Ajuda no Haiti está longe do combate à pobreza e desnutrição

A ajuda humanitária ao Haiti nas últimas semanas responde vagarosamente à tragédia deixada pela passagem de quatro furacões na atual temporada de 2008. O país já tinha uma situação de empobrecimento extremo e se tornou calamidade internacional. Quase 800 pessoas morreram e outras 18 mil ficaram desabrigadas, segundo os últimos dados oficiais. O governo local – chefiado pelo presidente René Préval –, as Nações Unidas – que coordenam uma força de paz no Haiti (Minustah) – e outras organizações não-governamentais reafirmam que a ajuda atual está aquém do mínimo necessário para a situação. Mas a entidade Médicos Sem Fronteiras faz denúncia pior: a de que além de ser insuficiente, não está conectada a nenhuma estratégia clara para suprir as necessidades básicas da população.

”A ajuda alimentar internacional que chega às comunidade é claramente insuficiente em termos de quantidade, inadequada para as necessidades nutricionais das crianças de pouca idade, e ela está sendo distribuída de uma maneira que exclui as mulheres solteiras com filhos. Não existe ainda nenhuma estratégia clara para identificar as necessidades, nem aplicar uma resposta adequada nutricional”, registra um informe da MSF publicado nesta semana. “Apesar da presença significativa de organizações internacionais – com abundância de especialistas e de publicações que mostram isso –, o povo de Gonaives ainda tem precisa ver benefícios. A temporada de furacões termina no final de novembro. Se outro atravessar a região com mais chuvas, moradores aqui pagarão mais uma vez um preço muito alto.”

Diante deste informe, entrevistei o porta-voz da MSF por e-mail. Gregory Vandendaelen explicou que a entidade é especializada no atendimento médico de emergência e que, mesmo após algum tempo dos desastres no Haiti, os casos críticos não diminuem. Entre os fatores está o atendimento impróprio da ajuda humanitária. “Não é só sobre a quantidade da ajuda, é mais sobre a forma como ela é organizada. Contra a desnutrição, por exemplo, não é a quantidade de comida que irá ajudar as crianças e, sim, a qualidade. Arroz, óleo e grãos farão pouco ou nada por eles. Precisam de alimentação terapêutica, rica em proteínas, vitaminas e nutrientes. O que denunciamos aqui é a falta de estratégia e prioridade”, disse. A MSF clama para que as organizações e o governo haitiano examinem imediatamente suas respostas de emergência e priorizem o amparo às crianças vítimas das inundações.

A crise dos alimentos no mundo piorou a situação do Haiti em 2008. Uma notícia do site oficial da Minustah de julho já mostrava o impacto da inflação. “Os preços de produtos como arroz, milho, farinha, açúcar, óleo, palhetas, as mangas têm crescido muito. O saco de milho estava em 400 gourdes no ano passado e agora subiu para 1050 gourdes (1 dólar = 37,50 gourdes). O arroz passou de 125 a 225 gourdes por saco”, afirma. Antes da crise alimentar, observa Stephanie Debere, da Oxfam, as pessoas comiam arroz, feijão e legumes. Agora os vendedores do mercado estão sendo forçados a abandonar a atividade, principalmente após a enxurrada de arroz subsidiado que chegou com a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI). O responsável da Coordenação Nacional para a Segurança Alimentar haitiano (CNSA), Gary Mathieu, estima que 3,3 milhões de pessoas enfrentam problemas para se alimentarem no Haiti após a passagem dos ciclones, que afetaram as safras e a produção agrícola.

No mundo, segundo a FAO, o Haiti se soma a outros 36 países que necessitavam de ajuda estrangeira contra a crise dos alimentos. Na América Latina, Haiti, Honduras e Haiti possuem a combinação explosiva de baixa renda e déficit na produção de alimentos. O último relatório oficial da ONU sobre o Haiti, que embasou a decisão do Conselho de Segurança de prorrogar a força de paz até 2009, indica que a produção nacional de alimentos e ajuda internacional não cobrem mais do que mais do que 43% e 5% de suas necessidades, respectivamente. Isso tem influenciado de maneira direta e intensamente na economia do país e nas condições de vida da população. O déficit comercial do Haiti aumento US$ 185 milhões (2,5% do PIB) durante os seis primeiros meses de 2008 por conta da alta dos alimentos. A inflação dobrou, alcançando 15,8% em junho do ano passado, ante 7,9% de todo o exercício de 2007.

Também repito aqui algumas propostas (minhas e de outras entidades) para ajudar na crise humanitária do Haiti. 1) Perdoar a dívida externa haitiana, sobretudo sua célula-mater em posse da França, antiga metrópole colonial que ganhou rios de dinheiro com a escravidão e ainda cobrou para reconhecer a independência da colônia; 2) Melhorar a produção local de alimentos com incentivos fiscais e reforma agrária, priorizando os pequenos agricultores; 3) Rever todas as negociações em curso do comércio mundial que aprofundam o abismo da importação de alimentos, o que funciona como uma espécie de dumping mundial contra o Haiti. 4) Ajudar a encontrar recursos com países doares para suportar o plano haitiano de combate à pobreza.

PS: este texto foi produzido para integrar as ações do Blog Action Day 2008, celebrado hoje no mundo todo com o tema “pobreza” ao mesmo tempo em que são feitas centenas de atividades do Dia Mundial da Alimentação.

Missão da ONU no Haiti é renovada até fim de 2009

A bola estava cantada. O Conselho de Segurança das Nações Unidas renovou a permanência da força de paz no Haiti por mais um ano, incluindo planos de ação pelo menos até a posse do novo presidente em 2011. Ou seja, a decisão foi tornada oficial hoje, mas, na prática, é uma formalidade das rotinas burocráticas da diplomacia. O que interessa é que a nova resolução não traz nenhuma mudança formal na configuração dos trabalhos. Mais de um ano e meio depois de relativa tranquilidade no país, passada a etapa das ações militares em Cité Soleil, o número de soldados permanece o mesmo sob o argumento que de a segurança ainda é frágil. Nada indica que o modelo de missão de paz da ONU vá apresentar resultados mais concretos para os verdadeiros problemas do povo haitiano – pobreza, falta de saúde, educação e emprego.

A resolução apresentada hoje mantém o Haiti como região de conflito, mantendo as regras de engajamento militar, com a observação de que a segurança é necessária em situações como os protestos da população em abril diante da inflação dos alimentos. Além, claro, após a devastação brutal causada pelos quatro furacões recentes (Hanna, Gustav, Ike e Fay), que, segundo o diplomata Luiz Carlos da Costa, assessor do secretário-geral da ONU no Haiti, atrasará em cerca de um ano a “estabilização” do Haiti. “A resolução reconhece a necessidade de uma conferência de doadores de alto nível para apoiar a estratégia nacional de crescimento e redução da pobreza no Haiti. Nesse sentido, pede ao governo haitiano e à comunidade internacional de doadores a implementar um sistema eficiente de coordenação de ajuda”, diz a ONU.

Esse anseio por mudança está há tempos na cabeça de entidades civis haitianas (leia matéria de 2005), na dos próprios militares (leia general Heleno em 2004) e dos diplomatas – recentemente o embaixador Igor Kipman falou sobre disso. “Eu continuo defendendo que o Brasil, nesse próximo contingente [que será o décimo] ou no outro, mande menos combatentes e mais uma companhia de saúde, mais pessoal de educação”, indicou na Agência Brasil. Depois, ao jornal O Estado de S.Paulo, foi mais explícito. Ao falar sobre a prorrogação sob os mesmo “moldes”, o diplomata disse que vai atuar por mudanças no composição das tropas e na manutenção do Capítulo 7 da Carta da ONU, que autoriza o uso da força. “Não precisamos de combatentes para ensinar criança a escovar os dentes. Temos 900 combatentes fazendo ações cívico-sociais, como distribuição de alimentos e construção de latrinas.”

Nesta última reportagem, inclusive, feita pelo jornalista João Paulo Charleaux, há uma ótima análise sobre o fracasso do braço civil da Minustah, a área da missão responsável pela atuação policial, por novos projetos humanitários e pela articulação de trabalhos das agências da ONU. Entre os argumentos do texto, está um dado que consta no balanço do último ano da missão. Elaborado pelo chefe da Minustah, Hedi Annabi, o relatório cita que a produção nacional de alimentos e ajuda humanitária que recebe não cobrem a metade das necessidades da população. “O Haití importa 52% do restante de seus alimentos (o que inclui mais de 80% do seu arroz) e todo o seu combustível”, registra. Ou seja, sem mexer na estrutura econômica do país qualquer ação militar será um processo “enxuga-gelo”.

Esperança nas tempestades?

A BZ Films fez o vídeo “Haitian Hope” em conjunto com a ONG Parterns In Health para mostrar a situação do país caribenho após os quatro furacões. A trilha deixou em mim a impressão de que o material foi editado para incentivar o derretimento de corações, mesmo que as imagens falassem por si. Mas vale a pena…

Caos dos furacões no Haiti – update de fotos


Agora, passado algum tempo após os quatro furacões que atormentaram o Haiti, chovem na internet atualizações das fotografias da tragédia. Para ser mais exato, das quase 800 mortes e outras dezenas de milhares de desabrigados. Via Haiti Innovation, recebo alguns links para navegar pela dimensão de ser pobre num país que está na rota dos furacões. A foto acima é da equipe da Rádio Nederland. Também tem a própria galeria do blog Haiti Innovation. Na Federação Internacional da Cruz Vermelha, uma galeria mostra Gonaives alagada. A Cruz Vermelha dos Estados Unidos traz mais 20 fotos. Também no Flickr, imagens do comando militar dos Estados Unidos entregando a ajuda humanitária. Susan Walsh publicou fotografias de resgates em Gonaives. Complemento a apuração deles com links importantes da página da Minustah, do Haitian Times, do TNT Emergency Response Team, além do sempre impressionante olhar da fotógrafa Ariana Cubillos, do Washington Post, como na foto abaixo.

Ajuda pós-furacões e economia haitiana na berlinda

A passagem dos furacões pelo Haiti (e seus impactos) foram pouco noticiadas no Brasil. Há alguns dias, jornalistas da TV Globo, da EBC e da Agência Lusa foram para lá. Esta última, inclusive, com belas reportagens. No balanço, deram matérias em português com relatos dos soldados e dos representantes da ONU sobre a ajuda humanitária. O general Santos Cruz estima em quase 17 mil os desabrigados. A diretora do Programa Mundial de Alimentos, Josette Sheeran, acredita que nem um terço das doações necessárias chegaram. De Porto Príncipe, o embaixador brasileiro comenta que alimentos são doados pelo Brasil diretamente a famílias e entidades necessitadas. Enviado da ONU clama por doações via governo e não por ONGs. Na imprensa estrangeira, há denúncia de roubo de alimentos que seriam entregues para as vítimas. O Unicef reafirma que as crianças são as principais vítimas. ONG Médicos Sem Fronteiras atua fortemente em Gonaives. Venezuela anuncia plano de ajuda ao Haiti por intermédio da Petrocaribe, já uma reportagem da NPR vincula a atuação de Chávez a uma manobra política na região. No rastro dos quatro furacões que devastaram o país, outra tempestade se forma – o impacto financeiro que a crise dos Estados Unidos pode provocar no Haiti. O economista Kesner Pharel alerta que a economia haitiana é muito vulnerável. Já frágil por ser grande importador de alimentos, os efeitos de uma recessão no país podem ser bem duros. E empurrar cada vez mais gente para imigrações ilegais. Sem que ninguém discuta uma “ajuda econômica” ao Haiti diante da enxurrada de dinheiro que seguirá para a roleta das bolsas. E se o furacão recessivo for uma tormenta a conta-gotas?

Imagem da tragédia em Gonaives

Não é fácil entender o tamanho da tragédia de um furacão no Haiti se você nunca foi até lá para saber que tudo dificulta o povo. Não há habitação decente, saneamento básico, sistema de drenagem de água, atendimento médico ou qualquer “facilidade”, melhor chamada por qualquer um de “direitos”. À medida que a água baixa após a passagem dos furacões Hanna e Ike, Gonaives descobre seus mortos. Hoje, há na página oficial da Minustah uma foto horrível, merecedora de qualquer prêmio de fotojornalismo que fale sobre o Haiti. Não pelo mérito estético, mas pela evidência do desastre. O corpo de uma vítima, em estado de decomposição, é encontrado na lama. O slideshow inteiro pode ser visto aqui.

Ike traz nova tragédia, ajuda humanitária é urgente

Na atual temporada de furacões, o Haiti foi atingido por tempestades que deixaram mortes, inundações e estragos pelo país. Fay, Gustav, Hanna e Ike são os nomes das tormentas. A última passou no final de semana e já deixou ao menos 50 novas vítimas fatais quando o país ainda contava as mais de 500 que morreram com o Hanna. Principalmente em Gonaives, cidade costeira ao norte da capital Porto Príncipe. Os ventos de 215 km/hora do furacão Ike – categoria 4 na escala Saffir-Simpson de 5 – perderam força após a passagem pelo Haiti. O número oficial de mortes ainda pode subir enquanto a defesa civil trabalha e ajuda humanitária chega. Até agora, o número de vítimas é quase comparável à queda de dois aviões.

Para quem lê estas linhas ainda com distanciamento dos problemas, volto a citar a cobertura do Miami Herald, com relatos sobre as tempestades. Desta vez, a história é de Frantz Samedi, moradora de Cabaret, que procurou desesperadamente sua filha de cinco anos, desaparecida na lama da tempestade Ike. Encontrou-a morta após duas horas de procura. “Frantz Samedi procurou por sua filha de 5 anos de idade, durante duas horas em meio à água suja e aos escombros da tempestade, chamando o seu nome: Tamasha, Tamasha! Quando finalmente a encontrou, ela parecia estar dormindo pacificamente, o seu corpo repousava sobre uma lamacenta laje de concreto ao lado de outras 11 crianças de idades entre um a 8 anos”.

“Um velho homem abriu caminho no meio da multidão de sobreviventes, transportando um pote de água. Ele ajoelha-se ao lado do corpo e lava cuidadosamente com uma esponja o corpo da menina. ‘Eu não posso deixá-la nesta situação’, diz Samedi soluçando. ‘Eu deveria ter morrido em seu lugar’. Tamasha e as outras crianças foram arrancadas de suas famílias quando Ike passou por esta pobre cidade costeira no domingo. A tragédia aqui é uma pequena amostra da devastação generalizada em todo o país”. Clique aqui para ver a fotos do relato. Abaixo, homem lamenta a morte de uma das crianças.

A recém empossada primeira-ministra, Michèle Pierre-Louis, fez um apelo internacional hoje para buscar mais ajuda para o país. “O governo está mobilizado, tendo sido constituído um comité nacional que inclui todos os ministérios para fazer face à situação extremamente grave, mas precisamos de ajuda dos países amigos do Haiti», afirmou. “Esperamos uma frota de helicópetros dos Estados Unidos, a Venezuela prometeu fornecer aparelhos de comunicação e a República Dominicana propôs-nos dar ajuda de emergência”. A Cruz Vermelha Internacional e a Crescente Vermelha lançaram um apelo por US$ 3,4 milhões para ajudar as vítimas haitianas. Até o papa Bento 16 rogou pelas vítimas.

Na sexta-feira, um navio do Comando Sul dos Estados Unidos, com 33 toneladas de suprimentos das Nações Unidas (ONU), chegou para ajudar cerca de 600 mil pessoas que enfrentam dificuldades com os estragos causados por Hanna. O governo brasileiro anunciou a doação de quantia equivalente a US$ 100 mil para ajudar. A Venezuela enviou 18 toneladas de alimentos, móveis e utensílios. Uma estimativa da Cruz Vermelha é que 50 mil pessoas necessitam de ajuda urgente. Alimentação, materiais de primeiros socorros, medicamentos, água limpa e abrigo são as necessidades preementes. Neste link, você acessa uma galeria de fotos da Minustah sobre o caos em Gonaives.