Reino dos deuses do vodu

A mitologia do vodu haitiano é muito semelhante à do candomblé. Os deuses haitianos, assim como os orixás do candomblé, possuem histórias de vida, sentimentos humanos e uma divindade que beira o nosso mundo cotidiano. A ética judaico-cristã, que pressupõe o pecados e a culpa diante da busca da salvação, não está presente no culto da religião.

O último post me lembrou de um livro haitiano que li há algum tempo. Chama-se “Pays sans chapeau”, de Dany Laferrière, escritor haitiano que deixou o país durante a ditadura de Papa Doc. Li, na verdade, a tradução do livro, que, se não me engano, sequer foi publicada. A tradução está na tese de mestrado de Heloísa Caldeira Alves Moreira, pela Universidade de São Paulo.

Aqui o rosto do Dany, autor do livro, retratado pelo jornal Le Monde.

Reproduzo abaixo um trecho em que o narrador está numa viagem pelo reino dos deuses do vodu. Encontra Ogum, deus da guerra, e sua esposa Erzulie, deusa do amor… e lá vai ele:

(…)

Ogum, o deus do fogo.

Um homem de grande estatura, sem camisa, trabalhando diante de uma forja. Ele atiça o fogo com um sopro. Paro, um momento, para olhá-lo. Ele se vira na minha direção, lançando-me um terrível olhar antes de voltar a seu ferro vermelho.

– O senhor viu minha filha?
– Não sei dizer, senhor. (Seria eu a única pessoa a ter chamado um deus de senhor?). Vi muitas mocinhas perto da fonte.

Ele explode de rir.

– É Marinette. Aquela que chamamos de Marinette das pernas finas. Ela o fez acreditar que havia várias meninas na fonte, continua. É sua brincadeira preferida. Ela estava, com certeza, lavando seu vestido branco para a cerimônia de hoje à noite.
– Ela é muito bonita, sua filha…
– É filha da mãe que tem. Ela não tem nada meu, exceto o nariz. Fora isso, é a mãe escarrada. Tal mãe, tal filha também. Duas sacanas… E agora, meu jovem, tenho coisas a fazer. Se quer conversar, continue reto até a figueira, depois vire à direita e encontrará minha mulher. Você não pode errar. Aliás, ela vai se apresentar a você.

Os deuses classe média

Decididamente, não é o inferno de Dante. Eu que pensava cair no meio de uma chuva de formas estranhas em um mundo bizarro, um universo tão poderoso, tão lotado de símbolos, tão complexo, que teria me ajudado, nutrindo minha prosa de detalhes suculentos que ultrapassam a compreensão humana, a ponto de enfrentar as revelações de São João ou o inferno de Dante. No lugar disso, tenho que engolir as gozações de uma deusa adolescente, e as lamentações de um pai, supostamente o terrível Ogum Ferreiro, que para mim mais parece um pobre operário afundado até o pescoço nas frustrações matrimoniais. Estaria eu aqui para ouvir um deus me contar suas dificuldades com a mulher? E principalmente, é com esse monte de besteiras pequeno-burguesas que o vodu pretende enfrentar os mistérios do catolicismo? Não quero acreditar.

O caminho sem fim

Quando um deus ou simplesmente um camponês lhe disser que não é muito longe, desconfie. A concepção que eles têm da distância difere da nossa. Não sei se andei dias ou horas, ou mesmo anos, já que estamos na escala da eternidade aqui. Em todo caso, fiquei mais de uma vez desesperado no caminho para alcançar aquela maldita figueira. E quando a vi, à medida que avançava em sua direção, ela recuava. Finalmente a alcancei. Logo em seguida, achei a trilha a minha direita da qual Ogum tinha falado. Há tantos calangos que correm para todo lado em torno de mim que poderíamos batizar esse lugar de jardim dos calangos. E ao longe, na encosta da montanha, aquela charmosa casinha de cores tão brilhantes que parecia ter saído diretamente de um quadro de pintura primitiva. Aproximo-me, no entanto, temeroso. De repente, pegam-me pelo pescoço.

– O que o senhor faz na minha casa?

Tão logo me viro, reconheço-a.

– Sou Erzulie Fréda Dahomey ou Erzulie Dantor, depende se quero branca ou preta. O amor ou a morte.

Tremo levemente.

– Então, continua, meu excelente marido enviou você para me dizer bom dia…

Ela agarra um calango e lhe dá uma abocanhada.

– Estou de regime, explica, só me alimento de calangos atualmente… Então, você acabou de ver Ogum e ele te enviou. Ele tem esses delicados cuidados com sua cara esposa.

Ela larga enfim meu pescoço e começa a dançar em volta de mim. Ela não é alta, mas cheia de energia, principalmente muito sensual. Uma esposa amante, como dizem aqui.

– Devo dizer-lhe que, desde que meu caro Ogum não dá mais no couro, sou obrigada a encontrar parceiros dentre os mortais, e eles não estão à altura, naturalmente. Posso trepar facilmente um mês inteiro sem parar.
– Para fazer amor um mês inteiro, é preciso…
– Escute, meu jovem, os humanos fazem amor, mas os deuses trepam.
– Certo, mas para trepar um mês sem parar…

Ela tem o riso num crescente, levemente histérico.

– Digo um mês, assim, mas no fundo nem sei, talvez seja um ano ou mais, não sei contar na medida de vocês. Sou uma analfabeta. A única coisa que posso te dizer é que, tirando Ogum, meu marido, nenhum outro deus pode acompanhar meu ritmo.

Senti um novo arrepio percorrer minha espinha.

– Quando estou no cio, continuou, posso consumir uma quantidades astronômica de humanos… Homens ou mulheres, tanto faz. Ela me pega pelo pescoço, dessa vez com ternura, e quando alguém te pega assim pelo pescoço, deus ou mortal, é que ele quer te pedir algum favor.

– O que ele estava fazendo?
– Quem? pergunto, um pouco desconcertado.
– Meu marido…
– Estava trabalhando.
– Ah… (Um tempo…) Ele estava trabalhando… E onde estava a pequena atrevidinha?
– Quem?
– Pare de se fazer de bobo… Onde estava minha filha?
– Eu a encontrei perto da fonte.
– O que ela estava fazendo lá?

Seus olhos se tornavam cada vez mais vermelhos.

– Estava lavando.
– Eu sei que estava lavando. Lavava o quê?
– Acho que lavava um vestido branco para uma cerimônia.

Um longo silêncio.

– Era tudo o que eu queria saber. De qualquer forma, se aquele velho avarento te mandou aqui é porque ele queria que eu soubesse… Bom… Então, ele está pensando em casar com sua filha… Há! há! háháháháháhá! faz entrando em sua casinha.

Um riso estranho, um pouco artificial, que me gela o sangue. Eu a olho andando de um lado para o outro em sua pequena sala abarrotada de bugigangas. Na parede, sobre uma grande toalha de banho vermelha: uma foto de Martin Luther King apertando a mão de John Kennedy.

– Você quer tomar alguma coisa?

Ela não espera minha resposta e tira uma garrafa de coquetel de cerejas de um pequeno armário coberto de poeira que ela mantém fechado a chave.

– Não sei desde quando tenho este coquetel aqui. Temos visitas raramente. As pessoas daqui preferem ficar em casa. Só Zaka vem me ajudar às vezes….

Olho pela janela e vejo um velho homem capinando o jardim. É ele, Zaka, o deus dos camponeses.

– Sabe o que vai fazer?… Você vai voltar para ver Ogum e, falando com ele, vai dar um jeito para que ele pense que dormimos junto.
– Mas isso não terá nenhum efeito, uma vez que a senhora mesma me disse que…
– Sim, mas não aqui, não no leito conjugal…Trata-se talvez de um deus, mas também de um homem, você entende o que quero dizer…
– Se se tratar de um homem, sei o que vai acontecer.
– Bem, se ele atacar você, terá que se haver comigo…
– Sim, mas enquanto isso…
– Se você morrer por mim, poderá vir morar aqui comigo por toda eternidade, diz com os olhos de noite.

É preciso que eu pense rápido.

– Eu, se fosse a senhora, em vez disso, iria reconquistar Ogum, o que seria fácil pois a senhora é bem mais bonita, e principalmente bem mais experiente que sua filha.

– Sim, mas ela é mais jovem.
– Me disseram que o tempo não existia aqui.
– Não para essas coisas, diz com um jeito maroto.
– Oh! então é relativo?
– Tudo é relativo, meu bem, fala avançando em minha direção.

Eis que ela começa a rebolar. Que situação mais estranha estar sentado aqui, neste salão kitsch, olhando Erzulie Fréda Dahomey, a mais terrível deusa da cosmogonia vodu, tentando me seduzir para que eu vá ferir, com a arma do ciúme, o coração de seu marido, Ogum Badagris ou Ogum Ferreiro, o intratável deus do fogo e da guerra.

– A senhora talvez seja menos jovem, mas tem as pernas mais bonitas do que as de sua filha que apelidamos de Marinette das pernas finas.

Desta vez, acho que acertei na mosca e que não terá cerimônia nenhuma, mais tarde. Mas antes que tudo exploda, tem alguém que precisa dar no pé daqui bem rápido. (…)

9 Comments

  1. Bom dia Aloisio!voce é bem malvado..agora quero saber o restante da estoria !sabe se o original esta a venda aqui no Br.?Sou tradutora ,nao me lembro se mencionei,e com todo respeito ao trabalho dos outros, confio mais no santo de casa. ab

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  2. Rsrs… peguei pesado, então. Colocar trecho para tradutor ler é demais. Me passa o seu e-mail que mando a tese dela com o livro traduzido. Realmente, ele não saiu aqui no Brasil não. E não é fácil encontrar a edição original. Fiz uma busca no http://www.abebooks.com e encontrei a venda dos Estados Unidos. “Pays sans chapeau”, se prefere ler o original.

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  3. Meu email é ninenacidade@yahoo.com.br Achei uma entrevista com ele de 15′ na radio mediterranée,vi que ele fez filmes tb”le gout des jeunes filles” e “comment conquerir l’amérique en une nuit”.Como a editora dele é canadense,creio que vai ser dificil mesmo.Gostaria e agradeço antecipadamnete o envio da tese ,mas tb quero ler o original .ab

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