Missão da ONU no Haiti é renovada até fim de 2009

A bola estava cantada. O Conselho de Segurança das Nações Unidas renovou a permanência da força de paz no Haiti por mais um ano, incluindo planos de ação pelo menos até a posse do novo presidente em 2011. Ou seja, a decisão foi tornada oficial hoje, mas, na prática, é uma formalidade das rotinas burocráticas da diplomacia. O que interessa é que a nova resolução não traz nenhuma mudança formal na configuração dos trabalhos. Mais de um ano e meio depois de relativa tranquilidade no país, passada a etapa das ações militares em Cité Soleil, o número de soldados permanece o mesmo sob o argumento que de a segurança ainda é frágil. Nada indica que o modelo de missão de paz da ONU vá apresentar resultados mais concretos para os verdadeiros problemas do povo haitiano – pobreza, falta de saúde, educação e emprego.

A resolução apresentada hoje mantém o Haiti como região de conflito, mantendo as regras de engajamento militar, com a observação de que a segurança é necessária em situações como os protestos da população em abril diante da inflação dos alimentos. Além, claro, após a devastação brutal causada pelos quatro furacões recentes (Hanna, Gustav, Ike e Fay), que, segundo o diplomata Luiz Carlos da Costa, assessor do secretário-geral da ONU no Haiti, atrasará em cerca de um ano a “estabilização” do Haiti. “A resolução reconhece a necessidade de uma conferência de doadores de alto nível para apoiar a estratégia nacional de crescimento e redução da pobreza no Haiti. Nesse sentido, pede ao governo haitiano e à comunidade internacional de doadores a implementar um sistema eficiente de coordenação de ajuda”, diz a ONU.

Esse anseio por mudança está há tempos na cabeça de entidades civis haitianas (leia matéria de 2005), na dos próprios militares (leia general Heleno em 2004) e dos diplomatas – recentemente o embaixador Igor Kipman falou sobre disso. “Eu continuo defendendo que o Brasil, nesse próximo contingente [que será o décimo] ou no outro, mande menos combatentes e mais uma companhia de saúde, mais pessoal de educação”, indicou na Agência Brasil. Depois, ao jornal O Estado de S.Paulo, foi mais explícito. Ao falar sobre a prorrogação sob os mesmo “moldes”, o diplomata disse que vai atuar por mudanças no composição das tropas e na manutenção do Capítulo 7 da Carta da ONU, que autoriza o uso da força. “Não precisamos de combatentes para ensinar criança a escovar os dentes. Temos 900 combatentes fazendo ações cívico-sociais, como distribuição de alimentos e construção de latrinas.”

Nesta última reportagem, inclusive, feita pelo jornalista João Paulo Charleaux, há uma ótima análise sobre o fracasso do braço civil da Minustah, a área da missão responsável pela atuação policial, por novos projetos humanitários e pela articulação de trabalhos das agências da ONU. Entre os argumentos do texto, está um dado que consta no balanço do último ano da missão. Elaborado pelo chefe da Minustah, Hedi Annabi, o relatório cita que a produção nacional de alimentos e ajuda humanitária que recebe não cobrem a metade das necessidades da população. “O Haití importa 52% do restante de seus alimentos (o que inclui mais de 80% do seu arroz) e todo o seu combustível”, registra. Ou seja, sem mexer na estrutura econômica do país qualquer ação militar será um processo “enxuga-gelo”.

Esperança nas tempestades?

A BZ Films fez o vídeo “Haitian Hope” em conjunto com a ONG Parterns In Health para mostrar a situação do país caribenho após os quatro furacões. A trilha deixou em mim a impressão de que o material foi editado para incentivar o derretimento de corações, mesmo que as imagens falassem por si. Mas vale a pena…

Caos dos furacões no Haiti – update de fotos


Agora, passado algum tempo após os quatro furacões que atormentaram o Haiti, chovem na internet atualizações das fotografias da tragédia. Para ser mais exato, das quase 800 mortes e outras dezenas de milhares de desabrigados. Via Haiti Innovation, recebo alguns links para navegar pela dimensão de ser pobre num país que está na rota dos furacões. A foto acima é da equipe da Rádio Nederland. Também tem a própria galeria do blog Haiti Innovation. Na Federação Internacional da Cruz Vermelha, uma galeria mostra Gonaives alagada. A Cruz Vermelha dos Estados Unidos traz mais 20 fotos. Também no Flickr, imagens do comando militar dos Estados Unidos entregando a ajuda humanitária. Susan Walsh publicou fotografias de resgates em Gonaives. Complemento a apuração deles com links importantes da página da Minustah, do Haitian Times, do TNT Emergency Response Team, além do sempre impressionante olhar da fotógrafa Ariana Cubillos, do Washington Post, como na foto abaixo.

Protestos contra as tropas no Haiti

A última rodada crítica de instabilidade política no Haiti vai completar cinco anos no começo de 2009. Em fevereiro de 2004, pouco depois do país cravar 200 anos de independência da França, o mundo assistiu mais um presidente eleito cair por um golpe de Estado, pressionado por países estrangeiros e assistir a nova entrada de tropas militares em seu território. Desde então, há demonstrações políticas de apoio às ações internacionais por lá (que a maioria dos jornais sul-americanos repercute), mas também uma série de protestos e questionamentos (uma minoria ocupada nas páginas dos noticiários).

É possível diferenciar a etimologia política das declarações de oposição contra as tropas militares no Haiti em duas etapas. O primeiro momento é derivado da ação franco-americana que instaurou o governo provisório. Principalmente por discordarem da polêmica saída de Aristide, que era cogitada nos bastidores da diplomacia francesa e norte-americana desde o início da marcha do grupo armado de Guy Phillipe, opositor explícito do governo do partido Lavalas. O resumo do primeiro argumento seria então o da não-intervenção na política interna de um país, sendo ele governado por qualquer um.

O segundo movimento está mais identificado com a chegada das tropas das Nações Unidas, aí lideradas pelas Forças Armadas do Brasil. A oposição se colocava mais sobre o perfil da ação da ONU, de que poderia ser, desde o começo, prioritariamente ligada à ajuda humanitária, aos programas sociais, à melhoria da precária economia haitiana. Esse movimento se concretizou afirmativamente no relatório final da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade ao Povo Haitiano, que contou com a participação do nobel da paz argentino Adolfo Perez Esquivel.

A partir daí, esses olhares se moldaram aos argumentos e fatos que surgiram nesses quatro anos e meio: os diversos relatos de violência da Polícia Nacional do Haiti, os casos de inabilidade das tropas jordanianas, as denúncias de abusos sexuais pela tropa do Sri Lanka, a inabilidade para um desarmamento em larga escala da população, os passos pachorrentos da burocracia da ONU para implementar projetos civis e a demora da convocação de novas eleições. Tudo isso foi jogado no ventilador por quem questionava a ação militar em um país empobrecido política e economicamente.

Aqui, no Brasil, quero registrar dois movimentos de oposição à presença de tropas militares no Haiti. Um primeiro que teve ações concentradas na Conlutas, a partir da articulação de integrantes do PSTU e do P-Sol. Eles organizaram uma missão de movimentos sociais e criticam a presença brasileira como reprodutora da violência contra da soberania haitiana. Também trouxeram para cá integrantes da organização sindical Batay Ouvriye para dar visibilidade ao protesto.

Outro movimento foi a ação da corrente O Trabalho, do PT – o próprio partido do presidente Lula -, que trouxe o advogado haitiano David Josue para denunciar assassinatos que teriam acontecido em ações da ONU. Como munição de suas críticas trouxe o vídeo “What’s going on in Haiti?” (parte 1 e parte 2), do jornalista Kevin Pina, que traz duras críticas ao trabalho das tropas militares lideradas pelo Brasil. O material chegou na Comissão de Relações Exteriores do Senado e gerou até uma missão para averiguar as denúncias.

Em território haitiano, a missão chefiada pelo senador Heráclito Fortes (DEM-PI) conversou com o chefe da MInustah, o Hédi Annabi. Reproduzo aqui um trecho de um texto da Agência Senado sobre esse encontro. “Hédi Annabi informou já ter visto o filme, mas que se trata de uma montagem. ‘A ONG que divulgou esse filme não tem credibilidade nem aqui nem no exterior. Asseguro que se a tropa da ONU tivesse matado civis haveria um escândalo internacional’, garantiu.”

“Após ouvir o secretário, Heráclito concluiu que o filme mostrado na comissão é “propaganda enganosa”. O presidente da CRE perguntou ainda ao presidente do Senado haitiano, Kely Bastien, se conhecia a denúncia. Bastien também desacreditou a denúncia. ‘Há pessoas que são hostis à estabilidade, que lucram com a instabilidade, e querem que as forças de paz deixem o país’, disse Bastien.”

Ah… tanto a articulação da Conlutas quanto a do PT protocolaram na Presidência da República do Brasil cartas de denúncia com pedidos públicos de explicação do presidente Lula. Mas nunca houve um pronunciamento oficial sobre elas. A desclassificação dos interlocutores foi a estratégia. Coisas do discurso político. O que só distancia o público do debate aprofundado sobre a realidade do Haiti.

O que disse Michèle Pierre-Louis

Aproveitei a confirmação da nova primeira-ministra haitiana, Michèle Pierre-Louis, para destacar algumas frases suas – faz parte da série que publico frequentemente aqui com intelectuais, diplomatas, lideranças e políticos. Para aguardar sua posse teve até que agüentar desencontros e boicotes, como descreveu essa reportagem do Miami Herald. A economista era diretora-executiva da ONG Fondation Konesans ak Libète (Fokal), que trabalha com projetos sócio-educativos. Seu financiamento parte de entidades da União Européia e também do “ex-megaespeculador” George Soros.

Ela é professora de “Ciências da Cultura do Caribe” e “Grandes Civilizações”, na Universidade Quisqueya, em Porto Príncipe. Nasceu em Jérémie (sudoeste do Haiti) em outubro de 1947. Nos anos 1980, foi uma das líderes da campanha da Missão Alpha de alfabetização da Igreja Católica no Haiti. A nova primiera-ministra, assim como René Préval, também fez parte do primeiro governo de Jean Bertrand Aristide. Em 1991, ela foi pertencia ao gabinete do líder do Lavalas.

Michèle dividirá com outras mulheres o primeiro staff do governo do presidente René Préval. Como Marie Laurence Jocelyn Lassegue, no ministério da Condição Feminina; Gabrielle Prévilon Beaudin, na pasta dos Assuntos Sociais, e Marie Josée Garnier, chefe do ministério do Comércio. Pierre-Louis também colaborou na revista “Chemins Critiques” e, como escritora, ganhou um prêmio por um romance em 2001. Essa biografia chegou via EFE e AlterPress.

Vejam alguns pensamentos dela citados em seu discurso de governo, lido em francês e creoule aos deputados e senadores. Aqui, numa tradução livre minha:

Hoje, nosso país passa por um momento difícil. As grandes decisões impostas à nação nem sempre repetem os mesmos problemas. É preciso coragem individual e espírito coletivo para escrever um novo capítulo e refletir sobre um novo curso após a crise que vive o Haiti, sua história, sua cultura, o seu futuro, o seu povo; e ser um coletivo que nos una para o centro das preocupações do Estado e da sociedade. E, agora, mais de quatro meses que manifestantes ganharam as ruas de Cayes, Port-au-Prince, Gonaives e outras cidades para protestar contra o aumento do custo de vida e para manifestar a sua preocupação face a esta situação geral país. Há alguns meses atrás, elevou-se a angústia do país diante à subida dos preços de produtos básicos: arroz, milho, ervilha, farinha, bananas, inhames, batatas etc., que a maioria dos haitianos come todos os dias e estava cada vez mais difícil de adquirir. Apesar dos esforços desenvolvidos no governo anterior, a população ainda aguarda as ações que podem mudar as suas condições de vida, criar empregos e incluir todos os cidadãos, todos os cidadãos na vida nacional.

E, quando aceitei a escolha do presidente, eu disse a mim mesma que gostaria de me envolver em uma primeira batalha de valores: solidariedade, honestidade, responsabilidade, superação, respeito, todos estes valores combinados com uma idéia de país, uma idéia de que este país também tem sofrido em sua história, e ainda sofre muito. Eu pensava que era a hora de pôr de lado preconceitos e práticas guardadas em nós mesmos. Esta é a batalha de valores, na qual o povo do Haiti também se dedica, que está na base da luta contra a negação do acesso, contra a corrupção, contra as manobras políticas, a luta pela educação, saúde, trabalho, justiça para todos, a luta pelas crianças e jovens deste país. Para que eu possa executar plenamente a luta contra o que eu acabei de referir, acredito que eu não tenha acabado de superar obstáculos. As negociações não são fáceis. Concordo em fazer compromissos necessários nesta situação difícil. Também faz parte da política. Mas, hoje, a coisa importante para mim é colocar-me a trabalhar desde que obtenha o voto de confiança de ambas as Casas (Senado e Câmara), contando com um governante solidário, empenhado, disposto a trabalhar com o Parlamento e com todos os parceiros: sindicatos, associações e grupos populares, os agentes locais, o sector empresarial privado, os partidos políticos e a comunidade internacional.

AGRICULTURA
“A agricultura é um importante vetor de crescimento e de combate à crise de alimentos que vimos em abril de 2008.Mas vamos começar com uma observação: a agricultura contribui com 25% do Produto Interno Bruto haitiano, enquanto que fornece 50% dos postos de trabalho em geral, e 80% postos de trabalho nas zonas rurais. Isto significa que o nível de produtividade é muito baixo e a área também é pouco competitiva. Ao mesmo tempo, uma população rural jovem, que espera empregos e oportunidades em nichos de mercado para além da agricultura. Isto significa também que não há necessariamente correspondência entre as oportunidades e aspirações. Por isso, temos de fazer a nossa agricultura mais atraente, mais eficiente e mais competitiva.”

EDUCAÇÃO
“Para falar de educação, optei por começar com as crianças. Com efeito, qualquer mudança começa na primeira etapa das crianças. Educar uma criança é programar uma futura geração, é com a criança que se inicia a mudança de uma sociedade. (…) Em nosso plano de combate à pobreza (DSNCRP), o capítulo sobre educação é o mais rico em estatísticas e indicadores quantitativos. Mas, acima de tudo, os interesses maiores nesta área são o da qualidade. E aqui também há uma profunda desigualdade na distribuição de qualidade da educação e a oferta escolar. As conseqüências desta situação são também sentidas no desempenho acadêmico. Os êxitos são diferenciados por fatores como moradia e padrão de vida. E, depois, o pobre sente uma diferença significativa na comparação com aquele que pode pagar.”

SAÚDE
“O setor da saúde é o segundo eixo do plano dedicado ao desenvolvimento humano. Abordando a questão da saúde estamos falando sobre a importância da vida. Se for verdade que é importante realizar reformas sérias na área da saúde, que os governos anteriores comprometeram-se em diferentes graus, é igualmente importante também a trabalhar para a melhoria do acesso aos serviços sociais básicos: o acesso à água potável, principalmente, que tem um impacto positivo e mensurável sobre a saúde da população. No setor da saúde, os principais indicadores utilizados são: a redução da mortalidade infantil (atualmente 57 por mil), a redução da mortalidade materna (630 a cada 100 mil) e à luta contra as grandes pandemias (HIV, malária, tuberculose), sem esquecer a luta contra o câncer de mama e colo de útero. Para avançar nestes objetivos, a ênfase será colocada na melhoria dos serviços, na intensificação dos programas de prevenção concentrados na água e no saneamento básico, em conjunto com outros órgãos interessados (prefeituras, estados, ministérios e outros).”

A fragmentação política do Haiti

No final de julho, o Congresso aprovou o nome da nova primeira-ministra do Haiti, Michéle Pierre-Louis. O fato parece ser um acalanto para a última instabilidade política do país. Após as manifestações contra a inflação cavalar dos alimentos no Haiti, o ex-primeiro ministro recebeu voto de censura do Congresso (pois o sistema é parlamentarista) e uma série de novos nomes indicados pelo presidente René Préval foram recusados. Isso aconteceu exatamente porque a distribuição partidária do país é extremamente fragmentada, com muitos partidos e de difícil coalizão.

O fato de a última eleição geral, em 2006, ter registrado mais de 30 candidatos na disputa reflete essa fragilidade da recente democracia do país. Há um analista independente da ONU, Louis Joinet, que já fez ponderações nesse sentido. Para ele, essa fragilidade é uma das origens da própria instabilidade institucional. E citou a aprovação da moção de censura, com participação da base governista no Congresso, e que acabou por derrubar o primeiro-ministro durante os protestos pela inflação dos alimentos. Joinet cita que não existe uma disciplina partidária, nem uma discussão mais aprofundada de fidelidade a um programa partidário.

É claro que o René Préval ainda tem a legitimidade por ter sido um presidente eleito, mas precisa enfrentar a confusão do jogo político, nem sempre coerente, coeso e simples de dialogar, sobretudo, quando estão em jogo interesses pessoais dos parlamentares.  Aproveito aqui também para repercutir um post do antropólogo e blogueiro José Renato, que reflete a queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide – incluindo, as pressões políticas contra ele e sua ajuda para armar seus seguidores. O título do post é provocativo: “Fabricando ditadores?“.

O que disse Gérard Jean-Juste…

Continuando a série de depoimentos sobre autoridades, especialistas e políticos latino-americanos sobre a situação recente do Haiti, apresento a seguir uma fonte que tem lado, coloração partidária e história de sofrimento de acusações infundadas. Padre da igreja de Santa Clara, em Porto Príncipe, adepto da teologia da libertação, Gérard Jean-Juste era um apoiador histórico do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, deposto em 2004.

Foi preso duas vezes depois disso sem acusações precisas. A Anistia Internacional classificou sua situação como a de “prisioneiro de consciência” em referência à perseguição política. Nesta semana, enfim, a Justiça arquivou os processos contra ele. Esse vídeo em inglês, também há comentários sobre sua vida como militante. Jean-Juste se tornou um crítico feroz das interferências norte-americanas na realidade haitiana. Tem mais nessa boa entrevista do Democracy Now! O padre refuta sistematicamente acusações de que possui armas escondidas em Porto Príncipe e argumenta que sua defesa está na ajuda aos pobres. Leia abaixo:

O sentimento [de oposição da população] não é dirigido para todos dos Estados Unidos, porque as pessoas no Haiti têm muitos conhecidos que vivem lá, e esses norte-americanos e imigrantes são muitos amigáveis conosco. Há uma grande relação crescente entre essas pessoas. O que está errado, aquilo que nós entendemos que está errado, é ver que alguns elementos da administração republicana [de George W.Bush] têm realizado atividades ilegais, destruindo a democracia de uma nação negra. As coisas que eles estão fazendo no Haiti, eles não vão fazer dentro dos Estados Unidos. Haveria indignação nos Estados Unidos, fazendo o que estão fazendo no Haiti. (…)

O presidente Aristide [ainda no exílio após dois anos de um novo governo eleito] não vai buscar qualquer situação eleitoral. Agora, o presidente Aristide, com toda sua experiência, quer nos ajudar muito na educação, na cultura, na música, nas línguas. Assim, ele tem o seu lugar no Haiti. E mais, não podemos continuar colocando esse peso sobre a África do Sul [que abriga o ex-presidente]. Entendo que a oposição tem usado a presença do presidente Aristide para ganhar votos contra o partido dominante. (…)

Eu sou um padre. E, como um padre, meu trabalho é ajudar as pessoas a rezar e que precisam de ajuda. Quando eu trabalhava para o presidente Aristide eu tinha alguns seguranças. Depois do golpe, em 29 de fevereiro [de 2004] eu perdi o emprego, a segurança e os guardas também. O juiz que tratou do meu caso [enquanto ficou preso] escreveu que eu disse que tenho armas [foi acusado de conspirar contra o governo provisório após fevereiro de 2004]. Sim, eu tenho armas. A minha Bíblia e o meu rosário são as minhas armas. (…)

Água de beber? É a luta haitiana

“Haiti: a luta pela água”. Essa é a versão traduzida do título de um especial do Frontline/PBS que assisti neste final de semana. O especial multimídia foi feito em julho de 2004, primeiro mês após a chegada da atual força de paz das Nações Unidas. Portanto, também antes da passagem do furacão Jeanne. Shoshana Guy passou cerca de três semanas no Haiti para registrar a dificuldade de acesso à água potável. Segundo a apuração dela, 60% das pessoas não tinham acesso à água limpa. O roteiro percorre essa luta na casa das famílias, na comunidade, com os caminhões de água, com os vendedores de rua, no hospital e na sagrada cerimônia do vodu.

Haiti, onde se compra escravos por 50 dólares

É estranho como alguns temas são recorrentes na carreira de jornalista. Há cerca de cinco anos atrás fiz um livro-reportagem sobre o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Viajei para Recife, Palmares, Fortaleza e Canaã para acompanhar denúncias. Agora, em minhas pesquisas sobre o Haiti, a história dos restavek reapareceu com este tema. Tenho a imprenssão que são casos de semelhante violência, mas a dimensão haitiana é mais cruel pelo incrível assédio de famílias estrangeiras.

Na semana passada, ouvi uma ótima entrevista na NPR, rádio pública dos Estados Unidos, com o autor de um novo livro sobre a escravidão moderna. Benjamin Skinner escreveu “A Crime So Monstrous: Face-to-Face with Modern-Day Slavery“. Em sua entrevista relatou que viveu situações no Haiti em que se podia comprar uma pessoa por US$ 50 e com ela explorar sexualmente ou para o trabalho doméstico. Clique aqui para ouvir em inglês a entrevista de oito minutos com ele pela NPR. Há um trecho com a gravação de sua apuração no Haiti.

“Para nossa referência, digamos que o centro do universo moral é a sala S-3800 do Secretariado das Nações Unidas, em Manhattan [sala do comandante da ONU]. A partir daqui, você está há cerca de cinco horas de ser capaz de negociar a venda, em pleno dia, de um saudável menino ou uma menina. Seu escravo virá em qualquer cor que quiser, como Henry Ford disse, contanto que seja preto [frase famosa atribuída ao fundador da empresa Ford que iniciou a fabricação em massa de automóveis]. Idade máxima: quinze. Ele ou ela podem ser usados para qualquer coisa. Sexo ou trabalhos domésticos são os mais freqüentes usos, mas cabe a você decidir.”

Aqui um trecho do livro de Skinner com tradução livre minha e alguns grifos pessoais. Ele descreve sua saga ao chegar no Haiti, descer no Aeroporto Tossaint L’Ouverture e procurar um escravo. “Em 1850, um escravo custaria entre US$ 30.000 para US$ 40.000 – em outras palavras, era como investir num Mercedes. Hoje, você pode ir ao Haiti e comprar uma garota de nove anos para usar como uma escrava sexual e doméstica por US$ 50. A desvalorização da vida humana é incrivelmente pronunciada”, disse na entrevista à NPR.

Quatro anos da queda de Aristide

Quatro anos se passaram da queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide. A radiografia do Haiti poderia ser analisada em quatro partes: a possibilidade de ver ampliado o efetivo militar das Nações Unidas, a consolidação gradual do novo governo eleito, a persistência de níveis inaceitáveis de pobreza e a chaga aberta de conviver com o passado mal resolvido de Aristide.

Até hoje, há uma recusa formal e oficial das Nações Unidas (por extensão dos países que lideram a missão) e dos Estados Unidos em discutir as acusações de que o ex-presidente foi retirado à força do Haiti. As suspeitas de que a ação dos fuzileiros norte-americanos teria forjado um golpe de Estado (o segundo contra Aristide, que, em 1991, foi deposto por militares) reaparecem a cada aniversário de 29 de fevereiro.

Neste ano não foi diferente. Pessoas foram às ruas a favor de Aristide, que continua no exílio na África do Sul. Veja abaixo a foto da cobertura do Haitianalysis.com . Pelas informações que apurei até agora, Aristide está longe de ser somente vítima da situação. O alinhamento de sua política econômica ao receituário ortodoxo também virou munição para movimentos sociais que o criticam.

Contudo, os eventos de 2004 continuam mal explicados. E isso abastece os críticos da força de paz das Nações Unidas como um “pecado original”, do qual a ONU e os países que integram a missão só podem fugir se conseguirem explicar o ocaso de Aristide. Inclusive as denúncias de que os grupos armados que marchavam da fronteira com a República Domicana até a capital Porto Príncipe na época não eram financiados pela CIA.

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O ex-presidente Jean Bertrand Aristide divulgou uma carta para agradecer as mobilizações e criticar as perseguições a seus partidários. Segundo ele, 10 mil pessoas teriam morrido depois do “golpe”. A imprensa brasileira não deu uma linha sobre o assunto. Veja a seguir uma tradução livre que fiz do texto. Ele está cheio de referências simbólicas do ex-padre adepto da teologia da libertação. Termina com um provérbio e expressão em latim:

Caros Amigos,

Que o espírito do Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Haitiano continue a se espalhar!

Se as mais de 10.000 pessoas que morreram nos 18 meses que se seguiram ao golpe de Estado de 29 de fevereiro pudessem falar, o que elas diriam? Será que eles juntariam suas vozes com as jovens mulheres violentadas e agredidas sexualmente desde o golpe? Será que eles nos lembrariam que estas mulheres representam metade da população das favelas haitianas? Eles se uniriam às vozes das 3.200 pessoas presas dentro da Penitenciária Nacional, construída para 1.200 prisioneiros? E sobre as inúmeras pessoas que foram abusadas de forma cruel? Qual seria a mensagem deles?

Eles teriam lugar em coro com Lovinsky Pierre-Antoine para dizer “Mési, muito obrigado” pela solidariedade demonstrada quatro anos depois. E porque eles não podem dizer, eu o faço: obrigado.

Obrigado a cada participante das 56 ações organizadas em 47 cidades de quatro continentes como parte do 3º Dia Internacional de Solidariedade. Sua solidariedade reforça a determinação do povo de continuar a afirmar a dignidade humana e a luta pela verdadeira democracia, a justiça e a paz.

Unido a todos os nossos irmãos e irmãs haitianas, que, nesse mesmo dia, condenaram o sequestro de 29 de fevereiro de 2004 e apelaram para o nosso retorno ao Haiti, vamos continuar a beber a partir deste histórico riacho de solidariedade com gratidão a nossa mãe Haiti. “A gratidão é a menos importante das virtudes, mas ingratidão é o pior dos vícios.”
   
Ab imo pectore, do fundo do meu coração,
      
Dr. Jean-Bertrand Aristide
Pretória, 11 de março de 2008

Imagens do Haiti da época do golpe de 1991

Navegando pelo Flickr, encontrei uma série belíssima de imagens do fotojornalista Antonio Zazueta Olmos, que registrou a vida do Haiti na época do golpe militar de 1991. Este golpe derrubou o presidente eleito Jean Bertrand Aristide e instalou uma ditadura militar. Se ficou com água na boca ou nos olhos com as fotos, veja a íntegra no álbum dele no Flickr.

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Confesso que a série é uma das coisas mais impressionantes que já vi esteticamente sobre a realidade do Haiti. Duas fotos me pegaram sem dó. 1) A que o jovem fecha o peito com seus próprios braços à frente de uma porta vermelha, uma espécie de metáfora com um país acuado pelo golpe; 2) A que um menino segura um pássaro num cais do mar caribenho.

Eleições dos EUA e o futuro do Haiti

As eleições presidenciais nos Estados Unidos têm repercussões mundiais. Cada partido, ou melhor, cada candidato vai adotar posturas diferentes que vão influenciar o mundo. Na última campanha, por exemplo, quando o então candidato democrata John Kerry comentou sobre a possibilidade de retorno de Jean Bertrand Aristide ao Haiti os protestos e a violência aumentaram. Então, os ecos da política norte-americana reboam muito rapidamente por lá.

Um pouco de história. O governo democrata de Bill Clinton foi quem organizou a intervenção para derrubar a ditadura militar em 1994. Dez anos, os fuzileiros norte-americanos, apoiados por canadenses, franceses e chilenos, retiraram Aristide de lá. Depois se mantiveram em pontos importantes da missão de paz da ONU (polícia internacional e núcleo de inteligência) e acompanhando a diplomacia relacionada ao Haiti (a embaixada dos Estados Unidos exerce um poder imenso sobre o país caribenho.

Nas prévias eleitorais, Obama, Hillary e McCain citaram várias vezes o tema da política internacional, principalmente Iraque. Mas ainda não vi nada aprofundado sobre o Caribe e especificamente sobre o Haiti. No blog do Pedro Doria, há uma referência de McCain ao papel desempenhado pelo Brasil no Haiti. É igual ao discurso da atual secretária de Estado, Condoleezza Rice. No Democracy Now! há referências sobre os assessores de Obama que ajudaram a impor a recente política econômica conservadora no Haiti. Em novembro, o Haiti Justice Blog também fez um post sobre a relação com as eleições, o que gerou vários comentários.

Vou aguardar o tema e comento no blog. Enquanto isso, deixo o link da página do Departamento de Estado dos Estados Unidos sobre a história do Haiti. O que acham?

O que Celso Amorim disse…

Mais uma da série sobre opiniões de autoridades, pesquisadores e intelectuais sobre a situação recente do Haiti. Deste vez, procurei os argumentos do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, um dos principais articuladores da presença do Brasil na Minustah. É ele quem articula, junto ao secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães, as posições sobre o futuro do Brasil na ONU e no Haiti. Seguem:

A missão do Haiti não foi feita com esse objetivo (de favorecer a obtenção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU). Ela faz parte de uma preocupação brasileira. A situação de total insegurança de um país da América Latina é algo preocupante. Não podemos ficar dizendo que somos contra uma ação porque não tem o aval da ONU (se referindo ao Iraque) e quando tem o endosso (no caso do Haiti) lavar as mãos. Se isso vai contribuir para o Brasil ser membro permanente no Conselho ou não, não sei. A paz tem um preço. Ou você vai e atua, ou você vai pagar sob a forma de dependência, de menor influência política. O Brasil é um país importante no cenário internacional e temos que dar uma contribuição. (2004)

No Haiti há questões de pobreza, de criminalidade, e de política. Uma combinação explosiva por natureza. Não creio que a repressão indiscriminada seja a melhor maneira de lidar com essa situação. (2005)

Muitas vezes repeti que o sucesso da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti se baseia em três pilares interdependentes e igualmente importantes: a manutenção da ordem e da segurança; o incentivo ao diálogo político com vistas à reconciliação nacional; e a promoção do desenvolvimento econômico e social. (2005)


Desaparecido no Haiti há mais de cinco meses

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Foi notícia no Haitianalysis.com o crescimento de apoio internacional para a busca de notícias do ativista haitiano dos direitos humanos, Lovinsky Pierre-Antoine, seqüestrado em agosto de 2007. Há uma petição de apoio à iniciativa na internet e também uma recente nota da Anistia Internacional sobre o assunto. Ele trabalhava com vítimas dos golpes de Estado, como considerava os eventos em 1991 e 2004 que derrubaram Jean Bertrand Aristide. Era um crítico da ação internacional e das forças da ONU. Aqui segue um link com uma entrevista sua em inglês antes da ação das tropas em Cité Soleil.

“Os destinos mais perigosos do mundo”

Muitas pessoas têm mania de listas. Minha amiga Carol Costa é uma delas. Mas a Forbes é viciada nisso: ordenação, ranking, listagens mil. De preferência com numerais cheios: 10, 50, 100! Eu, sinceramente, fico com um pé atrás quando as metodologias para chegar a estas listas não são detalhadamente explicadas nas reportagens.

Aqui um caso desses. O texto de Rebeca Ruiz para a Forbes se propõe a listar os destinos mais perigosos do mundo. Fiquei pensando que Colniza, no Mato Grosso, deve ser mais perigoso do que todos esses lugares. Mas continuei lendo. E o Haiti estava lá no meio. Segundo o texto, por causa da corrupção na polícia e do narcotráfico.

E junto dele estariam a Palestina, Iraque, Líbano, Congo e Sudão. Será o Haiti está ao lado desses? Pelo menos para o Departamento de Estado dos Estados Unidos, sim. Foi emitido por ele recentemente um alerta para viagens ao Haiti por conta da segurança, principalmente por perigo de seqüestros.

Imigração: de pobre para menos pobre

Desde quando assisti o trailer de “The Price of Sugar”, fiquei intrigado com a problema crescente da imigração haitiana para a República Dominicana. Uma troca de lugares, mas com pobrezas similares. Isso porque os haitianos geralmente migram sem documentos e dispostos a ganhar qualquer dinheiro ou comida no trabalho da agricultura.

Recebi agora via RSS uma reportagem do NYTimes que O Estado de S.Paulo traduziu sobre esse mesmo problema. Deixo abaixo um trecho, fotos e os links para o texto original, o traduzido para o português e o audio slide show. A apuração foi feita por Jason DeParle sob o título original de “A Global Trek to Poor Nations, From Poorer One”.

NYTimes

Os barracos de madeira numa encosta lamacenta são uma versão da terra prometida para o homem pobre. Têm o teto cheio de goteiras e chão de terra, não dispõem de luz elétrica nem água encanada, mas centenas de haitianos arriscam a vida para vir para cá e trabalhar nos campos próximos. Eles fazem parte de uma tendência global – habitantes de países paupérrimos que se mudam para países pobres.

Entre eles está Anes Moises, de 45 anos, um homem de pele escura com alguns cabelos brancos que trabalha em plantações de banana na República Dominicana há mais de uma década , sempre ilegalmente. Os fazendeiros pagam a ele US$ 5 por dia e lhe dizem que os haitianos não prestam. Os soldados o chamam de “diabo” e já o deportaram quatro vezes.

Mas com um rendimento médio na República Dominicana seis vezes maior que no Haiti, Moises respondeu a cada expulsão contratando um contrabandista para subornar os guardas da fronteira e levá-lo de volta. “Somos obrigados a voltar para cá. Não porque gostamos, mas porque somos pobres”, disse ele. “Quando cruzamos a fronteira, nossa vida melhora um pouco, pois conseguimos comprar sapatos e talvez um frango.”

Pelo cancelamento da dívida do Haiti

O ZNet reproduziu um bom artigo de Joe Emersberger and Jeb Sprague, para o Haitianalysis.com, sobre a dívida do Haiti. Os autores mostram o debate sobre o cancelamento total da dívida haitiana como alternativa para o desenvolvimento. E citam um estudo da CEPR sobre o assunto.

O país provavelmente não atingirá as condições necessárias para entrar no programa do FMI de países altamente envididados até setembro de 2008. O que tratá mais custos para o país, cerca de US$ 49 milhões, ou melhor, 26% de tudo o que o país gasta com saúde pública atualmente.

O argumento do cancelado é bem parecido com o que entidades brasileiras defendem, como é o caso da Rede Brasil em conjunto com a Jubileu Sul – quem me explicou isso foi a coordenadora Fabrina Furtado na reportagem que fiz para a Rolling Stone, no ano passado.

O longo caminho de saída da missão de paz

O chefe da missão de paz da ONU no Haiti, o tunisiano Hédi Annabi, esteve no Brasil esta semana para discutir os desafios da ação internacional no país mais pobre das Américas. Com ele estão as chaves para descobrir quais podem ser as possíveis alterações na missão e seu planejamento de saída do país. Este último, sinceramente, nunca houve. Publicamente, sempre se adiou essa discussão, ano após ano. Mesmo após a vitória do presidente René Préval.

José Cruz/ABr

Pelas falas registradas pela imprensa durante uma conferência em Brasília, não houve novidades nesse planejamento (ou na sua ausência). Há a intenção se ampliar a participação de policiais civis, continuar o treinamento da Polícia Nacional do Haiti (ainda despreparada, violenta e corrupta), fiscalizar as fronterias e manter o efetivo militar por cerca de cinco anos mais. Novamente se registrou a urgência da reforma do judiciário, mas sem nenhum indicador claro.

Leia reportagens do NYTimes e da Agência Brasil.

Haiti, um grande entreposto comercial?

Sempre me pergunto qual será o futuro do Haiti – esse país miserável, com florestas e agricultura devastadas, sem petróleo ou minérios. Será que o modelo de desenvolvimento passa por maquiladoras, zonas francas de produção com exploração da mão-de-obra? Será um território cuja produção é controlada por multinacionais? Ou manterá um nível de corrupção e tirania por ciclos viciosos?

Hoje, li uma notícia do USA Today que me alertou para uma pista, que há tempos venho farejando. O Haiti pode ser, como a República Dominicana e a Jamaica são, um grande entreposto comercial. Uma região portuária internacional de baixos custos. Seu litoral possui águas profundas para a navegação de grandes embarcações, que passem ou não pelo Canal do Panamá. A “estabilidade” do Haiti interessaria a muitos países.

É com essa idéia na cabeça que li as declarações do presidente René Preval durante discurso anual no Congresso. “O Haiti deve reformar o seu sistema aduaneiro cheio de corrupção e incentivar os investimentos para retirar o conturbado país do Caribe da pobreza”. Segundo ele, os impostos sobre o transporte marítimo de containers de 40 pés chegam a US$ 900, ou seja, três vezes mais do que na vizinha República Dominicana.

O que Préval e a reportagem não explicam é: aumentar o fluxo garante riqueza para o país? Esse dinheiro vai ser dividido como? Sem respostas assim, a proposta pode servir como uma luva ao “fluxo de caixa” das grandes empresas e abrir mais um ralo de exploração dos haitianos.

O Haiti Innovation também puxou a matéria com um comentário que pede mais transparência no combate à corrupção e com apoio à proposta. Será que é o caminho? 

Venezuela contra Haiti… no futebol

Na preparação para as eliminatórias da Copa do Mundo, a Venezuela marcou dois amistosos em seu país contra o time do Haiti. O primeiro no Estadio Monumental de Maturín, no dia 3 de fevereiro, e o segundo em José Antonio Anzoátegui de Puerto La Cruz no dia 6. A notícia foi confirmada pela Federação Venezuelana de Futebol. Segue o calendário da primeira fase da Concaf. O Haiti só entra na segunda fase. O resultado você confere com exclusividade aqui no blog, porque acho que nenhum outro veículo vai cobrir.

Revolução negra, a independência do Haiti

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Também saiu publicada hoje uma reportagem que fiz sobre a independência do Haiti para a revista História Viva. Chama-se “Revolução negra” e conta como foram as revoltas dos escravos a partir de 1791 sob a influência da Revolução Francesa. Li um monte de livros sobre o assunto, mas a principal referência é “Jacobinos negros”, de Cyril Lionel Robert James. A íntegra do texto está na página da História Viva, abaixo o abre da matéria:

O trabalho na cana era extenuante e desumano. Por décadas, a colônia francesa de São Domingos sustentou um dos mais lucrativos negócios do Novo Mundo com o chicote apontado para o corpo dos escravos africanos. Os negros cavavam valas para o plantio das mudas, cuidavam dos brotos, zelavam pelo crescimento, faziam a colheita e toda a fabricação do açúcar.

Os lucros dependiam da exploração do trabalho. A manutenção da escravidão pelos donos de engenho se baseava em castigos brutais e tinha um nível de perseguição implacável. Os relatos da época descreviam que as punições das chibatas eram mais comuns do que receber comida. Mutilavam-lhes membros, orelhas e genitais; faziam-nos comer excrementos; amarravam-lhes grilhões e blocos de madeira; prendiam-nos a postes fincados no chão.

A tortura sistemática originava, não sem razão, uma sede de vingança. E este foi um dos motivos da revolta que seria iniciada em 1791 e conformou a única rebelião vitoriosa de escravos desde a Antigüidade clássica. A independência do Haiti, proclamada em 1804, só nasceu por causa dela.

A revista também fez na edição online e impressa uma citação ao documentário Bon Bagay Haiti, como parte das pesquisas atuais sobre o país mais pobre das Américas.

O que você poderia saber antes sobre Haiti

Não gosto de cabotinismo, mas blog também serve para dizer o que estamos fazendo. Em dezembro agora, o Senado Federal aprovou o nome do diplomata Igor Kipman para ser o novo embaixador do Brasil no Haiti. O país mais pobre das Américas é um dos focos principais da política externa brasileira. E Kipman sabe disso há tempos.

Na época da Agência Brasil, ao contrário do que dizia do professor Bernardo Kucinsck, que, dentro e fora do governo, adorava criticar nossa cobertura do tema, nossas reportagens mostravam essa realidade. Fiz uma entrevista com Kipman, um dos maiores conhecedores da realidade haitiana. Explico o porquê…

Qualquer jornalista que procurasse um diplomata para explicar o tema no início da missão de paz da ONU, se deparava com os clichês dos mais variados. “Solidariedade”, “liderança regional”, “contraponto ao modelo dos EUA”, tudo vinha. Os problemas do Haiti, ninguém explicava. Kipman, como poucos do Itamaraty, sabia o que dizia mesmo aqui no trabalho de escritório de Brasília.

Deixo aqui os links (texto 1, texto 2, texto 3) para os interessados na primeira matéria na imprensa brasileira que explicava a situação das futuras eleições no Haiti após a queda de Jean Bertrand Aristide, em 2004. Kipman foi observador do governo brasileiro nas eleições junto com o então embaixador Paulo Cordeiro.

Mais uma de vodu pela web

Minhas andanças pela web insistem em parar em fotos de vodu haitiano. Aqui está o link de uma produção do fotógrafo Jean-Claude Coutausse, da National Geographic, numa reportagem chamada “Dançando com espíritos”, de 1995. Também sobre o mesmo trabalho, achei o site pessoal do Coutausse com mais fotos. É uma boa amostra.

Jean-Claude Coutausse

Bon Bagay em inglês e Global Voices

Escrevo para registrar que publicamos na semana passada a versão em inglês do web-documentário Bon Bagay Haiti. Na apresentação do especial há um link acima do título para acessar o conteúdo com legendas em inglês. Fizemos isso para tentar ampliar a “audiência” do vídeo fora do Brasil. A tradução foi feita pela repórter Paula Labossière, com revisão minha e do Deak. Depois de ter sido exibido na TV Nacional, o material deve passar na TV Brasil – Canal Integración, em espanhol. Aguardem…

Também vale destacar alguns blogs e sites que linkaram o especial em suas páginas. Destaque para o post do José Murilo no Global Voices, cujo título faz uma citação da música de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ele elenca inúmeras citações de blogs e sites que falam sobre o Haiti. Alguns mais recentes, como é o caso do Consciência.net e outros antigos, como o texto de Eduardo Galeano de 1996. “A história da prepotência contra o Haiti, que nos dias de hoje assume dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental”, disse o escritor uruguaio.

O “Bon Bagay” também voou pela rede. Está no Na Rua, no Webjornalismo, no Blog do Sakamoto, no Sobre Jornalismo, no Videoidéias, no Blog do Gjol, no Fractura.net, na Anacarmen.com, no Corpo 12, no Bem Paraná, no Haitiwebs.com, no Tock’s do Ock-Tock, no NovasM, NMídias, no Blog do Octavio Islas, no Blog do Lenoir, no JBOnline, no Nominuto.com, no Jornal da Mídia, no A Gazeta Online, no Paraíba Online, no TPA Internet, no Primeira Edição, no Portal JFMG, na Revista Fórum, Jornalistas & Cia, no Afromix.org, no Universo Tropical, LabWeb, Agência Subverta, entre outros. Além dos cerca de 500 views no You Tube até a noite de hoje. Avoa, passarim!

A saúde (ou falta dela) no Haiti

Um dos sintomas da pobreza é a saúde. Quando usamos, para o Haiti, a expressão “país mais pobre das Américas”, esse rótulo tem lastro claro, visível e aferível – embora todas as estatísticas sejam frágeis. Essa situação repousa na carência brutal de assistência básica à saúde. O Haiti está na categoria dos países pobres altamente endividados economicamente, e suas taxas de mortalidade materna e infantil são as mais altas do continente – dois principais indicadores sociais. O modelo de atenção à saúde é todo pago, o que gera uma exclusão concreta para a maioria dos desvalidos – 55% das pessoas vivem abaixo da linha de extrema pobreza, recebendo menos de US$ 1 por dia.

O relatório Saúde nas Américas 2007, lançado na última conferência internacional da Organização Panamericana de Saúde (Opas) e ainda pouco explorado na imprensa brasileira, traz dados sobre a situação haitiana. “Quarenta e sete por centro da população não têm acesso básico à saúde; 50% não têm acesso a medicamentos básicos. Uma consulta médica que custava 25 gourdes haitianos no final dos anos 1980, agora custa 1.200 – 48 vezes mais”, aponta o documento. “Oitenta por cento procuram cuidados de curandeiros tradicionais. Para muitos haitianos, a necessidade de pagar antes de receber tratamento acaba com sua obtenção de qualquer cuidado de saúde.”

Das vezes que estive no Haiti, vi isso mais de perto na primeira viagem, às vésperas do jogo da seleção brasileira. À época entrevistei, numa Cité Soleil ainda sitiada, a faxineira Magalie Foufoune, cuja história contei rapidamente numa reportagem da Revista Democracia Viva, do Ibase. Ela dizia que precisava pagar para ir ao médico. Dois de seus oito filhos haviam morrido antes dos cinco anos. E ela e sua mãe, dois anos depois quando voltei a Porto Príncipe, já estavam mortas por pneumonia e problemas gástricos. Lá no especial Bon Bagay Haiti os entrevistados reclamam da falta de hospitais também.

Abaixo, mais alguns números da pesquisa sobre o Haiti:

  • 1 em cada 12 crianças haitianas morre antes de completar cinco anos
  • cobertura de vacinas para crianças de até dois anos era de menos de 50%
  • em 2003, a Aids foi a principal causa de morte entre 20 e 49 anos
  • epidemia de Aids – 2,2% de mulheres infectadas e 2% entre os homens
  • 523 mães haitianas morrem a cada 100 mil nascidos vivos

UN Photo/Marco Dormino

Mãe haitiana leva filha para consulta gratuita no batalhão do Sri Lanka, da ONU, em Porto Príncipe

Opinião e exclusividade sem jornalismo

O Jornal do SBT forçou a barra com as duas últimas reportagens que fez sobre o Haiti (dia 25 e dia 26). No vídeo de sexta-feira, mesmo com uma boa intenção de falar sobre o Haiti, contrabandeou uma opinião sobre Hugo Chávez que a matéria não sustenta com fatos. “O governo e os comandantes militares não admitem mas também não negam: chefiar a missão da ONU é uma maneira de o país se contrapor à crescente influência do presidente venezuelano, Hugo Chávez, entre os países da nossa vizinhança”, diz. É até uma hipótese a se pensar, mas não passa disso se não houver apuração.

Ao mesmo tempo, “vendeu” no abre uma idéia de que os haitianos estão “descobrindo” a cultura brasileira, mesmo do lado dos Estados Unidos. O nosso futebol é amado lá, sim, mas a cultura norte-americana se impõe para eles de maneira muito mais próxima. Ah… o Carlos Nascimento cita que no Haiti se fala francês. Ela é a língua oficial, mas a esmagadora maioria das pessoas fala creoule, mistura do francês com línguas africanas. A diferença é muita.

A matéria de quinta-feira era uma boa possibilidade de explicar a situação do Haiti. Num espaço curto, elencou elementos importantes sobre a ausência de saneamento básico e a oposição entre a vida da elite e dos pobres. “Os poucos ricos vivem no alto da serra e têm carros blindados comprados nos Estados Unidos. Miami fica pouco mais de uma hora de vôo. Lá embaixo, a imensa maioria da população vive na probreza, anda de tap-tap, o único meio de transporte coletivo. Qualquer veículo é improvisado para transportar passageiros. Pelo equivalente a 5 centavos de real dá para atravessar a cidade”, registra.

No final, uma passagem do repórter mistura um monte de informações sem fonte declarada – um problema quando se fala em conflitos no Haiti, que sempre tem diversos lados. O final deveria, para se fazer minimamente jornalismo, se transformar numa matéria à parte. O repórter ressalta a exclusividade de se entrar em Cité Soleil à noite, elenca dados de presos e mortos sem citar a fonte (esses dados são contraditórios), não entrevista nenhum morador da região para checar sua hipótese e nomeia os quiméres, grupos armados aliados de Aristide, como os únicos existentes.

Há outros grupos armados, como os ex-militares, os narcotraficantes etc. Com interesses e ações diversas. “É a primeira vez que uma equipe de televisão passa por Cité Soleil à noite, desde o início da intervenção da ONU no Haiti. Fuzis com mira a laser ajudam a vasculhar os cantos. Quando o governo caiu, as gangues, aqui chamadas de quiméres, começaram a brigar por espaço – 252 chefes criminosos foram presos e dezenas morreram em confronto com os militares. A TV haitiana comemora. Agora a vida anda mais tranqüila mas em meio a tanta miséria ainda é difícil dizer o que melhorou”, diz o texto.

Quando a Realidade foi ao Haiti…

Quarenta anos atrás, dois jornalistas brasileiros – um repórter e um fotógrafo – fizeram uma matéria histórica sobre o “país do medo”, o Haiti, onde o ditador Papa Doc comemorava dez anos de poder. Milton Coelho da Graça e Geraldo Mori eram repórteres da Revista Realidade, que marcou o estilo do jornalismo literário no Brasil. O texto trazia não só as impressões dos brasileiros, mas um roteiro de como foi a tática para escapar da vigilância política dos tonton-macoute, o braço repressor da ditadura.

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A reportagem é uma das primeiras da imprensa brasileira in loco no Haiti. Agora, remexendo na edição da revista, tive a idéia de procurar o jornalista Milton Coelho para fazer uma entrevista com ele. Mandei algumas perguntas por e-mail para ele. Muito cordialmente, me respondeu. Aos 77 anos, o jornalista carioca tem quatro filhos e trabalhou em várias publicações brasileiras. Atualmente, mantém uma coluna semanal no Comunique-se e integra do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Milton Coelho e Geraldo Mori percorreram o Haiti durante 27 dias em 1967. Entraram disfaçados como repórteres da revista Quatro Rodas, a pretexto de fazerem uma reportagem sobre turismo. “Durante três semanas, os jornalistas brasileiros enganaram a polícia do ditador. Quando sentiram que a vigilância apertava, Geraldo Mori apanhou os filmes que tinha escondido na caixa d’água do apartamento, guardou as anotações de Milton Coelho no forro do blusão e deixou o país no primeiro avião. A seguir, sem nada que o pudesse comprometer, também Milton partia”, registra a nota inicial da revista.

O bate-papo com Milton Coelho por e-mail reproduzo abaixo, junto com um fac-símile da capa da edição e das duas primeiras páginas da reportagem.

Quais as notícias ou informações que lhe sensibilizaram para fazer uma reportagem no Haiti em 1967?
O fato que motivou a matéria era a comemoração dos 10 anos de [Jean François] Duvalier – o Papa Doc – no poder, ocasião em que ele seria sagrado president à la vie, presidente perpétuo. E a abertura da matéria, como você leu, resume o que sabíamos e acabou se confirmando com a nossa ida ao país.

Como foi a tática para entrar “disfarçado” no Haiti? A idéia de se identificar como repórter da Quatro Rodas distraiu os tonton-macoute até quando?
Havia informações sobre o início de um movimento guerrilheiro e havia amplo repúdio internacional à ditadura de Duvalier. Achamos prudente pedir visto e entrar no país como jornalistas interessados apenas em turismo. Eu era chefe de redação da sucursal Rio da Editora Abril, meu nome saía no expediente de Quatro Rodas e isso ajudou a convencer tanto o cônsul haitiano no Rio como a estreita vigilância que a polícia e todo o aparelho de Estado exerciam sobre qualquer jornalista que visitasse o país.

Eu e o fotógrafo Geraldo Mori conhecemos muita gente do palácio presidencial e do governo em geral, mostramos exemplares de Quatro Rodas. Mas conversava também com pessoal da oposição e tinha de sair algumas vezes à noite para tentar contatos com a guerrilha em lugares brabos, onde brancos – e ainda mais estrangeiros – não eram nem comuns nem bem-vindos. E tinha de ir sozinho, porque o Geraldo não podia sair à noite levando equipamento fotográfico, até para não correr o risco de ser roubado.

Muitas vezes voltei ao hotel na Place Centrale de Port-au-Prince, em nosso fusquinha alugado, depois de viver algumas situações críticas com sujeitos interpelando sobre o que eu fazia no num boteco ou no meio da rua.

O Haiti tem uma bela história a contar, sobretudo a rebelião de ex-escravos que tornou o país uma república. Como sentiu que a população encarava esse símbolo histórico?
Com extremo orgulho. Não sei como é agora, mas há 40 anos era fortíssima a animosidade dos negros em relação aos 8% de mulatos, em geral com um padrão de vida bem melhor, descendentes de funcionários coloniais franceses com mulheres negras. E essa divisão social ajudava – e acho que ainda ajuda – a impedir uma efetiva unidade nacional contra a pobreza, o subdesenvolvimento.

A história do Haiti mostra a repetição de crises política e interferências externas. Como avalia essa situação?
O Haiti é uma chaga do continente americano, uma prova da falta de solidariedade dos outros povos do continente, especialmente dos Estados Unidos, que, mesmo depois de concederem direitos civis aos seus patrícios negros, nunca reconheceram sua grande parcela de responsabilidade na tragédia da miséria haitiana. Todos os ditadores haitianos do século XIX foram apoiados pelos governos americanos sob a condição de não permitirem que uma república negra de ex-escravos pudesse se tornar um exemplo para os escravos americanos. E, mesmo depois de Lincoln e até das leis de direitos civis no tempo de Kennedy, o Haiti mereceu justa atenção dos Estados Unidos.

Na sua avaliação, como o a imprensa brasileira tem acompanhado as crises haitianas em relação à pluralidade, diversidade de fontes, densidade e contextualização?
Mesmo com a ocupação por forças brasileiras em nome da ONU, mesmo os bem-informados sabem muito pouco sobre o Haiti em nosso país (e estou me incluindo também nesse pacote). Acho que o Brasil, junto com tropas, poderia ajudar o Haiti enviando técnicos, professores, médicos. E convencer outros países a fazer isso.

O Haiti precisa de um tratamento de choque na área do conhecimento: um bom programa de planejamento familiar, quem sabe a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce poderiam dar uma olhada na possibilidade de fontes energéticas e minerais, formação de professores (em parceria com a França?) e muitas outras iniciativas que poderiam ser imaginadas por um pequeno núcleo de solidariedade organizado pelo Itamaraty, se possível, com a participação de algumas empresas. Provavelmente o Haiti poderia ser um bom produtor de biocombustíveis.

E, principalmente, no trabalho de convencer os Estados Unidos a se preocuparem com um vizinho que é tão pobre como os mais pobres da África.

A atual missão da ONU tem chances de reverter o processo de crise social do Haiti? Como?
A visão que tenho provavelmente é deformada pela falta de informação. Nossos militares não têm formação nem foram designados para resolver crise social. Mas a presença militar poderia dar forte apoio a um programa de desenvolvimento econômico e social do país.

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Web-documentário exibido na TV Nacional

O vídeo Bon Bagay Haiti, pensado e concebido para a internet, também será exibido na TV Nacional na segunda e terça-feira, dias 22 e 23 de outubro, às 22h30. O material entrará na programação da tv pública na grade relacionada à produção de documentários, como me avisou a chefe da TV, Maria Alice Boelhouwer Lussani. Usaremos uma edição em arquivo AVI em alta resolução. O texto de apresentação se transformará em cartelas iniciais, sem narração para manter a estética do vídeo.

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Bon Bagay Haiti: making of da reportagem

Esta é a história da produção de um web-documentário sobre o Haiti. Publicado nesta semana pela Agência Brasil, o vídeo foi a concretização de um processo de pouco mais de um mês – entre sua idéia, apuração, roteiro e edição. Ele nasce dentro de nosso conceito de linguagem multimídia trabalhado na Radiobrás, segundo o qual os diversos recursos midiáticos devem responder à necessidade de contar uma história. E não o inverso. Nada melhor para isso do que a internet. Sobretudo com a execução de uma equipe brilhante: André Deak, editor-executivo multimídia; Rodrigo Savazoni, editor-chefe; Marcello Casal Jr., editor de fotografia; Yasodara Córdova, editora de arte; e Mário Marco Machado, nosso homem-programadô.

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Menino olhando para nós lá em Ti Haiti, o miolo de Cité Soleil


A idéia

Nossa idéia surgiu na saleta do Rodrigo Savazoni após chegar a possibilidade de eu ir pela quarta vez ao Haiti, o país onde uma missão da ONU tenta conter uma crise política e social. Rodrigo e André queriam algo de impacto estético para contarmos histórias desse povo, que há quase quatro anos freqüenta as páginas dos jornais brasileiros, mas ainda são desconhecidos. E uma idéia brotou a partir de nossa observação do MediaStorm. Fazer um documentário, entremeando fotos preto-e-branco e vídeos coloridos. Sem off, sem passagem. Somente a edição de depoimentos dos haitianos. “Precisamos de algo novo no Brasil. E só com haitianos falando”, dizia Rodrigo.

O objetivo também era potencializar a ação de especiais da Agência Brasil feitos com audiovisual, uma tendência que tem dominado a nata do conteúdo jornalístico dos grandes sites internacionais, como o do Washington Post. “Trata-se da utilização, na internet, das linguagens consagradas pela fotografia e pela televisão. Como há um texto de abertura, que serve ao mesmo tempo de sinopse e introdução, pode-se dizer que também a liguagem de texto contribui para essa reportagem multimídia, multiplataforma”, explica conceitualmente o Deak. Aliás, sobre o jornalismo multimídia ele escreve muito. É uma referência para o assunto hoje.

O cronograma da viagem era apertado. Seria o acompanhamento de uma comitiva da primeira visita do ministro da Defesa, Nelson Jobim, ao Haiti. Com ele, os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Na pauta, uma reunião importante de todos os ministros sul-americanos da Defesa que possuem tropas militares no Haiti. Eu teria que “fugir” em algum momento da cobertura de autoridades para buscar esse material. Iríamos com uma equipe multimídia: um fotógrafo, um cinegrafista e um repórter.

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Mulher carrega sacos de comida, enquanto passa por ponte de fiscalização das tropas brasileiras que integram a missão da ONU

Apuração

Decolamos em um avião da Força Aérea Brasileira de Brasília. Na escala em Boa Vista (RR) não pudemos seguir. O furacão Félix passava. O centro dele era exatamente na nossa rota até o aeroporto Toussaint Loverture, em Porto Príncipe. Tivemos que pernoitar lá. Com isso, o cronograma foi fatiado. Só teríamos um dia e meio de apuração no Haiti, incluindo a cobertura das autoridades. Achava que era o fim do especial. Contatei meu guia no Haiti e avisei dos imprevistos, numa tentativa de adiar nossa apuração em Cité Soleil. O guia é um haitiano de classe média alta lá. Tem casa, trabalho bom, caminhonete tracionada e falava fluentemente inglês, espanhol, francês e creoule.

Mesmo atrasado, combinei com ele que teríamos metade de uma tarde para fazer nossa apuração. Mataria a cobertura do Jobim na sede da Minustah, onde o “prejuízo” de informação seria menor. Assim foi. Saímos do hotel, Marcello Casal Jr., Oswaldo Alves e eu. Seguimos para Cité Soleil. Entramos pela rua principal e paramos em Soleil 6. Lá conversamos com Mário Sejour, um ajudante de obras afixionado pelo Brasil. Seu primeiro filho é uma homenagem ao atacante da Copa de 94: Romário. Foi elogioso à ação das tropas, mas disse que o problema deles não era só segurança. Era “trabalho, saúde, escola”, elencou. Ao seu redor um grupo de 15 pessoas se amontava para ver a “filmagem” dos brasileiros.

Depois, fomos para Ti Haiti, pequeno Haiti em creoule, local bem pobre de lá. Aí conversamos com dona Enel, uma senhora que vendia salgados nas vielas para pagar a escola de um de seus nove filhos. Era uma espécie de fogazza recheada com repolho. Custava 5 gourdes, na moeda local. Ela reclamava da falta de ocupação para os jovens. Só lembrando que no Haiti, mais da metade dos 8,5 milhões de habitantes tem menos de 20 anos de idade. Uma população jovem. Na maioria, também sem escola ou emprego. Na seqüência, só com um gravador de MP3 gravei o líder comunitário Jean, explicando um trabalho de formiga que faz por lá. Também comprei cd’s com músicas haitianas para servir como BGs do especial.

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Mário Sejour, ajudante de obras em uma empresa da zona portuária


Roteiro

Na volta, Marcello Casal Jr. fez uma edição sobre o material fotográfico. Era primoroso. Ganhamos esteticamente o especial ali, com aquelas fotos. Oswaldo Alves separou os 20 minutos de vídeo, gravados em uma câmera PD. Aí entrava o meu trabalho de roteirização. Como a base eram os depoimentos, precisava fazer a transcrição. Foi a luta maior. Eu havia entendido o sentido geral dos depoimentos por intermédio de meu intérprete, e para o inglês. Mas precisava da transcrição ipsis literis. Depois de uma semana procurando alguém para ajudar, inclusive na Embaixada do Haiti no Brasil, conheci duas haitianas que moram em Brasília e falam creoule. Foi a salvação.

Ficamos quatro horas transcrevendo tudo para usar nas legendas do especial. A partir dali, fiz uma sugestão de ordem das fotos com os três depoimentos em seqüência, divididos em duas sonoras cada. Então, o Rodrigo Savazoni pegou o original. E em 30 minutos fez um trabalho primoroso de misturar as “cartas”. Misturou a ordem das sonoras e deu uma seqüência lógica aos depoimentos e às cartelas – os textos que aparecem sobre o fundo preto no vídeo. Como exemplo, coloco aqui um trechinho original do roteiro.

(…)
BG – FADE IN – CD RASIN KREYOL – MÚSICA 12
FOTOS
CARTELA: “250 mil pessoas vivem na maior favela do mais pobre país das Américas”
FOTOS
BG – FADE OUT
SONORA 1 – ARQUIVO MOVIE 004 – 00″19′ a 01″20′ – Duração 00″59′
00″19′ – “Eu sou Mário Sejour, estou vivendo em Cité Soleil, tenho quatro filhos, tenho 27 anos, eu vou ao trabalho, tenho esposa e filhos”
00″35″ – “Aliás, estou muito feliz porque todas vezes que os jornalistas vêm eles não entram dentro de Cité Soleil para fazer o que vocês estão fazendo. Estou muito feliz. Sempre dizem que vão vir e nunca entram em Cité Soleil”
(…)

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Garoto de Ti Haiti. Para nós o símbolo do termo “bon bagay”.
Ele me falava assim: “Ei, you. Give me chocolá”


Edição

Após o roteiro, Deak e Yaso definiram que o especial teria uma moldura máxima de 750 pixels por 500 pixels. Seria uma caixa preta com design minimalista para destacar a estética das fotos preto-e-branco e dos vídeos coloridos. O título do especial seria “Bon bagay Haiti, histórias de Cité Soleil”, uma sugestão do Spensy Pimentel. Escolhemos uma foto dos pés de dona Enel, ao lado das filhas. O chão de terra batida tinha uma área limpa para escrevermos o título em uma fonte leve e alaranjada. Paralelamente, o vídeo começou a ser montado pelo Deak no editor de vídeo Premier. Um trabalho chato em computadores de pouca memória. A programação foi feita pela Yaso e Mário Marco em action script.

Acabamos tudo na terça-feira (16), com a revisão das legendas. Aquela idéia inicial nascia depois de muitos obstáculos, com pequenas chances de ser concluída diante das condições de execução. O final está lá na Agência Brasil. E, posso dizer, este é meu último trabalho de reportagem na agência. Nesses quatro anos, redimensionamos editorialmente e esteticamente esse veículo digital da Radiobrás. Com sentimento de dever cumprido. Não deixa de ser um presente para todos os que acreditaram e fizeram parte desse processo.

Bon bagay!

 

Ah, o André Deak colocou no You Tube também. O embed tá aqui.

ONU aprova reforço nas fronteiras do Haiti

Nesta sala da sede da ONU, onde a mesa de reuniões tem um formato de ferradura e apenas cinco países têm direito à veto sobre questões da paz mundial, aprovou-se a nova resolução (1780) que prevê mais um ano de mandato para a missão de paz no Haiti. Quase todos os pontos foram adiantados em uma reportagem da Agência Brasil na semana passada.

O principal deles foi reafirmado nesta segunda-feira (15) – a recomendação de reforçar a fiscalização das fronteiras. “A missão vai reduzir sua presença militar em áreas rurais e urbanas calmas e realocar equipes militares para estabelecer patrulhas nas fronteiras marítimas e terrestres”, registra o texto.

Li em uma reportagem do La Nacion, da Argentina, que dois barcos do país vizinho já seguiram para o Haiti para ajudar nessa função. “O governo [argentino] decidiu enviar dois barcos à ilha caribenha para combater o narcotráfico. Assim anunciou nos últimos dias a ministra da Defesa, Nilda Garré, a seu par chileno José Goñi Carrasco. A intenção oficial é se somar a uma esquadra naval sul-americana de doze navios, que vão operar na região antes do final do ano”, dizia o texto.

“A região sul do Haiti é apontada como escala do tráfico de drogas aos Estados Unidos”, prossegue. “Diante de uma situação quase controlada na segurança nas ruas, a força internacional sob o mandato das Nações Unidas buscará agora bloquear o fluxo marítimo de mercadorias de grupos narcotraficantes e contrabandistas.”

UN Photo/Ryan Brown

 

City tour em Porto Príncipe

Quando se chega a Porto Príncipe, capital do Haiti, os capacetes-azuis brasileiros oferecem ao jornalista visitante um tour a bordo de urutus (veículos blindados) e em alguns bairros pobres. O novo hit agora é o bairro pobre de Cité Soleil. Na maioria das vezes, os jornalistas entram lá devidamente acompanhados (lê-se escoltados) pelos militares. Muito melhor é quando essa relação fica evidente para o leitor, um direito à transparência. Um exemplo é essa matéria estilo “gonzo” do repórter Rodrigo Lopes, do jornal Zero Hora.

“O cheiro é convidativo – antecipa alguém do grupo. Obviamente, é uma ironia. O estômago alerta para não continuar. À frente, cerca de 3 mil pessoas se amontoam no meio de uma ruela cercada por galpões de zinco, próximo ao porto da capital do Haiti, Porto Príncipe. O nome oficial é Marché Croix des Bossales, mas os brasileiros deram ao local um apelido mais pertinente: Cozinha do Inferno, uma das mais perturbadoras visões do Haiti”, registra o lead do texto.

O contingente que está no Haiti atualmente, a maioria composta de soldados gaúchos, começa a ser renovado em novembro. As matérias do Zero Hora, inclusive, puxam o ar da graça gaúcha no Haiti. Abaixo o link para o especial multimídi. No final da matéria, há o link para a galeria multimídia.

Galeria de fotos do Zero Hora

Missão fica no Haiti até outubro de 2008

A renovação da missão das Nações Unidas no Haiti era certa, todo mundo sabia – comentei isso num post anterior. A questão era saber por quanto tempo e se haveria alguma mudança. Os capacetes-azuis, sob a liderança do Brasil, ficarão no Haiti pelo menos até outubro de 2008. A decisão saiu das reuniões prévias do Conselho de Segurança no dia 10.

Na Agência Brasil, eu e a Ana Luiza Zenker fizemos uma matéria com esse furo. Entrevistamos, em primeira mão, um dos integrantes da missão brasileira na ONU, o ministro Paulo Tarrisse. O rascunho da nova resolução aponta recomendações para o combate ao tráfico de drogas e a fiscalização das fronteiras marítimas e terrestres.

Houve pequenas mudanças no perfil da missão. Uma delas será a redução de 140 soldados do limite máximo do contingente militar – de 7.200 para 7.060 – e um aumento no teto do contingente policial para 2.091. Essa era uma das recomendações do último informe do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

“Na prática, isso não afetou o componente militar, porque nunca se chegou a 7.200. Na questão policial, foi aumentada porque acredito que o problema hoje é muito mais de [garantia de] lei e ordem. A ONU pediu mais policiais porque eles têm uma interação maior com a população e têm outro tipo de finalidade em relação ao componente militar”, explicou o diplomata brasileiro.

UN Photo/Devra Berkowitz

Atualização (15/10/2007): essa matéria teve uma boa repercussão na imprensa neste final de semana. Vários jornais copiaram as informações ou registraram o temas em pequenas notas, alguns sem crédito, como receita o chupa-chupa desordenado da internet. Alguns deles – Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Jornal de Brasília, O Estado de S.Paulo e Zero Hora.

Onde estão os ex-ditadores?

Argentina, Bolívia, Equador, Haiti e Venezuela debatem formas de trazer de volta do exílio seus ex-ditadores para julgar casos de corrupção ou violações dos direitos humanos. Cito aqui outra matéria do New York Times, mais uma vez. Até porque só eles tem feito, nos últimos 15 dias, matérias legais envolvendo o Haiti.

O bom gancho é o caso do Haiti, cujo novo governo eleito democraticamente tenta recuperar a fortuna em recursos públicos “levados” com o ditador Baby Doc, hoje exilado na França, ex-metrópole na época colonial. O filho Duvallier manteve a “ditadura vitalícia” do pai e a repressão dos ton ton macoute, o braço militar repressor do governo.

Além de Baby Doc, outro ditador haitiano é general Raul Cedras, que deu um golpe militar e derrubou Jean Bertrand Aristide na primeira eleição democrática pós-ditadura. Estimativas é que mais de 5 mil pessoas, sobretudo os aliados do partido Lavalas, de Aristide, foram executadas nesta última ditadura do país.

Vale ver o infográfico com o “cara-a-cara” dos ex-ditadores exilados. Procurem aí. É como na brincadeira proposta pelo escritor Martin Handford com o Wally. Onde estão os ex-ditadores?

 

 

 

A questão “cultural” da violência no Haiti

Lá no Haiti, sempre ouvi explicações mil sobre a origem da violência no país – a da bandidagem, a do tráfico internacional de drogas, a da repressão política e também outra classificada de “cultural”. Essa última nunca entendi e continuo não entendendo. Aliás, discordando. Como se a violência fosse algo inerente à dimensão cultural desse povo. É um julgamento antropológico que não ouso fazer.

Lendo a Reuters nesse semana, uma das duas agências internacionais que acompanham os pormenores das notícias sobre o Haiti, vi uma entrevista por telefone com o embaixador brasileiro Paulo Cordeiro de Andrade Pinto. Após defender a permanência da missão da ONU no Haiti, ele também fala das questões culturais. Vejam aí:

“(…) Ele afirmou que a missão da ONU tem registrado os abusos cometidos pela polícia haitiana e que colaborou na criação de uma inspetoria-geral da polícia para investigar essas violações, classificadas pelo diplomata como “questões culturais”. “É um país onde se resolviam as disputas no tiro e na faca”, disse. “Nós já vimos aqui casos de mães que pediram ao policial haitiano para espancar o filho, porque ele era desobediente em casa”, exemplificou. “Como mudar uma cultura centenária num só dia? O que o delegado da OAB [grifo meu: integrante da missão da Conlutas que criticou as tropas no Haiti] se esqueceu de olhar foi a visão no tempo. Nós estamos combatendo dentro do possível os abusos.”

Na história recente, dezenas de grupos armados, paramilitares, milícias paraestatais e guangues impulsionaram a violência no Haiti ao lado de governos autoritários e, não raro, igualmente violentos. Mas o que faz a “cultura” diante do “Estado predatório”?

O preço do açúcar, um filme sobre o Caribe

Quem leu o relatório dos auditores fiscais que flagraram trabalho escravo na fazenda Pagrisa, no Pará, pode começar a ver semelhanças com esse filme dirigido pelo diretor Bill Hane, que está sendo exibido nos Estados Unidos. O New York Times publicou uma reportagem sobre o documentário “The Price of Sugar”. O vídeo mostra os haitianos, que, seduzidos pelo trabalho, ficam submetidos às condições de servidão nas plantações de cana-de-açúcar da fronteira da República Dominicana.

Walter Astrada/Divulgação

“Cada ano, quando a colheita da cana se aproxima, cerca de 20 mil trabalhadores haitianos são recrutados com a promessa do trabalho constante e de pagamento mais elevado do que podem ganhar no Haiti, o mais pobre dos dois países. Com a cumplicidade de autoridades militares e de imigração, o filme conta como estes imigrantes são carregados em caminhões, têm seus documentos de identificação confiscados e são transportados no meio da noite até os ‘bateyes’, onde muitos ficam abrigados dentro de quartéis parecidos com os campos de concentração. A estimativa da população de haitianos sem documentos que vivem no campo variam de 650 mil a 1 milhão”, diz o texto do jornal.

Veja a seguir o trailer do filme.


Ah, até procurei com a produtora, mas não encontrei a informação se o filme vai chegar no Brasil. Mas no site da produtora tem um contato para organizadores de festivais. Se alguém quiser procurar, pode entrar .

Linhas cruzadas, água turva

Há tempos tenho lido linhas cruzadas nos jornais brasileiros comparando a ação dos soldados das Nações Unidas no Haiti com a possibilidade de agir contra a violência no Rio de Janeiro. A coisa começou a crescer na imprensa após perguntas provocadas pelas jornalistas Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo, e Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, na recente visita do ministro da Defesa, Nelson Jobim, ao país caribenho.

Estava lá e vi como o tema surgiu. Em meio a uma conversa rápida, sem um aprofundamento, o ministro respondeu reativamente ao tema. O assunto rendeu por dois dias aqui no Brasil, assim com matéria recheadas de hipóteses, sem contextualização sobre uma possível confusão entre as regras jurídicas para da “guerra” e “ações policiais” em conflitos internos.

Marcello Casal Jr./ABr

Na última quarta-feira (3), o colunista Merval Pereira, de O Globo, também descobriu o assunto. Escreveu uma coluna elogiosa ao pensamento do ministro Nelson Jobim no programa Roda Viva. “Ao mesmo tempo em que se declarou favorável a essa atuação, mostrou os passos que têm que ser dados até que se chegue a uma nova estrutura legal que permita a atuação eficaz dos militares nos conflitos internos”, disse.

O pulo do gato é que há regras para duas situações jurídicas. Uma para ações de Garantia de Lei e Ordem (GLO), previstas por doutrinas policiais, que mostra como se responde a conflitos armados internos. O segundo conjunto de regras é sobre o direito à guerra. Esse é outra coisa. Numa guerra, um pelotão pode entrar num refeitório inimigo e atirar contra todos. Vale é o objetivo militar, desde que não fira o direito humanitário.

Não é o que acontece no Haiti. Lá, há conflitos internos. Com regras de engajamento para atuação das tropas da ONU. Inclusive a medida da proporcionalidade. Esse é bom termo de comparação. Em conflitos internos, usa-se gás de pimenta contra quem joga pedra. E tiro de metralhadora contra bandidos que atiram com AR-15. E tudo com uma grande estrutura quase “real-time” de fiscalização de direitos humanos.

No caso brasileiro, teríamos que encontrar um instrumento jurídico para reconhecer que a violência traz uma situação de sítio. Sem um medidor sereno, um conflito armado assim viraria nossa versão tupiniquim da “guerra ao terror”. Sob o risco de também reproduzir o ambiente de “Tropa de Elite”.

Cinema latino com petrodólares

Uma boa matéria do jornal Valor Econômico da semana passada fala que a Venezuela, sob o comando do presidente Hugo Chávez, quer lançar uma indústria cinematográfica para contrapor o conteúdo produzido pela visão norte-americana de Hollywood. Detalhe: um dos filmes anunciados é uma espécie de biografia do líder negro Toussaint L’Ouverture, que comandou a independência do Haiti contra a metrópole França.

Essa talvez seja um dos mais belos capítulos da história haitiana – fundar a primeira república negra das Américas. À época, um péssimo exemplo para os escravocratas Brasil e Estados Unidos. É aguardar para ver. Segundo detalhe, e não qualquer um: a estrela do filme deve ser o ator Danny Glover, herói de Máquina Mortífera. Garimpando a rede, achei essa foto dele, em 2003, com o ex-presidente Jean Bertrand Aristide, deposto no ano seguinte e origem da última crise política.

Haiti, em três tempos

O cotidiano da população do Haiti foi agredido nas duas últimas décadas de caos político. Refém de uma ditadura sangrenta de Papa Doc e Baby Doc, o Haiti fez eleições democráticas em 1989, viveu um novo golpe militar em 1991. Depois disso, vieram mais duas missões de paz da ONU. A última delas, cujas tropas militares são chefiadas pelo Brasil, começou em junho de 2004 e deve ser prorrogada no dia 10 de outubro por mais um ano.

Desde 2004, jornais e entidades não-governamentais pelo mundo registraram a situação do povo haitiano. A pobreza extrema, a carência de políticas públicas, a violência e a política. Selecionei aqui três especiais multimídias de dois veículos internacionais para mostrar um pouco dessas mudanças no país, sobretudo após fevereiro de 2004, quando o ex-presidente Jean Bertrand Aristide foi deposto do cargo e levado por soldados norte-americanos para o exílio. Mostra um pouco da realidade haitiana e como a mídia cobre a crise.

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O primeiro deles é um especial de 2004 do site do jornal New York Times. A fotógrafa Ruth Fremson fez um slide show com um depoimento em áudio bem informal suas impressões do país. Belo jogo de impressões sobre a pobreza, a falta de luz, a comida dos pobres e sobre um abrigo para jovens haitianas.

Photographer’s Journal: A shelter in Haiti

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O segundo também é do New York Times. Um vídeo coberto de imagens com duas entrevistas, mas, como o primeiro, sem nenhum depoimento de moradores haitianos sobre o processo. Ele tenta apresentar uma versão sobre a influência dos Estados Unidos sobre a política doméstica no Haiti.

A preview of the Discovery Times documentary: ‘Haiti: democracy undone’

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O último é do repórter Bruno Garcez, correspondente da BBC Brasil em Washington, que fez um vídeo sobre a recepção dos moradores de Cité Soleil às tropas brasileiras. Após a ocupação da favela, hoje é um sentimento de tranqüilidade no local. A maior parte deles agradece o trabalho dos soldados brasileiros.

Tropas do Brasil são saudadas como ‘gente boa’ no Haiti; assista

PS: este último roda no Real Player; costuma não funcionar com software livre.

ONU prorroga força de paz no Haiti no dia 10

Está marcada para o dia 10 de outubro a renovação formal do mandato da Missão para Estabilização de Paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah) . A decisão de prorrogar a permanência da missão é certa entre os países-membros do Conselho de Segurança. Escrevi sobre isso para a Agência Brasil em minha última viagem ao Haiti. O presidente René Préval (foto) na Assembléia-Geral das Nações Unidas disse que a continuidade da missão em seu país era “muito oportuna”.

UN Photo/Marco Castro

Agora, só falta assegurar qual o tempo exato do novo mandato e se incluirá mudanças na configuração da força. Ambos os pontos foram abordados pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em sua visita ao Haiti em agosto e formalmente entregues em um informe para os membros do Conselho de Segurança para a avaliação da prorrogação do mandato. No primeiro, o secretário-geral pede a prorrogação por 12 meses, mantendo os mesmo princípios das resoluções anteriores. Sobre o segundo assunto, sugere atenção especial para a vigilância das fronteiras. Aliás, esse é um pedido também dos norte-americanos.

Explico: o Haiti é rota do tráfico internacional e ponte para a entrada de drogas nos Estados Unidos. Estima-se que cerca de 10% da cocaína produzida na Colômbia chega aos EUA via Haiti. O secretário-geral sabe disso e ressaltou a importância de vigiar as fronteiras em seu relatório. Só que de uma maneira mais leve, digamos.

A falta de controle sobre suas fronteiras terrestres e marítimas é para o Haiti um fator de instabilidade que repercute na sustentabilidade da governança política e econômica, da segurança e do desenvolvimento institucional do país. Tendo 1.600 milhas de litoral desprotegido, portos marítimos sem vigilância e numerosas pistas de aterrissagem clandestinas, o país está exposto à entrada de pessoas que participam do tráfico ilícito, incluindo armas e drogas cujas atividades poderiam criar maior instabilidade

Esse tema foi citado também pelo representante do secretário-geral da ONU no Haiti, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, que estava presente na reunião dos ministros da defesa dos países sul-americanos que integram a missão da ONU. Vejam a sonora dele nesse vídeo que fiz para a Agência Brasil.

Agora resta saber se a nova resolução trará essas mudanças.

Lendo Emir Sader, descobri um antropólogo

Desde a semana passada, passei a acompanhar os relatos do professor Emir Sader que visita, pela primeira vez, o Haiti. Suas idéias estão escritas em seu blog, na Agência Carta Maior. Ele participa de um seminário organizado pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso) e pela fundação Gérard Pierre-Charles, nome de um dos principais intelectuais da esquerda haitiana e que morreu há três anos. Destaco uma de suas primeiras observações:

Qualquer que seja o diagnóstico que se faça da história recente do Haiti, o certo é que, depois da catástrofe que significou para o Haiti a ditadura do clã Duvalier, o desastre mais recente, que ajuda a entender a grave situação em que se encontra o país, foi o fracasso do governo de Aristide. Ele tinha as melhores condições para dar inicio à reconstrução democrática do país, pela liderança popular que tinha como padre da teologia da libertação, da oposição democrática, contando também com apoio internacional.

O diagnóstico do professor Emir Sader ressalta que lá há “uma inexistência real do Estado”. “Há ministérios, mas muito poucos serviços públicos, estruturas muito debilitadas”. É interessante essa observação, já a vi também em especialistas do assunto como o professor Ricardo Seitenfus. Contudo, lendo os comentários do blog vi duas inserções muito legais do doutorando José Renato de Carvalho Baptista, que compara, em seu estudo de doutorado, alguns significados culturais entre o vodu haitiano e o candomblé. Mas ouro em seu comentário é a discordância sobre os conceitos de Estado. Segue:

Como antropólogo sugiro que não se trata de uma “ausência de Estado”, mas pegando carona nas idéias de Michel Rolf Trouillot, brilhante intelectual haitiano do Depto. de Antropologia da UNiversidade de Chicago, trata-se de um caso de um Estado predatório, que se coloca contra os interesses da sociedade (cf. Trouillot, 1987). Sugiro também ao prof. Sader travar contato com as sugestões de Jean Casimir (possivelmente seu colega na CLACSO), que falam também de um tipo específico de Estado predatório, mas não da ausência deste (Casimir, 1997). Por fim, Hurbon (1987) também aponta para este problema, não afirmando uma ausência do Estado, mas um caráter específico deste.

Pode parecer uma discussão árida demais, mas tem um foco importante. O Haiti ainda tem um foco de corrupção grande, que abocanha grande parte do orçamento público do país, já corroído pelo pagamento de juros da dívida externa. De certa forma, nesse debate também está a possibilidade de encontrar alternativas reais para o futuro das políticas públicas do país – maior carência para o povo haitiano. Pedi até uma entrevista com Baptista, vamos ver se rola.