Haiti e o “estado de sítio” permanente


Artigo meu publicado para o site OperaMundi, disponível neste link
aqui.

Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante. Quando não “treme” pela pobreza extrema – aqui entendida como desemprego epidêmico, fome crônica e a ausência de saúde e educação públicas -, é a vez das crises políticas e das tragédias naturais: tempestades tropicais, enchentes e furacões. Para dar um exemplo, quatro furacões deixaram cerca de mil mortos e 18 mil desabrigados em 2008. Corpos apodreciam na água das enchentes, não havia estrutura de socorro, o dinheiro e a ajuda humanitária chegavam lentamente. Há pouco, semanas atrás, acabou a temporada de furacões na América Central e, agora, o país se debate com um surpreendente terremoto de magnitude inédita nos últimos 200 anos.

Aliás, dois séculos atrás é aproximadamente o tempo histórico da vitória da única rebelião de escravos que levou à independência de uma nação desde a Antiguidade clássica. Um passado glorioso que vem sendo ofuscado por um presente de pobreza e crises. Desde a deposição do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, a situação política oscilava entre momentos de paz, violência e fragilidade política. Mas a pobreza resistia. E a cada fenômeno natural, o espectro da destruição pairava sobre eles. A diferença é que desta vez, a tragédia une brasileiros e haitianos. Haverá mais confirmações de mortes entre os brasileiros capacetes azuis e diplomatas da ONU. A médica Zilda Arns teve ironicamente sua vida ligada ao país do continente americano com um dos piores índices de desnutrição e mortalidade infantil, onde queria implantar as bases da Pastoral da Criança.

O impacto do terremoto sobre o Haiti é brutal porque seu epicentro foi muito próximo de uma das regiões mais populosas, a capital Porto Príncipe. O país tem um território comparável ao de Alagoas, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mais ou menos 3 ou 4 milhões vivem só na capital, em favelas de tijolos frágeis, de estruturas baratas, improvisadas. Na cidade, onde os ricos moram nos morros e os pobres na parte plana próxima ao mar, o impacto foi maior em bairros com construções de mais de um piso. A região do Palácio do Governo, vizinha da favela de Bel Air, foi destruída. A situação se repete em bairros mais horizontais, como Carrefour, Delmas e Cité Militaire. Na região de Cité Soleil, de barracos de zinco e tijolos finos, os danos não foram menores.

O distrito de Petion-Ville, no alto da cidade, onde ficam as sedes das embaixadas e organizações internacionais, sofreu grande impacto. Até o Hotel Montana foi atingido, um quatro estrelas versão haitiana, onde morreu o general brasileiro Urano Bacellar em 2006. Passarão semanas para as contagens dos mortos e desaparecidos. O Palácio do Governo, que desmoronou quase completamente, era um centro político e uma espécie de residência do presidente. No hall revestido de mármore sob a cúpula central do palácio, ficavam as estátuas de Simon Bolívar e Alexandre Petion. Frente a frente. A poucos metros da vista ampla da planície da praça. Esses símbolos foram completamente soterrados no terremoto.

Um país imóvel

Vale lembrar que, em novembro de 2008, uma pequena tragédia se abateu sobre o distrito de Petion Ville. Ali, sem temporal, sem vento, sem terremoto, a escola primária La Promésse desabou. Simplesmente veio abaixo pela precariedade de sua construção. Matou cerca de 100 crianças e feriu outras 150. O presidente haitiano, René Préval, disse na época que a fragilidade e a debilidade do Estado permitia a existência de construções precárias e ocupações ilegais, o que aumenta a possibilidade de vítimas. O Haiti tentava reestruturar seu Estado com a ajuda da quinta missão de paz da ONU nas últimas décadas. Mas ainda não havia um sistema de defesa civil estruturado, o que vai piorar a situação agora no socorro e atendimento a feridos. Quem não morreu diretamente pelo terremoto corre o risco de morrer por falta de estrutura de bombeiros ou atendimento médico.

Porto Príncipe já possuía uma infra-estrutura precária. Energia elétrica era luxo. Quem tinha convivia com apagões diários. A distribuição de água era feita, muitas vezes, por caminhões-pipa e fontes de água. Em bairros inteiros, a população se abastecia com baldes. Cité Soleil, a maior favela da cidade, era um exemplo. Agora, com o terremoto, a estrutura de abastecimento de água também sofreu. Num país que importava mais da metade da comida para manter as necessidades básicas da alimentação de seu povo, a água voltou a ser escassa. Todo o combustível do país também é importado. Dificilmente um plano de emergência, com o envio de maquinário pesado, conseguirá colocar em prática um mutirão de salvamento em grande escala para evitar mais mortes. O país está quase imóvel dois dias após o abalo principal.

A ajuda da ONU e a dívida externa

O número de mortos – ouve-se agora uma estimativa do governo haitiano de cerca de 50 mil – seria pelo menos cinco vezes maior do que o total de brasileiros enviados à missão de paz das Nações Unidas nos últimos seis anos. O terremoto deve aproximar mais Haiti e Brasil. Nos últimos tempos, nossos enlaces com o país caribenho aumentaram. Além dos capacetes azuis, ativistas, acadêmicos e religiosos procuravam estreitar relações com o povo. A estrutura da ONU no país sempre esteve longe de mudar o perfil da pobreza e das necessidades básicas para o país se reerguer: trabalho, saúde, educação. Iniciativas como a da médica Zilda Arns eram um pedido de entidades haitianas desde a chegada da ONU por lá, há seis anos. Envio de médicos, engenheiros agrônomos, professores, gestores públicos, entre outros. Tudo que vai faltar em dobro agora.

Do fim da vida de Zilda Arns no Haiti, cabe ainda um recado, acredito. A mudança no perfil da missão da ONU no Haiti é urgente mais uma vez. O estágio relacionado à segurança pública pode ter sido questionável, mas há tempos foi superado. Temos a oportunidade agora de ajudar com menos tropas militares e mais parcerias para a reconstrução e desenvolvimento do Haiti. A começar pelo perdão da dívida externa de cerca de 2 bilhões de dólares, uma porcentagem ínfima na comparação com os rios de dinheiro que os países ricos gastaram para socorrer o sistema financeiro internacional da gana de seus próprios especuladores.

Terremoto no Haiti deixa “estado de sítio”

Estou tentando contactar amigos e conhecidos no Haiti. Pelas informações que obtive, a situação é uma calamidade imensa. Os bairros pobres também foram ao chão, o trânsito é quase impossível, falta ajuda para quase todos, a torre de controle do aeroporto ruiu, pessoas estão nas ruas atônitas, esperando socorro médico que não vem de lugar algum. Os hospitais que ficaram de pé não conseguem mais atender tanta gente. Poucos telefones funcionam, o contato com a capital, que já era dificílimo, ficou quase impossível. Conversei com uma pessoa no porto da cidade e ela comentou que as entradas das favelas de Cité Soleil e da zona portuária estão um caos.

Se o mais forte dos últimos furacões no Haiti matou algo em torno de 1 mil pessoas, o número agora pode ser bem maior, porque há muitos estragos na capital do país, Porto Príncipe, a região mais densamente povoada. Há mais brasileiros entre os mortos do que apenas os primeiros confirmados e de Zilda Arns. Essa é só a tragédia que nos une. Para o povo haitiano, também será hora de contar intelectuais, militantes e um sem-número de pessoas que podiam ajudar a impulsionar um novo Haiti – da política, da justiça social e dos direitos humanos. Pense em “Zildas Arns” haitianas que podem ter morrido. Esperar para ver. Reze pelo Haiti.

Caos dos furacões no Haiti – update de fotos


Agora, passado algum tempo após os quatro furacões que atormentaram o Haiti, chovem na internet atualizações das fotografias da tragédia. Para ser mais exato, das quase 800 mortes e outras dezenas de milhares de desabrigados. Via Haiti Innovation, recebo alguns links para navegar pela dimensão de ser pobre num país que está na rota dos furacões. A foto acima é da equipe da Rádio Nederland. Também tem a própria galeria do blog Haiti Innovation. Na Federação Internacional da Cruz Vermelha, uma galeria mostra Gonaives alagada. A Cruz Vermelha dos Estados Unidos traz mais 20 fotos. Também no Flickr, imagens do comando militar dos Estados Unidos entregando a ajuda humanitária. Susan Walsh publicou fotografias de resgates em Gonaives. Complemento a apuração deles com links importantes da página da Minustah, do Haitian Times, do TNT Emergency Response Team, além do sempre impressionante olhar da fotógrafa Ariana Cubillos, do Washington Post, como na foto abaixo.

Imagem da tragédia em Gonaives

Não é fácil entender o tamanho da tragédia de um furacão no Haiti se você nunca foi até lá para saber que tudo dificulta o povo. Não há habitação decente, saneamento básico, sistema de drenagem de água, atendimento médico ou qualquer “facilidade”, melhor chamada por qualquer um de “direitos”. À medida que a água baixa após a passagem dos furacões Hanna e Ike, Gonaives descobre seus mortos. Hoje, há na página oficial da Minustah uma foto horrível, merecedora de qualquer prêmio de fotojornalismo que fale sobre o Haiti. Não pelo mérito estético, mas pela evidência do desastre. O corpo de uma vítima, em estado de decomposição, é encontrado na lama. O slideshow inteiro pode ser visto aqui.

Reportagem no olho do furacão Hanna

Este post é uma troca de impressões entre um blogueiro e uma repórter que viu o estrago do furacão Hanna no Haiti. Sobretudo o impacto na cidade costeira de Gonaives. Troquei e-mails entre ontem e hoje com a correspondente do Miami Herald no Caribe, Jacqueline Charles, e publico aqui com exclusividade alguns relatos de como andam as coisas por lá depois da passagem do Hanna e na espera da tempestade Ike, prometida para as próximas horas. Charles publicou ontem em seu jornal um agoniante relato sobre a família de Fleurie Benita, 24 anos, mãe de quatro filhos, e que perdeu todas suas posses na inundação.

Segundo as primeiras informações oficiais de ontem, as autoridades locais já falam em 500 mortos por afogamento na cidade. Os corpos começam a aparecer na medida em que a água e a lama vão baixando. “Tenho ouvido esses relatos, mas estamos à espera da confirmação da defesa civil daqui. Mas é muito possível (que isso seja verdade) uma vez que agora a água está baixando e as pessoas estão encontrando mais mortos”, conta. A Agência Reuters publicou a informação que ela cita. “A água está calma agora e nós estamos descobrindo mais corpos. Nós encontramos 495 corpos até agora e há 13 pessoas desaparecidas”, disse o comissário de polícia Ernst Dorfeuille.

Acabei por perguntar a ela como foi o trabalho para chegar até Gonaives e cobrir o furacão logo quando ele estava passando, pois, em 2004, o Jeanne deixou um rastro de impacto mas a imprensa internacional somente chegou lá com a ONU. “O Jeanne foi muito bem como Hanna, uma tempestade imprevisível que pegou muitos de surpresa. O Miami Herald enviou um repórter que escreveu várias histórias sobre a devastação que existe na cidade. E da mesma forma que as pessoas em Gonaives aprenderam a correr para terrenos mais elevados – quer uma montanha ou telhados – os repórteres também têm de ser aprendido com o olhar. Eu comecei a descrever Gonaives debaixo d’água na terça-feira pela manhã”, diz.

Com as grandes proporções da tragédia, o trabalho de reportagem também fica difícil por conta de deslocamentos. “É muito difícil chegar ao redor da cidade uma vez que você está lá, por isso o melhor é que você pode fazer o levantamento cena e falar com as pessoas. As pessoas estão com muita raiva e eles continuam assustados agora que mais duas tempestades estão a caminho e podem afetar Haiti. Lembre que o furacão Hanna foi projetado para passar ao longo das Ilhas Turcas, não pelo Haiti, mas ainda assim causou um grande número de mortes”, afirma. No Miami Herald, há uma página para visualizar a rota de cada um dos furacões desta temporada.

A repórter também comentou comigo sobre a cobertura da imprensa internacional por lá. Ela já foi acusada pelo Haiti Information Projet (HIP) de ser uma voz anti-Aristide lá por ter omitido, segundo o HIP, as reais dimensões das manifestações favoráveis a ele. Indagada sobre a qualidade da cobertura da imprensa diante dos problemas do país, Charles responde: “Pessoalmente não tenho queixas sobre a cobertura do Miami Herald. Penso que cobre todos os aspectos do Haiti e da vida haitiana. No que diz respeito à maneira como os outros cobrem, eu realmente não presto atenção a menos que exista uma história que interesse a mim ou aos nossos leitores”.