Ajuda no Haiti está longe do combate à pobreza e desnutrição

A ajuda humanitária ao Haiti nas últimas semanas responde vagarosamente à tragédia deixada pela passagem de quatro furacões na atual temporada de 2008. O país já tinha uma situação de empobrecimento extremo e se tornou calamidade internacional. Quase 800 pessoas morreram e outras 18 mil ficaram desabrigadas, segundo os últimos dados oficiais. O governo local – chefiado pelo presidente René Préval –, as Nações Unidas – que coordenam uma força de paz no Haiti (Minustah) – e outras organizações não-governamentais reafirmam que a ajuda atual está aquém do mínimo necessário para a situação. Mas a entidade Médicos Sem Fronteiras faz denúncia pior: a de que além de ser insuficiente, não está conectada a nenhuma estratégia clara para suprir as necessidades básicas da população.

”A ajuda alimentar internacional que chega às comunidade é claramente insuficiente em termos de quantidade, inadequada para as necessidades nutricionais das crianças de pouca idade, e ela está sendo distribuída de uma maneira que exclui as mulheres solteiras com filhos. Não existe ainda nenhuma estratégia clara para identificar as necessidades, nem aplicar uma resposta adequada nutricional”, registra um informe da MSF publicado nesta semana. “Apesar da presença significativa de organizações internacionais – com abundância de especialistas e de publicações que mostram isso –, o povo de Gonaives ainda tem precisa ver benefícios. A temporada de furacões termina no final de novembro. Se outro atravessar a região com mais chuvas, moradores aqui pagarão mais uma vez um preço muito alto.”

Diante deste informe, entrevistei o porta-voz da MSF por e-mail. Gregory Vandendaelen explicou que a entidade é especializada no atendimento médico de emergência e que, mesmo após algum tempo dos desastres no Haiti, os casos críticos não diminuem. Entre os fatores está o atendimento impróprio da ajuda humanitária. “Não é só sobre a quantidade da ajuda, é mais sobre a forma como ela é organizada. Contra a desnutrição, por exemplo, não é a quantidade de comida que irá ajudar as crianças e, sim, a qualidade. Arroz, óleo e grãos farão pouco ou nada por eles. Precisam de alimentação terapêutica, rica em proteínas, vitaminas e nutrientes. O que denunciamos aqui é a falta de estratégia e prioridade”, disse. A MSF clama para que as organizações e o governo haitiano examinem imediatamente suas respostas de emergência e priorizem o amparo às crianças vítimas das inundações.

A crise dos alimentos no mundo piorou a situação do Haiti em 2008. Uma notícia do site oficial da Minustah de julho já mostrava o impacto da inflação. “Os preços de produtos como arroz, milho, farinha, açúcar, óleo, palhetas, as mangas têm crescido muito. O saco de milho estava em 400 gourdes no ano passado e agora subiu para 1050 gourdes (1 dólar = 37,50 gourdes). O arroz passou de 125 a 225 gourdes por saco”, afirma. Antes da crise alimentar, observa Stephanie Debere, da Oxfam, as pessoas comiam arroz, feijão e legumes. Agora os vendedores do mercado estão sendo forçados a abandonar a atividade, principalmente após a enxurrada de arroz subsidiado que chegou com a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI). O responsável da Coordenação Nacional para a Segurança Alimentar haitiano (CNSA), Gary Mathieu, estima que 3,3 milhões de pessoas enfrentam problemas para se alimentarem no Haiti após a passagem dos ciclones, que afetaram as safras e a produção agrícola.

No mundo, segundo a FAO, o Haiti se soma a outros 36 países que necessitavam de ajuda estrangeira contra a crise dos alimentos. Na América Latina, Haiti, Honduras e Haiti possuem a combinação explosiva de baixa renda e déficit na produção de alimentos. O último relatório oficial da ONU sobre o Haiti, que embasou a decisão do Conselho de Segurança de prorrogar a força de paz até 2009, indica que a produção nacional de alimentos e ajuda internacional não cobrem mais do que mais do que 43% e 5% de suas necessidades, respectivamente. Isso tem influenciado de maneira direta e intensamente na economia do país e nas condições de vida da população. O déficit comercial do Haiti aumento US$ 185 milhões (2,5% do PIB) durante os seis primeiros meses de 2008 por conta da alta dos alimentos. A inflação dobrou, alcançando 15,8% em junho do ano passado, ante 7,9% de todo o exercício de 2007.

Também repito aqui algumas propostas (minhas e de outras entidades) para ajudar na crise humanitária do Haiti. 1) Perdoar a dívida externa haitiana, sobretudo sua célula-mater em posse da França, antiga metrópole colonial que ganhou rios de dinheiro com a escravidão e ainda cobrou para reconhecer a independência da colônia; 2) Melhorar a produção local de alimentos com incentivos fiscais e reforma agrária, priorizando os pequenos agricultores; 3) Rever todas as negociações em curso do comércio mundial que aprofundam o abismo da importação de alimentos, o que funciona como uma espécie de dumping mundial contra o Haiti. 4) Ajudar a encontrar recursos com países doares para suportar o plano haitiano de combate à pobreza.

PS: este texto foi produzido para integrar as ações do Blog Action Day 2008, celebrado hoje no mundo todo com o tema “pobreza” ao mesmo tempo em que são feitas centenas de atividades do Dia Mundial da Alimentação.

Biógrafo e biografado retratam Cuba

Continuo aqui a recuperar alguns textos que fiz em algum momento do passado. Aqui vale registrar uma entrevista com o poeta, artista e agitador cultural Félix Contreras, o cubano que veio ao Brasil em 2003 para lançar a tradução em português de seu livro “Eu conheci Benny Moré” – biografia do gênio da música cubana, um multi-instrumentista e cantor que viveu o auge das melodias latinas. O livro era o gancho para se discutir a cultura de um país que sabia a dor e o prazer de ser revolucionário e autoritário. O texto foi publicado na editoria de Cultura do site Ciranda Brasil, saudosa e sensacional experiência que contou com a participação dos amigos Rodrigo Savazoni, Leonardo Sakamoto, Daniel Merli, Antonio Martins, Rafael Evangelista e Antonio Biondi. Segue sem mais delongas…

Benny Moré, o gênio da música cubana
O escritor e poeta Felix Contreras lança no Brasil a biografia do cantor

Os cantores cubanos mais populares no Brasil são com certeza Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e a turma mostrada em Buena Vista Social Club, de Win Wenders. Porém, chega ao Brasil pela editora Hedra, a biografia de um dos maiores cantores da história de Cuba: Benny Moré. Um fenômeno. E, mesmo que a metáfora brasileira seja forçada, muitos o comparam a uma mistura de Orlando Silva e Pixinguinha.

O escritor, poeta e pesquisador de música cubana Félix Contreras está no Brasil para o lançamento da tradução de Yo conocí a Benny Moré (Eu conheci Benny Moré). O livro é uma coletânea de artigos e depoimentos que mostram como a vida do guajiro de Santa Isabel de las Lajas transformou-se no gênio musical. A tradução foi feita por Lucio Lisboa, José Luiz de la Hoz e Alexandre Barbosa.

Ex-guerrilheiro e amante da Revolução, Contreras concedeu entrevista exclusiva à Ciranda Brasil. Como escreveu em La música cubana – una cuestión personal, o pesquisador reafirmou que sua obra conta a história da música a partir de seus protagonistas. Falou da influência do jazz e sua particular discussão com o crítico musical José Ramos Tinhorão.

Extremamente humilde, Contreras revelou que somente com o dinheiro da edição brasileira é que poderá comprar um computador para escrever. Fumante exagerado de charutos, o escritor nos deu também sua opinião sobre o atual momento cubano. Tempos em que o presidente George W. Bush discursa contra Fidel, dizendo que “não há mais espaço para ditaduras nas Américas”.

O senhor descreveu Benny como o expoente máximo da música popular cubana. Quais os elementos que o diferenciam? Como surgiu esse grande nome?
Em primeiro lugar, é um homem privilegiado pela natureza, tinha o dom para música. Se tivesse ficado apenas em seu povoado, sua história poderia ter sido outra. Mas, Benny tinha intuição também. E a intuição aguda é própria das pessoas especiais, dos eleitos da natureza. Benny tentou se estabelecer na capital Havana, sabendo que teria dom para o canto. O início do sucesso de Benny começa na emissora de rádio Mil Diez. Acredito, pelas minhas pesquisas, que não havia em 1941, nenhuma rádio parecida em toda América Latina. A Mil Diez transmitia a melhor música do mundo, não somente a de Cuba. Eram convidados os melhores músicos eruditos e populares. Privilegiou a música de um modo extraordinário. E Benny Moré era rato da Mil Diez, acompanhava dia e noite os ensaios e a programação da rádio, embora ainda morasse na rua. Até que Mozo Borgellá, grande músico e responsável pela revelaçãode Benny, convidou-o para um dueto. Começa o mito Benny Moré.

É nesse momento que ele faz sucesso no México?
Miguel Matamoros, criador do trio mais importante de Cuba (Trio Matamoros), precisava de um cantor para uma excursão ao México. Ouviu dizer que exisitia “um grande cantante” em Havana e foi ouvi-lo. Benny exibiu-se maravilhosamente. “Ele é melhor que eu”, exclamava Matamoros. Foram para o México, onde adotou seu nome artístico “Benny”, já que Bartolo, como era chamado em Cuba, significava “burro” nas gírias. México proporcionou o desenvolvimento musical de Benny. E por lá fez grande sucesso.

Cuba sofreu claramente a influência do jazz. Aqui, o crítico José Ramos Tinhorão rejeita essa mistura na música popular brasileira. O senhor concorda com esse purismo?
O jazz chegou na música cubana na década de 20, bem antes que surgisse a bossa-nova aqui. A entrada do jazz está ligada a burguesia compretida com o capital financeiro norte-americano. Isso foi bom para a música cubana. Para mim, assimilar novas culturas não é traumático nunca. A cultura que só vê a si mesma é pobre, um paradigma muito estreito da cultura. Eu conheço o Tinhorão e somos amigos. Ele foi até Cuba um ano atrás, mas brigamos feio, porque é muito dogmático. Uma pena porque é um pesquisador muito bom. Mas não dá para negar o valor da bossa-nova, dizer que é somente o fruto do imperialismo.

Há propostas brasileiras para novas traduções?
Agora, penso na biogradia do Bola di Nieve como um segundo lançamento. É uma figura mais conhecida aqui. Está na moda. Até um documentário sobre ele foi exibido no festival É tudo verdade. Bola di Nieve gravou músicas brasileiras. “O quindim de Yayá”, de Ary Barroso, por exemplo.

Qual sua visão do regime cubano hoje?
Aguardo sempre essa pergunta. Comentei com você, que só com o dinheiro da edição brasileira de Eu conheci Benny Moré é que comprarei um computador. Não temos dólares em Cuba. Nossa moeda não tem resposta comercial nenhuma. Nós vivemos heroicamente. Mas, de qualquer maneira, a minha opinião não coincide com a da maioria. Sou um caso especial. Meu compromisso com o regime cubano tem um elemento singular.

Eu vivia numa favela antes da Revolução. Tinha 20 anos. Sem pai e mãe. Minha mãe me abandonou. Era analfabeto. Minha família materna era muito ignorante, muito explorada e muito maltratada por um capitalismo cubano que era totalmente dependente dos Estados Unidos. Quando se diz que Cuba era uma colônia dos Estados Unidos, não é um exagero. Tenho um compromisso esse regime. Nem gosto de falar “esse governo”. Gosto de dizer “meu governo”.

O senhor foi guerrilheiro?
Sim. Sou um garoto que estava a vinte anos esperando e sonhando ir à escola, ter roupa, ter sapato, trabalhar minha inteligência. E um dia, para minha surpresa, veio um governo e me deu roupas, sonhos e uma bolsa para estudar na melhor escola de Havana. Então isso me dá uma outra visão da Revolução. Eu participei da guerrilha, porém não recebi nenhum privilégio por ter sido guerrilheiro. Nada. De qualquer modo, sou um homem muito beneficiado por esse governo. Não sou socialista pelos livros. Não conheço a Revolução Cubana por uma aula, por uma história. Sou socialista porque vivi os benefícios da Revolução.

Para mim, não há capitalismo que convença a substituição do socialismo em Cuba. Apesar de que precisamos adotar muitas posições complicadas (um pouco de economia americana, um turismo que não gostamos, que banalizou muitos artistas), mas meu passado e o meu governo não vou negar. Estamos em um momento difícil, a posição da dissidência política interna chegou a um ponto complicado. Os fuzilamentos foram um golpe muito grande para mim, um ato extremo, tomado num contexto político internacional, que está muito mais difícil. Mas, foi como a política, um mal necessário.

Dinheiro roubado por Baby Doc do Haiti


Esta é a cara jovial do ex-ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby Doc. Além de suas inúmeras acusações de torturas e assassinatos, ele também foi um grande e corrupto chefe de Estado. Estimativas do Haiti falam que ele teria roubado cerca de US$ 100 milhões. Desde de sua saída do país, em 1986, quando começou seu exílio, o Haiti tenta recuperar pelo menos parte desse dinheiro. Agora, mais de 20 anos depois, a Suiça divulgou que irá devolver US$ 12 milhões em recursos depositados no exterior antes do fim da ditadura. Baby Doc tem três meses para recorrer e tentar evitar a restituição dos recursos. Esta notícia me chegou via Le Nouvel Observateur.

Entrevista para a revista CartaCapital

Dei uma entrevista para a repórter Manuela Azenha, do site da revista Carta Capital. Ela abordou perguntas interessantes sobre a geopolítica e a soberania do Haiti. Coisa que muita gente se esquece de pensar. Copio aqui no blog a íntegra da entrevista e o link para uma galeria de fotos que eles fizeram a partir de imagens da Associated Press e da Agência Brasil. Segue:

“Haiti não é aqui”, por Manuela Azenha

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“Depois de quatro anos de ocupação estrangeira da ONU no Haiti, as tropas internacionais, sob o comando do exército brasileiro, continuam sendo renovadas. A missão de paz é uma intervenção militar, cujos objetivos no país se resumem a estabilidade política.

No entanto, o problema no Haiti, antes de ser militar, é econômico e social. A terra devastada é quase toda incultivável, a estrutura do Estado está desmoronada e quase 80% da população vive abaixo da linha de pobreza, com dois dólares por dia.

A missão de paz da ONU, chamada Minustah (sigla em francês de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), chegou ao Haiti em 2004, depois de o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide ser deposto pela segunda vez.

Nesse momento, sob o pretexto de defender a democracia no Haiti, soldados americanos com o apoio da ONU e da França instauraram o governo transitório, que foi substituído por René Préval, eleito presidente em 2006 com 51.21% dos votos de seus compatriotas, segundo dados oficiais.

Aloísio Milani, jornalista brasileiro que esteve quatro vezes no Haiti para escrever sobre a ação dos países latino-americanos na Minustah e o papel do Brasil na condução da estabilização do país caribenho, falou com CartaCapital sobre o assunto. A entrevista está dividida em duas partes: nesta primeira, Milani fala sobre a liderança militar brasileira e da forte intervenção norte-americana no País. Na segunda, explica a atual estrutura política, as perspectivas da disputa eleitoral e o plano de retorno das tropas.

CartaCapital: Como e porque o Brasil virou liderança militar das tropas no Haiti?
Aloísio Milani:
A questão foi uma proposição política, porque o cargo ali não é especificamente militar. Por mais que o presidente da República e o ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim neguem, o Brasil estava em momento de campanha para pleitear a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava apontar que era capaz de fazer a liderança de uma missão de paz. A proposta surgiu no Conselho de Segurança, em acordo com o então presidente francês Jacques Chirac. O resultado foi o maior contingente militar brasileiro fora do país depois da Segunda Guerra.

CC: Qual é o grau de intervenção dos Estados Unidos no Haiti?
AM:
O Haiti era uma república negra, se tornaria o segundo país independente do continente e a primeira república negra do mundo, não tinha uma forte relação diplomática com os EUA. Isso piorou quando invadiram o Haiti em 1915. Depois, apoiaram Papa Doc no início de sua ditadura, mas não foi algo constante. Em 1980, surgiu no cenário político Jean-Bertrand Aristide, representante de um movimento popular, o Lavalas, oriundo da teologia da libertação e dos movimentos de esquerda e que acaba eleito em 1991, mas logo é deposto por uma junta militar.
Os EUA, então, intervêm novamente, sob a administração Clinton, para recolocar Aristide no poder em 94, com a promessa de realizar novas eleições e a adotar uma política neoliberal.

CC: Como foi esse processo?
AM:
A política de abertura econômica foi o que acabou com a agricultura campesina haitiana. O país deixou de ser exportador para ser importador de arroz. Deixou de produzir açúcar em grandes quantidades e passou a importar até mesmo gêneros básicos. A esta altura, em 2004, os EUA já estavam de olho nas manifestações que aconteciam contra Aristide por conta do descontentamento com sua política neoliberal.

CC: Quais eram essas manifestações?
AM:
Há denúncias dos movimentos sociais haitianos de que o grupo armado que marchou a partir de São Pedro, na República Dominicana até a capital haitiana, para questionar a presidência do Aristide foi financiado pela CIA. Hoje, a embaixada norte-americana no Haiti é muito forte, talvez a que mais injete dinheiro na economia haitiana. Toda a cúpula de missão de paz da ONU lá tem uma relação direta com as decisões que os Estados Unidos querem. Há áreas da missão de paz que os EUA continuam controlando. Uma delas é a área da inteligência.

CC: Então na verdade os EUA é que são a liderança das tropas?
AM:
A minha visão é de que a situação do Haiti é uma resultante de várias forças diplomáticas e vários interesses. E que eles nem sempre vão de encontro aos interesses do povo haitiano. Os EUA têm interesse no Haiti pela mão-de-obra barata e também por ser um país muito próximo de sua fronteira na costa, o que provoca o ingresso de imigrantes ilegais nos EUA.
O Brasil tem interesse no Conselho de Segurança da ONU e para mostrar para a ONU que consegue liderar uma missão de paz de grande porte. A França tem um histórico de política muito intervencionista com suas ex-colônias.

CC: Qual seria a explicação para governos ditos progressistas como da Bolívia e do Equador mandarem tropas para o Haiti?
AM:
Todos têm interesses diplomáticos. E precisamos lembrar que é uma força de paz composta por soldados. Nenhum país da América do Sul vai querer deixar de participar disso como forma de participar da discussão diplomática. Os dois únicos países da América Latina que se colocaram publicamente, frontalmente, contra isso foram o Hugo Chávez na Venezuela e o Fidel Castro em Cuba. Os cubanos mandaram médicos e os venezuelanos também deram apoio em atendimentos básicos, mas num outro modelo. Eu vejo essa questão da Bolívia e do Equador também no sentido de não perder o bonde da diplomacia na região. Também existe uma disputa hegemônica na América do Sul e o Haiti nesse ponto é o único ponto de convergência.

CC: Em abril, quando houve aquela repressão violenta para impedir a manifestação contra a alta dos preços dos alimentos, o primeiro-ministro Jacques-Édouard Alexis caiu. Como está a estrutura política do país agora?
AM:
No último dia 25, o presidente Réne Préval anunciou Michele Pierre-Louis como primeira-ministra. Ela era presidente de uma ONG que trabalha no Haiti há muito tempo. Desde a manifestação pelo preço dos alimentos, o que acontecia era que uma série de indicações de Préval eram negadas pelo Congresso, o que alongava ainda mais a crise política. Uma das indicações foi o Robert Manuel, que tinha sido ex-chefe da segurança de Préval em seu mandato anterior. Ele é acusado por muitos movimentos sociais de ter promovido um massacre no Citeé Soleil. Havia um movimento forte de oposição a ele. A sua indicação foi negada por irregularidade em seus documentos. Agora René Préval indicou essa nova primeira ministra que também vai ser submetida ao Congresso.

CC: Você acha que Préval ainda tem legitimidade política? Ainda é uma referência institucional?
AM:
Acho que sim. Porque os problemas no Haiti são de diversas ordens. Ele foi eleito pela maioria, ainda tem legitimidade. A questão é que nem o governo dele e nem a missão da ONU conseguiram dar respostas para questões básicas da população como emprego, a economia que está longe de ser saneada, e, sobretudo a questão da violência.

CC: Quais são as perspectivas para as próximas eleições?
AM:
Existe uma grande expectativa em relação ao retorno do Aristide. Essa história está ensaiada há algum tempo, desde as últimas eleições de 2006, existia uma possibilidade da sua volta ao poder. Queira ou não, o Aristide é alguém que ainda leva multidões de apoiadores às ruas, sobretudo em Porto Príncipe e em bairros mais pobres. Acho que a grande expectativa é saber se ele vai voltar, porque isso poderia mudar os rumos nas articulações políticas do Haiti. De qualquer forma, outros candidatos, burocratas do Banco Mundial e do FMI, devem voltar a se candidatar. Eles representam o contingente de emigrantes que vivem fora do Haiti, principalmente no Canadá e nos EUA. No momento, a vantagem estaria com os apoiadores do Lavalas, que ainda são um grupo partidário forte no Haiti.

CC: É provável que Baby Doc retorne?
AM:
Ele tem problemas gigantescos lá, acusações internacionais de violações dos direitos humanos, está com sua fortuna seqüestrada internacionalmente. Tem uma pequena parte da elite que apóia o Baby Doc, mas ele não encontra legitimidade para disputar com vigor as eleições.

CC: Existe alguma proposta de alteração estrutural do país? Alguma mobilização ou candidato que proponha isso?
AM:
Esse foi o grande desafio das últimas eleições. Os governos sul-americanos estão tentando articular alguma indicação por lá, mas isso não funciona porque elas não nascem de maneira natural. Não existe um movimento de oposição, ou um grupo de partidos que faça uma coalizão para um desenvolvimento alternativo no Haiti. É tudo muito fragmentado e fica polarizado entre quem é a favor do Lavalas e quem é contra. A política é feita das migalhas dessa disputa.

CC: As tropas têm planos de retorno? O objetivo foi cumprido?
AM:
Eu acho que as tropas ficam no país pelo menos um ano depois das eleições. Isso está presente nos discursos dos representantes dos países. Aqui no Brasil, já disseram que ficam até 2010, 2011. Então a tendência é ficar, não há planos de retirada ainda. O que existe é a expectativa de uma mudança de perfil das tropas, passar de uma missão de segurança, de combate a grupos armados para uma missão que realmente ajude a reestruturar serviços básicos. Enquanto continuar assim, a missão vai continuar enxugando gelo no Haiti. E se o Brasil sair agora, os problemas que poderiam ter sido atacados vão continuar, assim como a instabilidade política e os conflitos armados. Esta já é a quinta missão de paz. O Brasil está liderando a parte militar da quinta. As outras quatro foram totalmente fracassadas.

CC: Você acha que o envio das tropas foi um erro?
AM:
Não, eu acho que foi um erro lá atrás, na força interina os EUA, Canadá, Chile e França terem tirado o Aristide de lá como se fosse ele o único culpado de todos os protestos. Peter Hallward, um filósofo norte-americano muito citado pelo Noam Chomsky para falar do Haiti, diz que essa foi talvez a intervenção norte-americana mais bem sucedida porque depois que eles saíram de lá, ficou parecendo que estavam certos quando afastaram o Aristide. Aqui, como no Iraque também, a ONU está entrando como bucha do canhão. O erro não repousa sobre a presença militar, mas sobre as intervenções anteriores.

CC: A retirada imediata das tropas é inviável?
AM:
Imediato é readequar o perfil da missão no Haiti. A retirada das tropas tem que ser num plano de saída sustentável. Em um ou dois anos, mas com a polícia nacional reestruturada, com a presença de atores que entrem em defesa da democracia e não dos interesses de um ou de outro no Haiti.

CC: O que resolveria o problema do Haiti?
AM:
É preciso ajudar o processo de desarmamento, pois ainda existem estruturas de grupos armados, de diferentes motivações. Como gangues ligadas ao narcotráfico, os ex-militares, os chimères e partidários e opositores de Aristide. A segurança institucional é frágil com esse cenário. Também é preciso ajudar na estruturação do Estado haitiano, para que instituições e serviços públicos funcionem dignamente. Mas é preciso, sobretudo, ajudar a economia do Haiti, auditando e perdoando a maior parte da dívida externa do país, que amarra a capacidade de investimento haitiano. Sem isso, o tão falado desenvolvimento econômico será uma pequena esperança, uma longa caminhada para retirar a camisa de força que o Haiti tem.”

No mapa Flickr, uma galeria sobre o Haiti

Há algum tempo tenho navegado pela ferramenta “mapa-mundi” do Flickr, uma sensação ótima de estar viajando pelos olhos dos outros. Um vouyer internético. Então, compartilho com os leitores o mapa do Haiti com as fotos atuais de lá, produzidas por profissionais e pessoas comuns. Deixo em destaque a página do fotógrafo chileno Sebastian Utreras, com ótimas imagens em preto e branco. E também Dan Gerding, com um trabalho ótimo de luz.

A violência semelhante entre Brasil e Haiti

Assim é a situação diante dos resultados de uma metodologia apresentada pela Vision Humanity, na Inglaterra, que compila em indicadores um ranking da violência pelo mundo. No caso da América Latina, Colômbia, Venezuela e Haiti estejam classificadas na categoria “situação de paz muito baixa”, o Brasil está bem perto. A diferença no Índice Global de Paz 2008 entre as posições do Haiti e do Brasil são de 19 posições. Apesar de estar na pior situação, a posição haitiana está mais próxima da brasileira do que da colombiana, o pior quadro latino-americano. A metodologia do estudo não responde, porém, qual o impacto da atuação da ONU no Haiti e da política de segurança pública brasileira.

Imagens do Haiti da época do golpe de 1991

Navegando pelo Flickr, encontrei uma série belíssima de imagens do fotojornalista Antonio Zazueta Olmos, que registrou a vida do Haiti na época do golpe militar de 1991. Este golpe derrubou o presidente eleito Jean Bertrand Aristide e instalou uma ditadura militar. Se ficou com água na boca ou nos olhos com as fotos, veja a íntegra no álbum dele no Flickr.

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Confesso que a série é uma das coisas mais impressionantes que já vi esteticamente sobre a realidade do Haiti. Duas fotos me pegaram sem dó. 1) A que o jovem fecha o peito com seus próprios braços à frente de uma porta vermelha, uma espécie de metáfora com um país acuado pelo golpe; 2) A que um menino segura um pássaro num cais do mar caribenho.

Haiti entra em grupo paralelo à OEA

Naquela mesma reunião em Santo Domingo, na República Dominicana, em que Uribe, Corrêa e Chávez bateram boca sobre a invasão do território equatoriano para caçar as Farc, uma notícia passou desapercebida. O Haiti, que viveu nas últimas décadas sangrentas ditaduras e uma instabilidade política constante, ingressou formalmente para o Grupo do Rio, entidade paralela à Organização dos Estados Americanos (OEA). Reproduzo trecho da matéria da Reuters.

O Haiti foi largamente excluído dos grupos regionais em meio às décadas de caos político, ditaduras e governos militares. O país foi aceito em 2002 na comunidade caribenha Caricom, grupo econômico que reúne principalmente nações e territórios de língua inglesa.A eleição do presidente Rene Preval em 2006 contribuiu para estabilizar o Haiti, dois anos depois de o líder populista Jean-Bertrand Aristide ter sido deposto por uma rebelião de grupos armados e ex-membros do Exército.

O Grupo do Río foi formado em 1986 no Rio de Janeiro para representar os interesses latino-americanos, como uma alternativa à Organização de Estados Americanos (OEA), dominada pelos Estados Unidos.O grupo inclui Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

Na Wikipedia, tem mais algumas informações.

O Grupo do Rio não possui secretariado permanente e funciona com base em reuniões de cúpula anuais. As suas decisões são adotadas por consenso. Foi originalmente criado para substituir o Grupo de Contadora (México, Colombia, Venezuela e Panamá) e o Grupo de Apoio a Contadora (Argentina, Brasil, Peru e Uruguai), com o nome de “Grupo dos Oito”; em 1990, adotou o nome Grupo do Rio.

Haiti é machista na vida política

No país caribenho, um dado sobre a vida política mostra a desigualdade de gênero. O Haiti tem apenas 4,1% de seu Parlamento constituído por mulheres. São 4 legisladoras ao lado de 94 homens. Essa proporção coloca o Haiti na 125º posição de uma lista de 192 países pesquisados pela União Interparlamentar, entidade com sede em Genebra.

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Uma reportagem da BBC sobre o estudo relata que apenas 20 países em todo o mundo têm mais de 30% de mulheres entre seus deputados. Na América Latina, destaque para a participação das mulheres na vida política da Argentina (40%), Costa Rica (37%) e Cuba (36%).

Este post sai um pouco atrasado em relação ao Dia Internacional da Mulher, mas vale o registro. Deixo o link de uma galeria de fotos do site oficial da força de paz da ONU no Haiti (Minustah) em comemoração ao dia internacional. Detalhe: não existe uma foto sobre a vida política das mulheres haitianas.

Obs.: O dado sobre o Haiti na reportagem da BBC está errado pois conferi no estudo original. Eles citam que o Haiti tem 11,1% de participação de mulheres, quando o dado correto é 4,1%. Se fosse como eles dizem, a situação haitiana estaria melhor que o próprio Brasil, hoje com 9% de mulheres no Parlamento.

O que Celso Amorim disse…

Mais uma da série sobre opiniões de autoridades, pesquisadores e intelectuais sobre a situação recente do Haiti. Deste vez, procurei os argumentos do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, um dos principais articuladores da presença do Brasil na Minustah. É ele quem articula, junto ao secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães, as posições sobre o futuro do Brasil na ONU e no Haiti. Seguem:

A missão do Haiti não foi feita com esse objetivo (de favorecer a obtenção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU). Ela faz parte de uma preocupação brasileira. A situação de total insegurança de um país da América Latina é algo preocupante. Não podemos ficar dizendo que somos contra uma ação porque não tem o aval da ONU (se referindo ao Iraque) e quando tem o endosso (no caso do Haiti) lavar as mãos. Se isso vai contribuir para o Brasil ser membro permanente no Conselho ou não, não sei. A paz tem um preço. Ou você vai e atua, ou você vai pagar sob a forma de dependência, de menor influência política. O Brasil é um país importante no cenário internacional e temos que dar uma contribuição. (2004)

No Haiti há questões de pobreza, de criminalidade, e de política. Uma combinação explosiva por natureza. Não creio que a repressão indiscriminada seja a melhor maneira de lidar com essa situação. (2005)

Muitas vezes repeti que o sucesso da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti se baseia em três pilares interdependentes e igualmente importantes: a manutenção da ordem e da segurança; o incentivo ao diálogo político com vistas à reconciliação nacional; e a promoção do desenvolvimento econômico e social. (2005)


Deu empate na revanche

Continua aqui a maior e única cobertura em português dos amistosos entre as seleções de futebol da Venezuela e do Haiti. O segundo jogo da série foi um empate em 1 a 1. Desta vez no estádio olímpico de Puerto La Cruz. Quem marcou primeiro foi o Haiti, com Brunel Fucien, que deu um chute rasteiro que surpreendeu o goleiro venezuelano Leonardo Morales. A Venezuela só empatou aos 31 minutos do primeiro tempo. Rondín aproveitou o descuido da zaga haitiana e cabeceiou para o fundo da rede.

Haiti 0 x 1 Venezuela

Como prometi, aqui estão as informações do amistoso entre as seleções de futebol do Haiti e Venezuela. A única cobertura brasileira com mais de três parágrafos (!). Em meio ao carnaval e as discussões sobre a política entre Venezuela e Colômbia, o amistoso aconteceu no Estádio Monumental, em Maturín, aquele mesmo que viu três gols de Robinho em julho do ano passado.

O resultado final foi 1 a 0 para a Venezuela com gol de Zurdo Rojas ainda no primeiro tempo. Pelo que pude ouvir em transmissão de rádio via internet, o jogo não foi lá essas coisas. Aliás, nem esperava isso. O público foi de 32 mil pessoas, segundo apuração da Agência Bolivariana de Notícias. O Haiti ainda tentava contra-ataques rápidos mas não conseguiu marcar.

ABN

O elenco da “Vinotinto”, como é chamada a seleção na Venezuela, foi inovador na primeira partida do novo técnico César Farias: Leonardo Morales, Dickson Díaz, Grenddy Perozo, Gabriel Cichero, José Granados, Evelio Hernández, Franklin Lucena, Tomás Rincón, Jorge “Zurdo” Rojas, Emilio Rentería e Armando Maita.

O time haitiano que entrou em campo – Fenelon Gabart, Frantz Gilles, Bruny Pierre Richard, Windsor Noncent, Romaní Genevois, Frantz Bertin, Alain Vubert, Meter Germain, Charles Davidson, Alcénat Jean Sony y Abel Thermeus. Dois dos titulares jogaram contra o Brasil, em 2004.

As duas equipes estão disputando as eliminatórias regionais da Copa do Mundo. A Venezuela na disputa da América do Sul está em quinto lugar, com quatro jogos, duas vitórias e duas derrotas. Com técnico novo, a seleção tenta se aprimorar para a próxima fase da competição que dá acesso à Copa de 2010 na África do Sul.

O Haiti entra somente na segunda fase das eliminatórias da América Central, do Norte e Caribe. Jogará seu primeiro jogo com o vencedor de Nicarágua e Antilhas Holandesas. Veja aqui minha análise sobre as chances do time se classificar para a Copa. O último campeonato do Haiti foi a Copa Ouro, da qual foi eliminado por 2×0 pelo Canadá.

Veja o histórico e os próximos jogos dos dois times. Dia 6 tem o segundo jogo.

Já pensou em falar creoule? Eu sim…

No blog do Deak, li um comentário da Paula Skromov, integrante do Comitê Pró-Haiti Brasil, sobre uma instituição em São Paulo que dá aulas de creoule haitiano. Isso é que é intercâmbio cultural. A Sala Sequoia ensina também guarani, aymara, quechua, yorubá. A seguir um resumo da aula de creoule.

As aulas são ministradas pelo prolífico professor Firto Regis. Ele é natural de Cap Haitien, ao norte do Haiti. Nas aulas, ele comenta as pequenas diferenças existentes entre o kreyòl do norte e do sul do país, e também as diferenças entre a elite rica e a maioria da população.

Agora, que moro e trabalho em São Paulo, vou checar os horários para ver se entro na turma. Até porque só ensaio algumas palavras do creoule. 🙂

Desaparecido no Haiti há mais de cinco meses

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Foi notícia no Haitianalysis.com o crescimento de apoio internacional para a busca de notícias do ativista haitiano dos direitos humanos, Lovinsky Pierre-Antoine, seqüestrado em agosto de 2007. Há uma petição de apoio à iniciativa na internet e também uma recente nota da Anistia Internacional sobre o assunto. Ele trabalhava com vítimas dos golpes de Estado, como considerava os eventos em 1991 e 2004 que derrubaram Jean Bertrand Aristide. Era um crítico da ação internacional e das forças da ONU. Aqui segue um link com uma entrevista sua em inglês antes da ação das tropas em Cité Soleil.

O longo caminho de saída da missão de paz

O chefe da missão de paz da ONU no Haiti, o tunisiano Hédi Annabi, esteve no Brasil esta semana para discutir os desafios da ação internacional no país mais pobre das Américas. Com ele estão as chaves para descobrir quais podem ser as possíveis alterações na missão e seu planejamento de saída do país. Este último, sinceramente, nunca houve. Publicamente, sempre se adiou essa discussão, ano após ano. Mesmo após a vitória do presidente René Préval.

José Cruz/ABr

Pelas falas registradas pela imprensa durante uma conferência em Brasília, não houve novidades nesse planejamento (ou na sua ausência). Há a intenção se ampliar a participação de policiais civis, continuar o treinamento da Polícia Nacional do Haiti (ainda despreparada, violenta e corrupta), fiscalizar as fronterias e manter o efetivo militar por cerca de cinco anos mais. Novamente se registrou a urgência da reforma do judiciário, mas sem nenhum indicador claro.

Leia reportagens do NYTimes e da Agência Brasil.

Haiti, um grande entreposto comercial?

Sempre me pergunto qual será o futuro do Haiti – esse país miserável, com florestas e agricultura devastadas, sem petróleo ou minérios. Será que o modelo de desenvolvimento passa por maquiladoras, zonas francas de produção com exploração da mão-de-obra? Será um território cuja produção é controlada por multinacionais? Ou manterá um nível de corrupção e tirania por ciclos viciosos?

Hoje, li uma notícia do USA Today que me alertou para uma pista, que há tempos venho farejando. O Haiti pode ser, como a República Dominicana e a Jamaica são, um grande entreposto comercial. Uma região portuária internacional de baixos custos. Seu litoral possui águas profundas para a navegação de grandes embarcações, que passem ou não pelo Canal do Panamá. A “estabilidade” do Haiti interessaria a muitos países.

É com essa idéia na cabeça que li as declarações do presidente René Preval durante discurso anual no Congresso. “O Haiti deve reformar o seu sistema aduaneiro cheio de corrupção e incentivar os investimentos para retirar o conturbado país do Caribe da pobreza”. Segundo ele, os impostos sobre o transporte marítimo de containers de 40 pés chegam a US$ 900, ou seja, três vezes mais do que na vizinha República Dominicana.

O que Préval e a reportagem não explicam é: aumentar o fluxo garante riqueza para o país? Esse dinheiro vai ser dividido como? Sem respostas assim, a proposta pode servir como uma luva ao “fluxo de caixa” das grandes empresas e abrir mais um ralo de exploração dos haitianos.

O Haiti Innovation também puxou a matéria com um comentário que pede mais transparência no combate à corrupção e com apoio à proposta. Será que é o caminho? 

Venezuela contra Haiti… no futebol

Na preparação para as eliminatórias da Copa do Mundo, a Venezuela marcou dois amistosos em seu país contra o time do Haiti. O primeiro no Estadio Monumental de Maturín, no dia 3 de fevereiro, e o segundo em José Antonio Anzoátegui de Puerto La Cruz no dia 6. A notícia foi confirmada pela Federação Venezuelana de Futebol. Segue o calendário da primeira fase da Concaf. O Haiti só entra na segunda fase. O resultado você confere com exclusividade aqui no blog, porque acho que nenhum outro veículo vai cobrir.

Revolução negra, a independência do Haiti

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Também saiu publicada hoje uma reportagem que fiz sobre a independência do Haiti para a revista História Viva. Chama-se “Revolução negra” e conta como foram as revoltas dos escravos a partir de 1791 sob a influência da Revolução Francesa. Li um monte de livros sobre o assunto, mas a principal referência é “Jacobinos negros”, de Cyril Lionel Robert James. A íntegra do texto está na página da História Viva, abaixo o abre da matéria:

O trabalho na cana era extenuante e desumano. Por décadas, a colônia francesa de São Domingos sustentou um dos mais lucrativos negócios do Novo Mundo com o chicote apontado para o corpo dos escravos africanos. Os negros cavavam valas para o plantio das mudas, cuidavam dos brotos, zelavam pelo crescimento, faziam a colheita e toda a fabricação do açúcar.

Os lucros dependiam da exploração do trabalho. A manutenção da escravidão pelos donos de engenho se baseava em castigos brutais e tinha um nível de perseguição implacável. Os relatos da época descreviam que as punições das chibatas eram mais comuns do que receber comida. Mutilavam-lhes membros, orelhas e genitais; faziam-nos comer excrementos; amarravam-lhes grilhões e blocos de madeira; prendiam-nos a postes fincados no chão.

A tortura sistemática originava, não sem razão, uma sede de vingança. E este foi um dos motivos da revolta que seria iniciada em 1791 e conformou a única rebelião vitoriosa de escravos desde a Antigüidade clássica. A independência do Haiti, proclamada em 1804, só nasceu por causa dela.

A revista também fez na edição online e impressa uma citação ao documentário Bon Bagay Haiti, como parte das pesquisas atuais sobre o país mais pobre das Américas.

O que você poderia saber antes sobre Haiti

Não gosto de cabotinismo, mas blog também serve para dizer o que estamos fazendo. Em dezembro agora, o Senado Federal aprovou o nome do diplomata Igor Kipman para ser o novo embaixador do Brasil no Haiti. O país mais pobre das Américas é um dos focos principais da política externa brasileira. E Kipman sabe disso há tempos.

Na época da Agência Brasil, ao contrário do que dizia do professor Bernardo Kucinsck, que, dentro e fora do governo, adorava criticar nossa cobertura do tema, nossas reportagens mostravam essa realidade. Fiz uma entrevista com Kipman, um dos maiores conhecedores da realidade haitiana. Explico o porquê…

Qualquer jornalista que procurasse um diplomata para explicar o tema no início da missão de paz da ONU, se deparava com os clichês dos mais variados. “Solidariedade”, “liderança regional”, “contraponto ao modelo dos EUA”, tudo vinha. Os problemas do Haiti, ninguém explicava. Kipman, como poucos do Itamaraty, sabia o que dizia mesmo aqui no trabalho de escritório de Brasília.

Deixo aqui os links (texto 1, texto 2, texto 3) para os interessados na primeira matéria na imprensa brasileira que explicava a situação das futuras eleições no Haiti após a queda de Jean Bertrand Aristide, em 2004. Kipman foi observador do governo brasileiro nas eleições junto com o então embaixador Paulo Cordeiro.

A escravidão dos negros nos EUA e o Haiti

Em janeiro, publico na Revista História Viva uma reportagem sobre a independência do Haiti. Li dois livros inteiros e duas dezenas de capítulos isolados sobre a escravidão na América Latina para fazer o texto. Jacobinos Negros, de C. L. R. James, a história socialista da Revolução Francesa, de Jean Jaurès, até o cubano Fernando Ortiz. Não usei todos. Parte vai mesmo para o livro-reportagem. No início de 2008, coloco o link do texto no blog.

Mas me lembrei dessa reportagem por conta de um texto que li no New York Times. Eric Foner, professor da Universidade de Columbia, escreveu um artigo sobre os 200 anos da proibição da importação de negros para a escravatura nos Estados Unidos, que será lembrado agora em 1º de janeiro de 2008. A revolução de São Domingos, como é conhecido o nascedouro da república haitiana, influenciou e trouxe temor para os escravocratas norte-americanos.

O historiador John Hope Franklin escreveu, em “Da escravidão à liberdade”, que os norte-americanos ficaram horrorizados diante das notícias do que acontecia no Haiti. A partir de 1791, “muitos preocuparam-se mais com os acontecimentos no Haiti do que com a luta de vida ou morte que se desenvolvia entre França e Inglaterra”. Na época, França e Inglaterra estavam na rota de conflito por conta da disputa comercial da burguesia.

Em “Forgotten Step Toward Freedom”, Foner faz um comentário sobre essa época. Tempo em que os escravos da ilha de São Domingos iniciaram uma revolta tão violenta quanto suas próprias chagas, mas em busca da liberdade.

“Heróis do HIV” no Caribe

Está no boletim do blog Narua, do Paulo Fehlauer, o link para um especial jornalístico sobre o combate ao HIV no Caribe, publicado pelo PalmBeachPost (que, sinceramente, eu desconhecia). Inclui a situação do Haiti, onde, como já citei aqui, o vírus da Aids atinge 2,2% de mulheres e 2% entre os homens, o maior índice das Américas. O título do especial é “Heroes of HIV”. Meu destaque é a seqüência de imagens sobre a doença dentro dos presídios.

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O país negro conseguirá ir à Copa da África?

Não, não é do Brasil que estou falando. É outro país negro: o Haiti. Eles só foram a uma Copa, a de 1974, na Alemanha. Na primeira fase tiveram três derrotas seguidas – Itália (3 a 1, de virada), Polônia (7 a 0, sem comentários), e Argentina (4 a 1, a pá de cal). Mas foi o maior feito da história de sua equipe, que voltou para casa ovacionada. Ainda era época da longa ditadura de “Papa Doc” e “Baby Doc”. Nunca mais conseguiram chegar à disputa mundial. Nas últimas eliminatórias, por exemplo, os haitianos foram desclassificados pelo time da Jamaica.

O time haitiano que foi à Copa de 1974

Imaginem o que seria para o Haiti ir para uma Copa na África do Sul? Como o país ama futebol, seria quase uma diáspora às avessas. No país caribenho, há vários times pequenos. Muitos jogadores atuam nos Estados Unidos. Seus campeonatos sofrem com a instabilidade política. Em 2004, por exemplo, quando houve a queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide e a missão de paz da ONU começou, o campeonato nacional foi cancelado por falta de segurança. A infra-estrutura é precária. Antes do jogo com a seleção brasileira, o estádio Sylvio Cator, em Porto Príncipe, estava em frangalhos.

Vou fazer minha análise futebolística (!). São três vagas certas e uma repescagem. E 35 países em disputa. Historicamente, as eliminatórias da América do Norte, Central e Caribe são dominadas por México e Estados Unidos. Haveria uma brecha para tentar disputar outras duas vagas, incluindo uma possível repescagem com times sul-americanos. Costa Rica e Jamaica têm evoluído um pouquinho (?), então Haiti teria que comer pelas beiradas. O problema é que os haitianos quase não treinam juntos. E a disputa começa por mata-mata. Se forçar, dá.

Em uma de minhas idas a Porto Príncipe, naquele jogo com a seleção brasileira em agosto de 2004, comprei minha camisa para torcer. É azul forte com um símbolo da confedereção entre dois coqueiros caribenhos. Os fanáticos como eu que passarem por este blog podem acompanhar os resultados pelo site da Concacaf. O primeiro jogo é Haiti contra o vencedor de Nicarágua e Antilhas Holandesas. Vai ferver, não?

Mais uma de vodu pela web

Minhas andanças pela web insistem em parar em fotos de vodu haitiano. Aqui está o link de uma produção do fotógrafo Jean-Claude Coutausse, da National Geographic, numa reportagem chamada “Dançando com espíritos”, de 1995. Também sobre o mesmo trabalho, achei o site pessoal do Coutausse com mais fotos. É uma boa amostra.

Jean-Claude Coutausse

O novo chefe da missão no Haiti

Esse é o rosto branquinho do novo chefe da missão de paz da ONU no Haiti. A partir de agora, o tunisiano Hedi Annabi passa a ser o responsável por todas as decisões no país caribenho. Investimentos, operações militares, atuação da polícia civil, ações humanitárias, relação com o governo etc.

Primeiro foi o chileno Juan Gabriel Valdez, que foi substituído pelo guatemalteco Edmond Mulet, e agora por Annabi. Uma de suas primeiras entrevistas à imprensa foi essa aqui à AP, reproduziada pelo jornal Miami Herald. Segundo ele, as tropas ainda vão ficar no Haiti “muitos anos”, porque o país ainda não consegue tomar conta de sua própria segurança.

“A situação de segurança é extremamente frágil. E se tivéssemos de reduzir drasticamente [a atuação das tropas], não haveria um vazio que seria imediatamente substituído pelas mesmas pessoas que estavam lá quando nós começamos”, afirmou Annabi enquanto falava sentado em seu escritório nas colinas da parte alta de Porto Príncipe.

Quando lhe perguntaram quanto tempo a criação da polícia própria haitiana pode demorar, Annabi disse: “Você não cria uma força de segurança, uma força policial, em dois ou três anos… leva 10, 15, 20 anos”. Ou seja, a perspectiva política da ONU no Haiti é longa.

É bom lembrar que, nos últimos 15 anos, já foram cinco missões de paz. Essa se alongará, pelo menos, até as próximas eleições lá. Até 2011. Não tenho dúvida.

A saúde (ou falta dela) no Haiti

Um dos sintomas da pobreza é a saúde. Quando usamos, para o Haiti, a expressão “país mais pobre das Américas”, esse rótulo tem lastro claro, visível e aferível – embora todas as estatísticas sejam frágeis. Essa situação repousa na carência brutal de assistência básica à saúde. O Haiti está na categoria dos países pobres altamente endividados economicamente, e suas taxas de mortalidade materna e infantil são as mais altas do continente – dois principais indicadores sociais. O modelo de atenção à saúde é todo pago, o que gera uma exclusão concreta para a maioria dos desvalidos – 55% das pessoas vivem abaixo da linha de extrema pobreza, recebendo menos de US$ 1 por dia.

O relatório Saúde nas Américas 2007, lançado na última conferência internacional da Organização Panamericana de Saúde (Opas) e ainda pouco explorado na imprensa brasileira, traz dados sobre a situação haitiana. “Quarenta e sete por centro da população não têm acesso básico à saúde; 50% não têm acesso a medicamentos básicos. Uma consulta médica que custava 25 gourdes haitianos no final dos anos 1980, agora custa 1.200 – 48 vezes mais”, aponta o documento. “Oitenta por cento procuram cuidados de curandeiros tradicionais. Para muitos haitianos, a necessidade de pagar antes de receber tratamento acaba com sua obtenção de qualquer cuidado de saúde.”

Das vezes que estive no Haiti, vi isso mais de perto na primeira viagem, às vésperas do jogo da seleção brasileira. À época entrevistei, numa Cité Soleil ainda sitiada, a faxineira Magalie Foufoune, cuja história contei rapidamente numa reportagem da Revista Democracia Viva, do Ibase. Ela dizia que precisava pagar para ir ao médico. Dois de seus oito filhos haviam morrido antes dos cinco anos. E ela e sua mãe, dois anos depois quando voltei a Porto Príncipe, já estavam mortas por pneumonia e problemas gástricos. Lá no especial Bon Bagay Haiti os entrevistados reclamam da falta de hospitais também.

Abaixo, mais alguns números da pesquisa sobre o Haiti:

  • 1 em cada 12 crianças haitianas morre antes de completar cinco anos
  • cobertura de vacinas para crianças de até dois anos era de menos de 50%
  • em 2003, a Aids foi a principal causa de morte entre 20 e 49 anos
  • epidemia de Aids – 2,2% de mulheres infectadas e 2% entre os homens
  • 523 mães haitianas morrem a cada 100 mil nascidos vivos

UN Photo/Marco Dormino

Mãe haitiana leva filha para consulta gratuita no batalhão do Sri Lanka, da ONU, em Porto Príncipe

ONU aprova reforço nas fronteiras do Haiti

Nesta sala da sede da ONU, onde a mesa de reuniões tem um formato de ferradura e apenas cinco países têm direito à veto sobre questões da paz mundial, aprovou-se a nova resolução (1780) que prevê mais um ano de mandato para a missão de paz no Haiti. Quase todos os pontos foram adiantados em uma reportagem da Agência Brasil na semana passada.

O principal deles foi reafirmado nesta segunda-feira (15) – a recomendação de reforçar a fiscalização das fronteiras. “A missão vai reduzir sua presença militar em áreas rurais e urbanas calmas e realocar equipes militares para estabelecer patrulhas nas fronteiras marítimas e terrestres”, registra o texto.

Li em uma reportagem do La Nacion, da Argentina, que dois barcos do país vizinho já seguiram para o Haiti para ajudar nessa função. “O governo [argentino] decidiu enviar dois barcos à ilha caribenha para combater o narcotráfico. Assim anunciou nos últimos dias a ministra da Defesa, Nilda Garré, a seu par chileno José Goñi Carrasco. A intenção oficial é se somar a uma esquadra naval sul-americana de doze navios, que vão operar na região antes do final do ano”, dizia o texto.

“A região sul do Haiti é apontada como escala do tráfico de drogas aos Estados Unidos”, prossegue. “Diante de uma situação quase controlada na segurança nas ruas, a força internacional sob o mandato das Nações Unidas buscará agora bloquear o fluxo marítimo de mercadorias de grupos narcotraficantes e contrabandistas.”

UN Photo/Ryan Brown

 

Missão fica no Haiti até outubro de 2008

A renovação da missão das Nações Unidas no Haiti era certa, todo mundo sabia – comentei isso num post anterior. A questão era saber por quanto tempo e se haveria alguma mudança. Os capacetes-azuis, sob a liderança do Brasil, ficarão no Haiti pelo menos até outubro de 2008. A decisão saiu das reuniões prévias do Conselho de Segurança no dia 10.

Na Agência Brasil, eu e a Ana Luiza Zenker fizemos uma matéria com esse furo. Entrevistamos, em primeira mão, um dos integrantes da missão brasileira na ONU, o ministro Paulo Tarrisse. O rascunho da nova resolução aponta recomendações para o combate ao tráfico de drogas e a fiscalização das fronteiras marítimas e terrestres.

Houve pequenas mudanças no perfil da missão. Uma delas será a redução de 140 soldados do limite máximo do contingente militar – de 7.200 para 7.060 – e um aumento no teto do contingente policial para 2.091. Essa era uma das recomendações do último informe do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

“Na prática, isso não afetou o componente militar, porque nunca se chegou a 7.200. Na questão policial, foi aumentada porque acredito que o problema hoje é muito mais de [garantia de] lei e ordem. A ONU pediu mais policiais porque eles têm uma interação maior com a população e têm outro tipo de finalidade em relação ao componente militar”, explicou o diplomata brasileiro.

UN Photo/Devra Berkowitz

Atualização (15/10/2007): essa matéria teve uma boa repercussão na imprensa neste final de semana. Vários jornais copiaram as informações ou registraram o temas em pequenas notas, alguns sem crédito, como receita o chupa-chupa desordenado da internet. Alguns deles – Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Jornal de Brasília, O Estado de S.Paulo e Zero Hora.

Onde estão os ex-ditadores?

Argentina, Bolívia, Equador, Haiti e Venezuela debatem formas de trazer de volta do exílio seus ex-ditadores para julgar casos de corrupção ou violações dos direitos humanos. Cito aqui outra matéria do New York Times, mais uma vez. Até porque só eles tem feito, nos últimos 15 dias, matérias legais envolvendo o Haiti.

O bom gancho é o caso do Haiti, cujo novo governo eleito democraticamente tenta recuperar a fortuna em recursos públicos “levados” com o ditador Baby Doc, hoje exilado na França, ex-metrópole na época colonial. O filho Duvallier manteve a “ditadura vitalícia” do pai e a repressão dos ton ton macoute, o braço militar repressor do governo.

Além de Baby Doc, outro ditador haitiano é general Raul Cedras, que deu um golpe militar e derrubou Jean Bertrand Aristide na primeira eleição democrática pós-ditadura. Estimativas é que mais de 5 mil pessoas, sobretudo os aliados do partido Lavalas, de Aristide, foram executadas nesta última ditadura do país.

Vale ver o infográfico com o “cara-a-cara” dos ex-ditadores exilados. Procurem aí. É como na brincadeira proposta pelo escritor Martin Handford com o Wally. Onde estão os ex-ditadores?

 

 

 

O preço do açúcar, um filme sobre o Caribe

Quem leu o relatório dos auditores fiscais que flagraram trabalho escravo na fazenda Pagrisa, no Pará, pode começar a ver semelhanças com esse filme dirigido pelo diretor Bill Hane, que está sendo exibido nos Estados Unidos. O New York Times publicou uma reportagem sobre o documentário “The Price of Sugar”. O vídeo mostra os haitianos, que, seduzidos pelo trabalho, ficam submetidos às condições de servidão nas plantações de cana-de-açúcar da fronteira da República Dominicana.

Walter Astrada/Divulgação

“Cada ano, quando a colheita da cana se aproxima, cerca de 20 mil trabalhadores haitianos são recrutados com a promessa do trabalho constante e de pagamento mais elevado do que podem ganhar no Haiti, o mais pobre dos dois países. Com a cumplicidade de autoridades militares e de imigração, o filme conta como estes imigrantes são carregados em caminhões, têm seus documentos de identificação confiscados e são transportados no meio da noite até os ‘bateyes’, onde muitos ficam abrigados dentro de quartéis parecidos com os campos de concentração. A estimativa da população de haitianos sem documentos que vivem no campo variam de 650 mil a 1 milhão”, diz o texto do jornal.

Veja a seguir o trailer do filme.


Ah, até procurei com a produtora, mas não encontrei a informação se o filme vai chegar no Brasil. Mas no site da produtora tem um contato para organizadores de festivais. Se alguém quiser procurar, pode entrar .

Linhas cruzadas, água turva

Há tempos tenho lido linhas cruzadas nos jornais brasileiros comparando a ação dos soldados das Nações Unidas no Haiti com a possibilidade de agir contra a violência no Rio de Janeiro. A coisa começou a crescer na imprensa após perguntas provocadas pelas jornalistas Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo, e Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, na recente visita do ministro da Defesa, Nelson Jobim, ao país caribenho.

Estava lá e vi como o tema surgiu. Em meio a uma conversa rápida, sem um aprofundamento, o ministro respondeu reativamente ao tema. O assunto rendeu por dois dias aqui no Brasil, assim com matéria recheadas de hipóteses, sem contextualização sobre uma possível confusão entre as regras jurídicas para da “guerra” e “ações policiais” em conflitos internos.

Marcello Casal Jr./ABr

Na última quarta-feira (3), o colunista Merval Pereira, de O Globo, também descobriu o assunto. Escreveu uma coluna elogiosa ao pensamento do ministro Nelson Jobim no programa Roda Viva. “Ao mesmo tempo em que se declarou favorável a essa atuação, mostrou os passos que têm que ser dados até que se chegue a uma nova estrutura legal que permita a atuação eficaz dos militares nos conflitos internos”, disse.

O pulo do gato é que há regras para duas situações jurídicas. Uma para ações de Garantia de Lei e Ordem (GLO), previstas por doutrinas policiais, que mostra como se responde a conflitos armados internos. O segundo conjunto de regras é sobre o direito à guerra. Esse é outra coisa. Numa guerra, um pelotão pode entrar num refeitório inimigo e atirar contra todos. Vale é o objetivo militar, desde que não fira o direito humanitário.

Não é o que acontece no Haiti. Lá, há conflitos internos. Com regras de engajamento para atuação das tropas da ONU. Inclusive a medida da proporcionalidade. Esse é bom termo de comparação. Em conflitos internos, usa-se gás de pimenta contra quem joga pedra. E tiro de metralhadora contra bandidos que atiram com AR-15. E tudo com uma grande estrutura quase “real-time” de fiscalização de direitos humanos.

No caso brasileiro, teríamos que encontrar um instrumento jurídico para reconhecer que a violência traz uma situação de sítio. Sem um medidor sereno, um conflito armado assim viraria nossa versão tupiniquim da “guerra ao terror”. Sob o risco de também reproduzir o ambiente de “Tropa de Elite”.

Cinema latino com petrodólares

Uma boa matéria do jornal Valor Econômico da semana passada fala que a Venezuela, sob o comando do presidente Hugo Chávez, quer lançar uma indústria cinematográfica para contrapor o conteúdo produzido pela visão norte-americana de Hollywood. Detalhe: um dos filmes anunciados é uma espécie de biografia do líder negro Toussaint L’Ouverture, que comandou a independência do Haiti contra a metrópole França.

Essa talvez seja um dos mais belos capítulos da história haitiana – fundar a primeira república negra das Américas. À época, um péssimo exemplo para os escravocratas Brasil e Estados Unidos. É aguardar para ver. Segundo detalhe, e não qualquer um: a estrela do filme deve ser o ator Danny Glover, herói de Máquina Mortífera. Garimpando a rede, achei essa foto dele, em 2003, com o ex-presidente Jean Bertrand Aristide, deposto no ano seguinte e origem da última crise política.

Haiti, em três tempos

O cotidiano da população do Haiti foi agredido nas duas últimas décadas de caos político. Refém de uma ditadura sangrenta de Papa Doc e Baby Doc, o Haiti fez eleições democráticas em 1989, viveu um novo golpe militar em 1991. Depois disso, vieram mais duas missões de paz da ONU. A última delas, cujas tropas militares são chefiadas pelo Brasil, começou em junho de 2004 e deve ser prorrogada no dia 10 de outubro por mais um ano.

Desde 2004, jornais e entidades não-governamentais pelo mundo registraram a situação do povo haitiano. A pobreza extrema, a carência de políticas públicas, a violência e a política. Selecionei aqui três especiais multimídias de dois veículos internacionais para mostrar um pouco dessas mudanças no país, sobretudo após fevereiro de 2004, quando o ex-presidente Jean Bertrand Aristide foi deposto do cargo e levado por soldados norte-americanos para o exílio. Mostra um pouco da realidade haitiana e como a mídia cobre a crise.

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O primeiro deles é um especial de 2004 do site do jornal New York Times. A fotógrafa Ruth Fremson fez um slide show com um depoimento em áudio bem informal suas impressões do país. Belo jogo de impressões sobre a pobreza, a falta de luz, a comida dos pobres e sobre um abrigo para jovens haitianas.

Photographer’s Journal: A shelter in Haiti

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O segundo também é do New York Times. Um vídeo coberto de imagens com duas entrevistas, mas, como o primeiro, sem nenhum depoimento de moradores haitianos sobre o processo. Ele tenta apresentar uma versão sobre a influência dos Estados Unidos sobre a política doméstica no Haiti.

A preview of the Discovery Times documentary: ‘Haiti: democracy undone’

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O último é do repórter Bruno Garcez, correspondente da BBC Brasil em Washington, que fez um vídeo sobre a recepção dos moradores de Cité Soleil às tropas brasileiras. Após a ocupação da favela, hoje é um sentimento de tranqüilidade no local. A maior parte deles agradece o trabalho dos soldados brasileiros.

Tropas do Brasil são saudadas como ‘gente boa’ no Haiti; assista

PS: este último roda no Real Player; costuma não funcionar com software livre.

Lendo Emir Sader, descobri um antropólogo

Desde a semana passada, passei a acompanhar os relatos do professor Emir Sader que visita, pela primeira vez, o Haiti. Suas idéias estão escritas em seu blog, na Agência Carta Maior. Ele participa de um seminário organizado pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso) e pela fundação Gérard Pierre-Charles, nome de um dos principais intelectuais da esquerda haitiana e que morreu há três anos. Destaco uma de suas primeiras observações:

Qualquer que seja o diagnóstico que se faça da história recente do Haiti, o certo é que, depois da catástrofe que significou para o Haiti a ditadura do clã Duvalier, o desastre mais recente, que ajuda a entender a grave situação em que se encontra o país, foi o fracasso do governo de Aristide. Ele tinha as melhores condições para dar inicio à reconstrução democrática do país, pela liderança popular que tinha como padre da teologia da libertação, da oposição democrática, contando também com apoio internacional.

O diagnóstico do professor Emir Sader ressalta que lá há “uma inexistência real do Estado”. “Há ministérios, mas muito poucos serviços públicos, estruturas muito debilitadas”. É interessante essa observação, já a vi também em especialistas do assunto como o professor Ricardo Seitenfus. Contudo, lendo os comentários do blog vi duas inserções muito legais do doutorando José Renato de Carvalho Baptista, que compara, em seu estudo de doutorado, alguns significados culturais entre o vodu haitiano e o candomblé. Mas ouro em seu comentário é a discordância sobre os conceitos de Estado. Segue:

Como antropólogo sugiro que não se trata de uma “ausência de Estado”, mas pegando carona nas idéias de Michel Rolf Trouillot, brilhante intelectual haitiano do Depto. de Antropologia da UNiversidade de Chicago, trata-se de um caso de um Estado predatório, que se coloca contra os interesses da sociedade (cf. Trouillot, 1987). Sugiro também ao prof. Sader travar contato com as sugestões de Jean Casimir (possivelmente seu colega na CLACSO), que falam também de um tipo específico de Estado predatório, mas não da ausência deste (Casimir, 1997). Por fim, Hurbon (1987) também aponta para este problema, não afirmando uma ausência do Estado, mas um caráter específico deste.

Pode parecer uma discussão árida demais, mas tem um foco importante. O Haiti ainda tem um foco de corrupção grande, que abocanha grande parte do orçamento público do país, já corroído pelo pagamento de juros da dívida externa. De certa forma, nesse debate também está a possibilidade de encontrar alternativas reais para o futuro das políticas públicas do país – maior carência para o povo haitiano. Pedi até uma entrevista com Baptista, vamos ver se rola.

Haitianas, uma série que se inicia aqui

Neste blog também vou postar coisas de minhas apurações sobre a situação do Haiti, país mais pobre das Américas onde uma missão da ONU atua desde de junho de 2004. Já escrevi sobre o tema para a Agência Brasil, pela qual viajei quatro vezes desde o famoso jogo da seleção brasileira com o time haitiano; para a revista Democracia Viva, do Ibase; para a revista Rolling Stone, edição brasileira; entre outros veículos.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O argumento primeiro da defesa da missão da ONU, após a crise de fevereiro de 2004, era o de que a situação ficaria pior se não houvesse o envio de tropas. Isso desconsidera o movimento armado anterior, e suas suspeitas de ilegalidades, que provocou a queda de Jean Bertrand Aristide. Embora não haja provas, deixo registrado que existem denúncias de que o grupo armado que marchou da República Dominicana contra Aristide foi financiado pelos Estados Unidos.

O segundo argumento, e repetido subliminarmente, era o de que, caso os “bons” sul-americanos não estivessem no Haiti, os “imperialistas” norte-americanos estariam. Um auto-elogio ideológico, mas que não se sustentava sem um planejamento alternativo para pacificar e criar condições soberanas para um país explorado e ocupado. O Conselho de Segurança da ONU, como todo espaço diplomático, é resultado direto das propostas e dos interesses de seus membros.

Isso significa que interesses maiores – de paz, soberania e igualdade – podem ou não ser preservados em cada decisão. Depende da atuação de seus membros. Então, estaria o Brasil interessado em garantir uma cadeira permanente no conselho e, por isso, teria aceitado a participação no Haiti? Ou seja, em nome de ter direito a veto e voto nas decisões sobre os conflitos armados teríamos ido com tropas para o Caribe, sem um planejamento de médio prazo?

Vou escrevendo…