Dei uma entrevista para a repórter Manuela Azenha, do site da revista Carta Capital. Ela abordou perguntas interessantes sobre a geopolítica e a soberania do Haiti. Coisa que muita gente se esquece de pensar. Copio aqui no blog a íntegra da entrevista e o link para uma galeria de fotos que eles fizeram a partir de imagens da Associated Press e da Agência Brasil. Segue:
“Haiti não é aqui”, por Manuela Azenha
“Depois de quatro anos de ocupação estrangeira da ONU no Haiti, as tropas internacionais, sob o comando do exército brasileiro, continuam sendo renovadas. A missão de paz é uma intervenção militar, cujos objetivos no país se resumem a estabilidade política.
No entanto, o problema no Haiti, antes de ser militar, é econômico e social. A terra devastada é quase toda incultivável, a estrutura do Estado está desmoronada e quase 80% da população vive abaixo da linha de pobreza, com dois dólares por dia.
A missão de paz da ONU, chamada Minustah (sigla em francês de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), chegou ao Haiti em 2004, depois de o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide ser deposto pela segunda vez.
Nesse momento, sob o pretexto de defender a democracia no Haiti, soldados americanos com o apoio da ONU e da França instauraram o governo transitório, que foi substituído por René Préval, eleito presidente em 2006 com 51.21% dos votos de seus compatriotas, segundo dados oficiais.
Aloísio Milani, jornalista brasileiro que esteve quatro vezes no Haiti para escrever sobre a ação dos países latino-americanos na Minustah e o papel do Brasil na condução da estabilização do país caribenho, falou com CartaCapital sobre o assunto. A entrevista está dividida em duas partes: nesta primeira, Milani fala sobre a liderança militar brasileira e da forte intervenção norte-americana no País. Na segunda, explica a atual estrutura política, as perspectivas da disputa eleitoral e o plano de retorno das tropas.
CartaCapital: Como e porque o Brasil virou liderança militar das tropas no Haiti?
Aloísio Milani: A questão foi uma proposição política, porque o cargo ali não é especificamente militar. Por mais que o presidente da República e o ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim neguem, o Brasil estava em momento de campanha para pleitear a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava apontar que era capaz de fazer a liderança de uma missão de paz. A proposta surgiu no Conselho de Segurança, em acordo com o então presidente francês Jacques Chirac. O resultado foi o maior contingente militar brasileiro fora do país depois da Segunda Guerra.
CC: Qual é o grau de intervenção dos Estados Unidos no Haiti?
AM: O Haiti era uma república negra, se tornaria o segundo país independente do continente e a primeira república negra do mundo, não tinha uma forte relação diplomática com os EUA. Isso piorou quando invadiram o Haiti em 1915. Depois, apoiaram Papa Doc no início de sua ditadura, mas não foi algo constante. Em 1980, surgiu no cenário político Jean-Bertrand Aristide, representante de um movimento popular, o Lavalas, oriundo da teologia da libertação e dos movimentos de esquerda e que acaba eleito em 1991, mas logo é deposto por uma junta militar.
Os EUA, então, intervêm novamente, sob a administração Clinton, para recolocar Aristide no poder em 94, com a promessa de realizar novas eleições e a adotar uma política neoliberal.
CC: Como foi esse processo?
AM: A política de abertura econômica foi o que acabou com a agricultura campesina haitiana. O país deixou de ser exportador para ser importador de arroz. Deixou de produzir açúcar em grandes quantidades e passou a importar até mesmo gêneros básicos. A esta altura, em 2004, os EUA já estavam de olho nas manifestações que aconteciam contra Aristide por conta do descontentamento com sua política neoliberal.
CC: Quais eram essas manifestações?
AM: Há denúncias dos movimentos sociais haitianos de que o grupo armado que marchou a partir de São Pedro, na República Dominicana até a capital haitiana, para questionar a presidência do Aristide foi financiado pela CIA. Hoje, a embaixada norte-americana no Haiti é muito forte, talvez a que mais injete dinheiro na economia haitiana. Toda a cúpula de missão de paz da ONU lá tem uma relação direta com as decisões que os Estados Unidos querem. Há áreas da missão de paz que os EUA continuam controlando. Uma delas é a área da inteligência.
CC: Então na verdade os EUA é que são a liderança das tropas?
AM: A minha visão é de que a situação do Haiti é uma resultante de várias forças diplomáticas e vários interesses. E que eles nem sempre vão de encontro aos interesses do povo haitiano. Os EUA têm interesse no Haiti pela mão-de-obra barata e também por ser um país muito próximo de sua fronteira na costa, o que provoca o ingresso de imigrantes ilegais nos EUA.
O Brasil tem interesse no Conselho de Segurança da ONU e para mostrar para a ONU que consegue liderar uma missão de paz de grande porte. A França tem um histórico de política muito intervencionista com suas ex-colônias.
CC: Qual seria a explicação para governos ditos progressistas como da Bolívia e do Equador mandarem tropas para o Haiti?
AM: Todos têm interesses diplomáticos. E precisamos lembrar que é uma força de paz composta por soldados. Nenhum país da América do Sul vai querer deixar de participar disso como forma de participar da discussão diplomática. Os dois únicos países da América Latina que se colocaram publicamente, frontalmente, contra isso foram o Hugo Chávez na Venezuela e o Fidel Castro em Cuba. Os cubanos mandaram médicos e os venezuelanos também deram apoio em atendimentos básicos, mas num outro modelo. Eu vejo essa questão da Bolívia e do Equador também no sentido de não perder o bonde da diplomacia na região. Também existe uma disputa hegemônica na América do Sul e o Haiti nesse ponto é o único ponto de convergência.
CC: Em abril, quando houve aquela repressão violenta para impedir a manifestação contra a alta dos preços dos alimentos, o primeiro-ministro Jacques-Édouard Alexis caiu. Como está a estrutura política do país agora?
AM: No último dia 25, o presidente Réne Préval anunciou Michele Pierre-Louis como primeira-ministra. Ela era presidente de uma ONG que trabalha no Haiti há muito tempo. Desde a manifestação pelo preço dos alimentos, o que acontecia era que uma série de indicações de Préval eram negadas pelo Congresso, o que alongava ainda mais a crise política. Uma das indicações foi o Robert Manuel, que tinha sido ex-chefe da segurança de Préval em seu mandato anterior. Ele é acusado por muitos movimentos sociais de ter promovido um massacre no Citeé Soleil. Havia um movimento forte de oposição a ele. A sua indicação foi negada por irregularidade em seus documentos. Agora René Préval indicou essa nova primeira ministra que também vai ser submetida ao Congresso.
CC: Você acha que Préval ainda tem legitimidade política? Ainda é uma referência institucional?
AM: Acho que sim. Porque os problemas no Haiti são de diversas ordens. Ele foi eleito pela maioria, ainda tem legitimidade. A questão é que nem o governo dele e nem a missão da ONU conseguiram dar respostas para questões básicas da população como emprego, a economia que está longe de ser saneada, e, sobretudo a questão da violência.
CC: Quais são as perspectivas para as próximas eleições?
AM: Existe uma grande expectativa em relação ao retorno do Aristide. Essa história está ensaiada há algum tempo, desde as últimas eleições de 2006, existia uma possibilidade da sua volta ao poder. Queira ou não, o Aristide é alguém que ainda leva multidões de apoiadores às ruas, sobretudo em Porto Príncipe e em bairros mais pobres. Acho que a grande expectativa é saber se ele vai voltar, porque isso poderia mudar os rumos nas articulações políticas do Haiti. De qualquer forma, outros candidatos, burocratas do Banco Mundial e do FMI, devem voltar a se candidatar. Eles representam o contingente de emigrantes que vivem fora do Haiti, principalmente no Canadá e nos EUA. No momento, a vantagem estaria com os apoiadores do Lavalas, que ainda são um grupo partidário forte no Haiti.
CC: É provável que Baby Doc retorne?
AM: Ele tem problemas gigantescos lá, acusações internacionais de violações dos direitos humanos, está com sua fortuna seqüestrada internacionalmente. Tem uma pequena parte da elite que apóia o Baby Doc, mas ele não encontra legitimidade para disputar com vigor as eleições.
CC: Existe alguma proposta de alteração estrutural do país? Alguma mobilização ou candidato que proponha isso?
AM: Esse foi o grande desafio das últimas eleições. Os governos sul-americanos estão tentando articular alguma indicação por lá, mas isso não funciona porque elas não nascem de maneira natural. Não existe um movimento de oposição, ou um grupo de partidos que faça uma coalizão para um desenvolvimento alternativo no Haiti. É tudo muito fragmentado e fica polarizado entre quem é a favor do Lavalas e quem é contra. A política é feita das migalhas dessa disputa.
CC: As tropas têm planos de retorno? O objetivo foi cumprido?
AM: Eu acho que as tropas ficam no país pelo menos um ano depois das eleições. Isso está presente nos discursos dos representantes dos países. Aqui no Brasil, já disseram que ficam até 2010, 2011. Então a tendência é ficar, não há planos de retirada ainda. O que existe é a expectativa de uma mudança de perfil das tropas, passar de uma missão de segurança, de combate a grupos armados para uma missão que realmente ajude a reestruturar serviços básicos. Enquanto continuar assim, a missão vai continuar enxugando gelo no Haiti. E se o Brasil sair agora, os problemas que poderiam ter sido atacados vão continuar, assim como a instabilidade política e os conflitos armados. Esta já é a quinta missão de paz. O Brasil está liderando a parte militar da quinta. As outras quatro foram totalmente fracassadas.
CC: Você acha que o envio das tropas foi um erro?
AM: Não, eu acho que foi um erro lá atrás, na força interina os EUA, Canadá, Chile e França terem tirado o Aristide de lá como se fosse ele o único culpado de todos os protestos. Peter Hallward, um filósofo norte-americano muito citado pelo Noam Chomsky para falar do Haiti, diz que essa foi talvez a intervenção norte-americana mais bem sucedida porque depois que eles saíram de lá, ficou parecendo que estavam certos quando afastaram o Aristide. Aqui, como no Iraque também, a ONU está entrando como bucha do canhão. O erro não repousa sobre a presença militar, mas sobre as intervenções anteriores.
CC: A retirada imediata das tropas é inviável?
AM: Imediato é readequar o perfil da missão no Haiti. A retirada das tropas tem que ser num plano de saída sustentável. Em um ou dois anos, mas com a polícia nacional reestruturada, com a presença de atores que entrem em defesa da democracia e não dos interesses de um ou de outro no Haiti.
CC: O que resolveria o problema do Haiti?
AM: É preciso ajudar o processo de desarmamento, pois ainda existem estruturas de grupos armados, de diferentes motivações. Como gangues ligadas ao narcotráfico, os ex-militares, os chimères e partidários e opositores de Aristide. A segurança institucional é frágil com esse cenário. Também é preciso ajudar na estruturação do Estado haitiano, para que instituições e serviços públicos funcionem dignamente. Mas é preciso, sobretudo, ajudar a economia do Haiti, auditando e perdoando a maior parte da dívida externa do país, que amarra a capacidade de investimento haitiano. Sem isso, o tão falado desenvolvimento econômico será uma pequena esperança, uma longa caminhada para retirar a camisa de força que o Haiti tem.”