. Para estes, o mal de raiz viria exatamente do ato de nascença do Haiti: o Sacrifício de Bois Caiman. Tido como o ato que deflagrou a luta de independência na região norte do país, que uniu os escravos e eclodiu a revolta nas fazendas da região, Bois Caiman é um mito de origem nacional que faz uma associação perfeita entre construção nacional e vodu. Para quem não conhece a história do Haiti, Bois Caiman foi o local onde se realizou uma grande cerimônia vodu, liderada pelo jamaicano Boukman, que organizou os escravos e deu início à luta de independência, onde teria sido sacrificado um porco ou cem porcos às divindades vodu.

Congresso autoriza mais 100 militares para o Haiti

Quando a proposta passou pela Câmara, eu tinha feito somente um twitter. Agora escrevo um post para registrar que terminou nesta quinta-feira (10) a tramitação no Congresso do projeto de decreto legislativo que aumenta em 100 soldados o contingente brasileiro na força de paz das Nações Unidas no Haiti. A companhia de engenharia se juntará ao grupo existente para reforçar trabalhos específicos de infra-estrutura, como asfaltamento de ruas, perfuração de poços, tratamento de água e outros reparos que os brasileiros quase sozinhos dentro da força de paz desempenham no Haiti. Agora, o projeto segue para sanção presidencial, o que permite o envio imediato do novo grupo.

Como comentei, a decisão de aumentar o efetivo foi um tema herdado da gestão do ex-ministro Waldir Pires. Na primeira oportunidade do ministro de lidar com a situação do Haiti, depois do afogamento da crise aérea, Nelso Jobim conversou com os comandantes das Forças Armadas. A dúvida era: devemos aumentar o efetivo simplesmente para comportar mais engenheiros ou reduzir o número de soldados e trocá-los por engenheiros? Venceu o primeiro argumento por convencimento dos militares sob a alegação de que a segurança “ainda é frágil” no Haiti. E o contigente seria necessário para manter a ocupação de áreas problemáticas como Cité Soleil.

Guerrilheiro da Farc acusa crime de perfídia

É a primeira declaração de um representante dos guerrilheiros das Farc após a operação de resgate de Ingrid Betancourt, na Colômbia. Por meio de um advogado, o guerrilheiro Gerardo Antonio Aguilar, nome verdadeiro de “César” que foi detido na operação, disse que viu o emblema do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) nos militares disfarçados. A reportagem da EFE dá a versão do guerrilheiro, mas não explica o motivo da declaração. Como apontei aqui no blog, a situação é a suspeita de crime de perfídia, uma violação da Convenção de Genebra que trata dos crimes de guerra.

As descrições anteriores dos oficiais e da imprensa sobre a operação falam que os helicópteros usavam apenas pintura branca e vermelha, o que induz a pensar em organizações não-governamentais, como CICV. Mas não havia relatos do uso dos emblemas oficiais, o que configuraria crime de perfídia. O Comitê nega que tenha recebido qualquer solicitação ou tenha participado da operação. O guerrilheiro acusa que havia o uso dos emblemas, embora a reportagem não aponte onde ou em quem. Pode ser até um blefe bem dado do advogado de Aguilar, diante de alguns indícios.

Atrás dessa notícia, entrevistei Tarciso Del Maso Jardim, um brasileiro, consultor do Senado para assuntos de direito humanirário internacional e direitos humanos, que mora atualmente na França. Por e-mail, conversamos sobre os limites da operação e a possível configuração de abuso do uso do emblema “civil”, “imparcial”, para “socorro de vítimas de guerra”, por um grupo militar. Segundo ele, a operação mostra que houve uma atuação no “limite da legalidade”. E, ao que parece, estavam muito bem orientados para esse limite tênue. A seguir o comentário dele.

O governo colombiano atuou no limite da legalidade para descaracterizar o resgate da Ingrid Betancourt e dos demais reféns do crime de perfídia. Originalmente previsto para conflitos armados internacionais, o crime de perfídia se diferencia das permitidas artimanhas de guerra, pois são atos dissimulados destinados a enganar o adversário com a finalidade de matá-lo, feri-lo ou capturá-lo. Por exemplo, disfarçar-se de pessoa protegida pelo direito internacional humanitário para tal fim seria perfídia, como seria o caso se militares colombianos se disfarçassem de membros de organização da sociedade civil e ocultassem helicóptero militar sob cores civis, similar ao feito, porém para atacar os guerrilheiros. Esse tipo penal é incorporado pelo direito colombiano (artigo 143 do Código Penal colombiano) e estendido a todos os conflitos armados, inclusive os internos, e seria o ato de combate com objetivo de causar dano ou de atacar o adversário mediante uso de sinais protetores como a cruz vermelha ou simulando ser pessoas protegidas pelo direito internacional. Entretanto, o objetivo do exército colombiano não foi matar ou causar dano ao inimigo, mas salvar reféns, o que constitui a interrupção de outro crime internacional. Os soldados rendidos pelo exército na operação não eram o alvo desta, não houve esse dolo e o direito penal não admite esse tipo de analogia. Mas importa corrigir o veiculado pelas fontes oficiais, de que os demais guerrilheiros, que estavam no local do resgate e não adentraram o helicóptero de salvamento, não foram mortos somente porque isso prejudicaria a liberação de outros reféns, pois, na verdade, se o exército colombiano os atacasse estaria cometendo o crime de perfídia. A seguir o divulgado, parece que estavam muito bem orientados para atuar no limite da legalidade.

ONU usará US$ 23 mi para dar comida no Haiti

Minhas perguntas são simples. E se desde quando a missão de paz tivesse chegado ao Haiti, houvesse o início de uma seqüência de investimentos na produção agrícola familiar de alimentos? Ao mesmo tempo, se tivesse havido medidas governamentais de protecionismo agrícola temporário (afinal, há sim protecionismo justificável para um país arrasado economicamente)? Aposto que provavelmente o problema a alimentação teria uma alternativa mais viável agora nesse crise de alimentos.

Como falei no último post, o arroz haitiano é sufocado pela importação barata da produção norte-americana. E, como isso causa crise, a ONU precisa distribuir mais alimentos. Há poucos dias, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) informou que está investindo mais recursos para expandir suas operações no Haiti. Segundo o PMA, cerca de US$ 23 milhões, o equivalente a mais de R$ 36 milhões, serão empregados em novos projetos de fornecimento de alimentos no país caribenho.

Uma terceira pergunta. Você sabia que a ONU compra alimentos para ser doados? Uma quarta pergunta. Sabia que entre os fornecedores de arroz do PMA também está os Estados Unidos? Os que forçam a derrocada do arroz haitiano ao vender a produção com tarifas achatadas são os mesmos que vendem arroz para a ONU doar aos haitianos. Ganham duas vezes sobre a miséria que criam. Certo? Agora, leiam essa notícia aqui e vejam o sentido das palavras.

Os Estados Unidos e a quebra do arroz haitiano

Em Cité Soleil, em 2004, conheci o barraco de madeira onde morava Magalie, sua mãe e dois casais de filhos. Na porta de sua casa tinha uma cortina de sacos de nylon estampados de bandeirolsa norte-americanas. Pouco tempo depois fui saber que aqueles sacos embalavam o arroz importado pelos haitianos, pois sua produção, antes autosuficiente, agora minguava. A quebra na produção do arroz, item básico da alimentação, é um exemplo de como a política agressiva dos Estados Unidos piora a situação dos países mais pobres. Por pressão dos norte-americanos e do Fundo Monetário Internacional (FMI), as tarifas alfandegárias foram achatadas e o arroz importado destruiu a produção nacional. Um estudo da organização não-governamental Oxfam, em 2005, descreve a origem da história.

Em 1995, o FMI forçou o Haiti a reduzir as suas tarifas aduaneiras para o arroz de 35% para 3%, o que resultou num aumento das importações de arroz em mais de 150% entre 1994 e 2003. Hoje, três em cada quatro pratos de arroz consumidos no Haiti vêm dos Estados Unidos. Isto pode ser boas notícias para a Riceland Foods of Arkansas, a maior unidade de processamento de arroz do mundo. Os lucros da Riceland subiram 123 milhões de dólares americanos de 2002 para 2003 graças, em grande parte, ao aumento de 50% nas exportações, sobretudo para o Haiti e Cuba. Mas foi devastador para os agricultores de arroz no Haiti, onde as regiões de produção de arroz registam agora das taxas mais elevadas de pobreza e malnutrição.

A ausência de produção nacional de grãos é uma das causas da atual crise dos alimentos no país mais pobre das Américas. E que pode piorar caso a inflação do preço dos alimentos siga em ascenção, como alertaram hoje as Nações Unidas. Também assisti dois vídeos muito legais da Aljazeera English sobre o Haiti. E são aqueles que mostram os pequenos campos de arroz e como a população recebe agora esse item básico norte-americano. Seguem os dois vídeos via You Tube.

PARTE 1

PARTE 2

Dinheiro roubado por Baby Doc do Haiti


Esta é a cara jovial do ex-ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby Doc. Além de suas inúmeras acusações de torturas e assassinatos, ele também foi um grande e corrupto chefe de Estado. Estimativas do Haiti falam que ele teria roubado cerca de US$ 100 milhões. Desde de sua saída do país, em 1986, quando começou seu exílio, o Haiti tenta recuperar pelo menos parte desse dinheiro. Agora, mais de 20 anos depois, a Suiça divulgou que irá devolver US$ 12 milhões em recursos depositados no exterior antes do fim da ditadura. Baby Doc tem três meses para recorrer e tentar evitar a restituição dos recursos. Esta notícia me chegou via Le Nouvel Observateur.

Policiais blogueiros contam seus passos nas missões de paz

Navegando pela internet, encontra-se um blog, no mínimo, curioso. Alguns policiais militares brasileiros que integram forças de paz das Nações Unidas escrevem sobre suas atividades. E, claro, não falta informação do Haiti. Destaco dois posts interessantes. O primeiro relata como os policiais brasileiros participam do planejamento de uma ação no noroeste do Haiti. À bordo de um avião C212, eles fazem imagens aéreas de vilarejos para poder mapear o terreno da ação. O segundo, fala da prisão do haitiano Esteveson Loobens, acusado pela polícia de ser mentor de vários seqüestros que aconteciam na capital Porto Príncipe. Inclui o pessoal na lista de links do meu blog.

Resgate de Ingrid e crime de perfídia

A partir da notícia da libertação da ex-candidata à presidência colombiana Ingrid Betancourt, o que se seguiu pelos sites e jornais do mundo foi uma série de informações apressadas sobre os detalhes da operação. Apenas no dia seguinte, começaram a aparecer mais detalhes do resgate. O que me intrigou de cara foi como os militares colombianos teriam manipulado os rebeldes para levá-los a um helicóptero desconhecido. Depois, li que eles tinham infiltrado agentes na cúpula do movimento. Agora, passados alguns dias, com versões divulgadas e desmentidas, há algum balanço “oficial” do que foi a operação (veja infográfico do G1).

Não acho defensável nem apoio a luta armada paraestatal das Farc na Colômbia, além de sua ligação com o narcotráfico e sua metodologia de seqüestros para arrecadar dinheiro. Mas também não posso deixar de comentar que o resgate de Ingrid Betancourt, organizado pelo Ministério da Defesa da Colômbia, violou uma das convenções de Genebra – aquela que dispões sobre crimes de guerra. O uso de um helicóptero, pintado de branco e vermelho (embora sem nenhum emblema de organização humanitária, como aparece nas imagens), traveste a aeronave como civil. Isso constitui um uso impróprio do significado imparcial de ações humanitárias.

Os militares colombianos infiltrados teriam conseguido convencer os guerrilheiros a reunir os reféns num só grupo, pois estavam em três células diferentes. Um helicóptero militar simulava o transporte de uma ONG “fictícia” e levaria todos os reféns para o sul do país, onde estaria o atual líder Alfonso Cano. Na verdade, a aeronave era dos militares. O grupo renderia os rebeldes e resgataria 15 reféns. À época da negociação da libertação de reféns por intermédio do presidente venezuelano Hugo Chávez, a “ong” que faria o transporte com princípio humanitário (logo imparcial), seria o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

O uso do branco e vermelho é referência clara a serviços médicos e humanitários em tempos de guerra. Usá-lo numa operação dessa deve ser, no mínimo, explicado pela autoridades. Apesar de que a Colômbia já tem histórico de violações: já invadiram o território soberano de outro país, o Equador, para executar rebeldes; que já tinha sido acusado do mesmo crime de perfídia nesta operação; que até pactuaram com a invasão do espaço aéreo brasileiro por um avião francês, em 2003, numa outra tentativa de resgate de Igrid. São precedentes ruins para a negociação de processos de paz e, principalmente, para quem defende as vítimas. De qualquer lado da guerra.

Entrevista para a revista CartaCapital

Dei uma entrevista para a repórter Manuela Azenha, do site da revista Carta Capital. Ela abordou perguntas interessantes sobre a geopolítica e a soberania do Haiti. Coisa que muita gente se esquece de pensar. Copio aqui no blog a íntegra da entrevista e o link para uma galeria de fotos que eles fizeram a partir de imagens da Associated Press e da Agência Brasil. Segue:

“Haiti não é aqui”, por Manuela Azenha

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“Depois de quatro anos de ocupação estrangeira da ONU no Haiti, as tropas internacionais, sob o comando do exército brasileiro, continuam sendo renovadas. A missão de paz é uma intervenção militar, cujos objetivos no país se resumem a estabilidade política.

No entanto, o problema no Haiti, antes de ser militar, é econômico e social. A terra devastada é quase toda incultivável, a estrutura do Estado está desmoronada e quase 80% da população vive abaixo da linha de pobreza, com dois dólares por dia.

A missão de paz da ONU, chamada Minustah (sigla em francês de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), chegou ao Haiti em 2004, depois de o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide ser deposto pela segunda vez.

Nesse momento, sob o pretexto de defender a democracia no Haiti, soldados americanos com o apoio da ONU e da França instauraram o governo transitório, que foi substituído por René Préval, eleito presidente em 2006 com 51.21% dos votos de seus compatriotas, segundo dados oficiais.

Aloísio Milani, jornalista brasileiro que esteve quatro vezes no Haiti para escrever sobre a ação dos países latino-americanos na Minustah e o papel do Brasil na condução da estabilização do país caribenho, falou com CartaCapital sobre o assunto. A entrevista está dividida em duas partes: nesta primeira, Milani fala sobre a liderança militar brasileira e da forte intervenção norte-americana no País. Na segunda, explica a atual estrutura política, as perspectivas da disputa eleitoral e o plano de retorno das tropas.

CartaCapital: Como e porque o Brasil virou liderança militar das tropas no Haiti?
Aloísio Milani:
A questão foi uma proposição política, porque o cargo ali não é especificamente militar. Por mais que o presidente da República e o ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim neguem, o Brasil estava em momento de campanha para pleitear a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava apontar que era capaz de fazer a liderança de uma missão de paz. A proposta surgiu no Conselho de Segurança, em acordo com o então presidente francês Jacques Chirac. O resultado foi o maior contingente militar brasileiro fora do país depois da Segunda Guerra.

CC: Qual é o grau de intervenção dos Estados Unidos no Haiti?
AM:
O Haiti era uma república negra, se tornaria o segundo país independente do continente e a primeira república negra do mundo, não tinha uma forte relação diplomática com os EUA. Isso piorou quando invadiram o Haiti em 1915. Depois, apoiaram Papa Doc no início de sua ditadura, mas não foi algo constante. Em 1980, surgiu no cenário político Jean-Bertrand Aristide, representante de um movimento popular, o Lavalas, oriundo da teologia da libertação e dos movimentos de esquerda e que acaba eleito em 1991, mas logo é deposto por uma junta militar.
Os EUA, então, intervêm novamente, sob a administração Clinton, para recolocar Aristide no poder em 94, com a promessa de realizar novas eleições e a adotar uma política neoliberal.

CC: Como foi esse processo?
AM:
A política de abertura econômica foi o que acabou com a agricultura campesina haitiana. O país deixou de ser exportador para ser importador de arroz. Deixou de produzir açúcar em grandes quantidades e passou a importar até mesmo gêneros básicos. A esta altura, em 2004, os EUA já estavam de olho nas manifestações que aconteciam contra Aristide por conta do descontentamento com sua política neoliberal.

CC: Quais eram essas manifestações?
AM:
Há denúncias dos movimentos sociais haitianos de que o grupo armado que marchou a partir de São Pedro, na República Dominicana até a capital haitiana, para questionar a presidência do Aristide foi financiado pela CIA. Hoje, a embaixada norte-americana no Haiti é muito forte, talvez a que mais injete dinheiro na economia haitiana. Toda a cúpula de missão de paz da ONU lá tem uma relação direta com as decisões que os Estados Unidos querem. Há áreas da missão de paz que os EUA continuam controlando. Uma delas é a área da inteligência.

CC: Então na verdade os EUA é que são a liderança das tropas?
AM:
A minha visão é de que a situação do Haiti é uma resultante de várias forças diplomáticas e vários interesses. E que eles nem sempre vão de encontro aos interesses do povo haitiano. Os EUA têm interesse no Haiti pela mão-de-obra barata e também por ser um país muito próximo de sua fronteira na costa, o que provoca o ingresso de imigrantes ilegais nos EUA.
O Brasil tem interesse no Conselho de Segurança da ONU e para mostrar para a ONU que consegue liderar uma missão de paz de grande porte. A França tem um histórico de política muito intervencionista com suas ex-colônias.

CC: Qual seria a explicação para governos ditos progressistas como da Bolívia e do Equador mandarem tropas para o Haiti?
AM:
Todos têm interesses diplomáticos. E precisamos lembrar que é uma força de paz composta por soldados. Nenhum país da América do Sul vai querer deixar de participar disso como forma de participar da discussão diplomática. Os dois únicos países da América Latina que se colocaram publicamente, frontalmente, contra isso foram o Hugo Chávez na Venezuela e o Fidel Castro em Cuba. Os cubanos mandaram médicos e os venezuelanos também deram apoio em atendimentos básicos, mas num outro modelo. Eu vejo essa questão da Bolívia e do Equador também no sentido de não perder o bonde da diplomacia na região. Também existe uma disputa hegemônica na América do Sul e o Haiti nesse ponto é o único ponto de convergência.

CC: Em abril, quando houve aquela repressão violenta para impedir a manifestação contra a alta dos preços dos alimentos, o primeiro-ministro Jacques-Édouard Alexis caiu. Como está a estrutura política do país agora?
AM:
No último dia 25, o presidente Réne Préval anunciou Michele Pierre-Louis como primeira-ministra. Ela era presidente de uma ONG que trabalha no Haiti há muito tempo. Desde a manifestação pelo preço dos alimentos, o que acontecia era que uma série de indicações de Préval eram negadas pelo Congresso, o que alongava ainda mais a crise política. Uma das indicações foi o Robert Manuel, que tinha sido ex-chefe da segurança de Préval em seu mandato anterior. Ele é acusado por muitos movimentos sociais de ter promovido um massacre no Citeé Soleil. Havia um movimento forte de oposição a ele. A sua indicação foi negada por irregularidade em seus documentos. Agora René Préval indicou essa nova primeira ministra que também vai ser submetida ao Congresso.

CC: Você acha que Préval ainda tem legitimidade política? Ainda é uma referência institucional?
AM:
Acho que sim. Porque os problemas no Haiti são de diversas ordens. Ele foi eleito pela maioria, ainda tem legitimidade. A questão é que nem o governo dele e nem a missão da ONU conseguiram dar respostas para questões básicas da população como emprego, a economia que está longe de ser saneada, e, sobretudo a questão da violência.

CC: Quais são as perspectivas para as próximas eleições?
AM:
Existe uma grande expectativa em relação ao retorno do Aristide. Essa história está ensaiada há algum tempo, desde as últimas eleições de 2006, existia uma possibilidade da sua volta ao poder. Queira ou não, o Aristide é alguém que ainda leva multidões de apoiadores às ruas, sobretudo em Porto Príncipe e em bairros mais pobres. Acho que a grande expectativa é saber se ele vai voltar, porque isso poderia mudar os rumos nas articulações políticas do Haiti. De qualquer forma, outros candidatos, burocratas do Banco Mundial e do FMI, devem voltar a se candidatar. Eles representam o contingente de emigrantes que vivem fora do Haiti, principalmente no Canadá e nos EUA. No momento, a vantagem estaria com os apoiadores do Lavalas, que ainda são um grupo partidário forte no Haiti.

CC: É provável que Baby Doc retorne?
AM:
Ele tem problemas gigantescos lá, acusações internacionais de violações dos direitos humanos, está com sua fortuna seqüestrada internacionalmente. Tem uma pequena parte da elite que apóia o Baby Doc, mas ele não encontra legitimidade para disputar com vigor as eleições.

CC: Existe alguma proposta de alteração estrutural do país? Alguma mobilização ou candidato que proponha isso?
AM:
Esse foi o grande desafio das últimas eleições. Os governos sul-americanos estão tentando articular alguma indicação por lá, mas isso não funciona porque elas não nascem de maneira natural. Não existe um movimento de oposição, ou um grupo de partidos que faça uma coalizão para um desenvolvimento alternativo no Haiti. É tudo muito fragmentado e fica polarizado entre quem é a favor do Lavalas e quem é contra. A política é feita das migalhas dessa disputa.

CC: As tropas têm planos de retorno? O objetivo foi cumprido?
AM:
Eu acho que as tropas ficam no país pelo menos um ano depois das eleições. Isso está presente nos discursos dos representantes dos países. Aqui no Brasil, já disseram que ficam até 2010, 2011. Então a tendência é ficar, não há planos de retirada ainda. O que existe é a expectativa de uma mudança de perfil das tropas, passar de uma missão de segurança, de combate a grupos armados para uma missão que realmente ajude a reestruturar serviços básicos. Enquanto continuar assim, a missão vai continuar enxugando gelo no Haiti. E se o Brasil sair agora, os problemas que poderiam ter sido atacados vão continuar, assim como a instabilidade política e os conflitos armados. Esta já é a quinta missão de paz. O Brasil está liderando a parte militar da quinta. As outras quatro foram totalmente fracassadas.

CC: Você acha que o envio das tropas foi um erro?
AM:
Não, eu acho que foi um erro lá atrás, na força interina os EUA, Canadá, Chile e França terem tirado o Aristide de lá como se fosse ele o único culpado de todos os protestos. Peter Hallward, um filósofo norte-americano muito citado pelo Noam Chomsky para falar do Haiti, diz que essa foi talvez a intervenção norte-americana mais bem sucedida porque depois que eles saíram de lá, ficou parecendo que estavam certos quando afastaram o Aristide. Aqui, como no Iraque também, a ONU está entrando como bucha do canhão. O erro não repousa sobre a presença militar, mas sobre as intervenções anteriores.

CC: A retirada imediata das tropas é inviável?
AM:
Imediato é readequar o perfil da missão no Haiti. A retirada das tropas tem que ser num plano de saída sustentável. Em um ou dois anos, mas com a polícia nacional reestruturada, com a presença de atores que entrem em defesa da democracia e não dos interesses de um ou de outro no Haiti.

CC: O que resolveria o problema do Haiti?
AM:
É preciso ajudar o processo de desarmamento, pois ainda existem estruturas de grupos armados, de diferentes motivações. Como gangues ligadas ao narcotráfico, os ex-militares, os chimères e partidários e opositores de Aristide. A segurança institucional é frágil com esse cenário. Também é preciso ajudar na estruturação do Estado haitiano, para que instituições e serviços públicos funcionem dignamente. Mas é preciso, sobretudo, ajudar a economia do Haiti, auditando e perdoando a maior parte da dívida externa do país, que amarra a capacidade de investimento haitiano. Sem isso, o tão falado desenvolvimento econômico será uma pequena esperança, uma longa caminhada para retirar a camisa de força que o Haiti tem.”

No mapa Flickr, uma galeria sobre o Haiti

Há algum tempo tenho navegado pela ferramenta “mapa-mundi” do Flickr, uma sensação ótima de estar viajando pelos olhos dos outros. Um vouyer internético. Então, compartilho com os leitores o mapa do Haiti com as fotos atuais de lá, produzidas por profissionais e pessoas comuns. Deixo em destaque a página do fotógrafo chileno Sebastian Utreras, com ótimas imagens em preto e branco. E também Dan Gerding, com um trabalho ótimo de luz.

“Soja logo ali, ó”, aponta o líder Kaingang

Confinados numa área de cerca de dois hectares, na zona rural do município de Laranjeiras do Sul, interior do Paraná, o povo Kaingang espera a posse definitiva de sua terra, a Boa Vista. São 34 famílias, totalizando 130 índigenas, que estão em barracos de madeira e telha de fibras com cimento, doadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ou em simples barracos de lona. Há três banheiros construídos pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a captação da água acontece fora da área da aldeia, em um local facilmente atingido por pulverizações de agrotóxicos da soja. Aliás, os sojicultores são muitos em torno da área e dentro da terra indígena de cerca de 7 mil hectares.

Os Kaingang tiveram reconhecidas oficialmente suas terras e sua cultura com a portaria declaratória, publicada em outubro de 2007, a partir do estudo antropológico da professora Cecília Maria Helm, da Universidade Federal do Paraná. Ainda falta a homologação e a retirada definitiva dos não-índios da terra. Os registros oficiais analisados no estudo antropológico mostram a presença antiga dos Kaigang na região. Foram expulsos da terra quando os fazendeiros Juvenal Alves Pires e Antônio Alves Pires anexaram e arrendaram a terra indígena no início do século passado. Na década de 30, houve a titulação das terras sem considerar os direitos do grupo.

Depois de viverem mais de três décadas no “exílio” em outras terras indígenas, em 1995, um grupo de antigos moradores da Boa Vista se mobilizou e realizou uma retomada na terra tradicional. Montaram acampamento e, desde então, vivem uma atitude de permanente reivindicação do direito fundamental à sua terra tradicional. Contra eles, a pressão era constante, principalmente até a publicação da portaria que reconhece a terra. Houve até assassinato de um índio por peões da fazenda vizinha.

A situação amenizou-se nos últimos tempos segundo os próprios índios, embora a aldeia esteja cercada de uma plantação de soja transgênica, cujo agrotóxico traz incômodo para os Kaigang. Funcionários do arrendatário Otomar Civa, presidente da comissão dos não-índios da terra Boa Vista, fazem pulverização de agrotóxicos diante dos olhos e narizes de toda a aldeia, situada a menos de 20 metros do limite da plantação de soja.

“Olha a soja logo ali, ó. A gente sente o cheiro forte quando eles passam com agrotóxicos. Aí, muita gente sente dor de cabeça, as crianças ficam com diarréia, é muito ruim”, diz a liderança Lucas Kaingang. Até hoje, nenhum exame de contaminação da água e do solo foi feito no período próximo às pulverizações para checar o tamanho do impacto na água e na terra. Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a situação é uma forma de os fazendeiros manterem uma pressão, mesmo com o reconhecimento oficial da terra Kaingang.


(( Esta reportagem foi produzida para a ONG Repórter Brasil. Trechos dessa apuração entraram no relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis – os impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade”. Mais sobre comunidades indígenas na página 31 ))