Playlist Chora Viola – Eu Cantei Primeiro: as histórias de 30 sucessos

Ao ouvir a música Tocando em Frente, qual a voz lhe vem à mente? Almir Sater ou Renato Teixeira? Ao buscarmos a primeira gravação dessa música chegamos na voz mansa e forte de Maria Bethânia, que recebeu do próprio Almir essa composição. E mergulhou a melodia e a letra no seu talento de intérprete. O resultado foi de uma amplidão gigantesca. Adentrou milhões de lares como parte da trilha sonora da novela Pantanal em 1990. A música brotou e floresceu como um hino violeiro, com sua lírica do campo e sua filosofia de temperança.

Essa e outras 29 músicas famosas da música caipira e sertaneja estão no repertório que reuni especialmente para o Sesc Digital na playlist Chora Viola. O sucesso nasceu nestas vozes. Essas composições, verdadeiras obras de arte, tiveram suas primeiras gravações lançadas estes intérpretes. Algumas nasceram já consagradas nos primeiros fonogramas; outras, porém, tiveram versões que ultrapassaram em alcance a primeira gravação. Seja qual for a trajetória da interpretação, essa playlist Chora Viola – Eu Cantei Primeiro recupera do baú dos discos quais cantores gravaram primeiro esses sucessos.

Se tiver um tempinho em meio a tantas coisas dessa vida pandêmica, ouça a coletânea digital nas plataformas do Sesc São Paulo. Se gostar, clique no coraçãozinho da playlist que a lista será atualizada com novas violas e cantorias. Links disponíveis abaixo:

Spotify: https://open.spotify.com/playlist/2mUI5LqATgvZcVhRNeSAXj?si=f363db52497c4cb6&fbclid=IwAR1J2V-FHRCPgGujWBBJd-YMtaRYI7SSSpJmiO8-ELAiGXNKHQ2ni1Rc2hw&nd=1

Deezer: https://www.deezer.com/pt/playlist/3848004666?fbclid=IwAR16Cv2fyxwSIOcX-bYkBZH5RcujOxYUXLYMkwude8PRzJvQ5VaCcT2Xlrc

…continua

Violeiros do Brasil

O encantamento do projeto Violeiros do Brasil, mais uma curadoria de Myriam Taubkin na sua busca pela memória musical brasileira, é justamente sua dimensão do tempo e sua capacidade de unir diferentes perfis artísticos. A perspectiva de ver a si mesmo e o outro, mestres e aprendizes inovadores, em seus significados faz a potência disso tudo. Hoje, 9 de abril, começa mais uma etapa do projeto, desta vez em formato on-line, porque é o que podemos em tempos duros, mas, ao mesmo tempo, é o que precisamos para seguir a vida e a viola de meudeus.

Lá em 1997 na primeira edição do projeto, foi feito um estupendo CD pela gravadora Núcleo Contemporâneo (também de arrancar suspiros) que reunia os toques violeiros de rara beleza: Almir Sater, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Ivan Vilela, Renato Andrade, Adelmo Arcoverde, Pereira da Viola, Paulo Freire, Passoca, Braz DaViola, Zé Coco do Riachão, Grupo Catira Ás de Ouro, Folia de Reis Alto do Baeta e Orquestra de Viola Caipira de São José dos Campos. O lançamento presencial do disco, com a maioria dos instrumentistas, foi feito no palco do Sesc Pompéia e registrado pelas câmeras da TV Cultura.

Ali havia um marco de criatividade: de Myriam, que colou as pedras coloridas desse mosaico de São Gonçalo; dos artistas, que se refletiam mais fortes nos outros, como cordas em profusão; e do próprio recorte, instrumental e de enraizamento, que vinham trilhando caminhos de resistência desde a década de 1980 e chegava ali ainda com poucos canais de divulgação forte (lê-se algumas rádios, alguns programas de TV – o Viola, Minha Viola entre eles). Se havia alguma dúvida, essa geração foi eternizada no disco de 1997 como a de novos mestres da viola e da cantoria.

Testemunhei essas apresentações como fã entusiasmado e como futuro jornalista de cultura. O olhar de Myriam trouxe a união da complexidade da viola para solistas em união às pesquisas daquela nova geração que já dialogava com o ambiente urbano de múltiplas influências. Seja pela incorporação de novos jeitos de tocar ao instrumento que refletia nas obras autorais, seja pela batalha de alguns deles, ainda em processo, de levar o instrumento tão popular para universidades e conservatórios. Aquela era a geração da viola brasileira que Myriam traduziu em disco.

A segunda etapa do projeto, lançada em 2008, veio em livro e em um DVD-documentário com boa parte dos primeiros integrantes, acrescidos de Pena Branca, de homenagens aos falecidos Renato Andrade e Zé Coco do Riachão, prefácio de Inezita Barroso e uma saborosa cartografia de violeiros e luthiers em atividade naquele momento. O material é um passeio de barco, calmo e contemplativo pela terceira margem da viola: dentro desse universo de sabedoria que une compositor, paisagem e comunidade.

Nessa ocasião, tive oportunidade de testemunhar seu trabalho como editor e roteirista do Viola, Minha Viola, da TV Cultura, sob os comandos de Inezita. Levamos alguns desses artistas para uma amostra do projeto da TV aberta para milhões de telespectadores. Eles já tinham a viola em seu altar de devoção, mas também puderam ver esta outra curva de rio do instrumento, de solistas, eruditos e populares, transgressores e tradicionais. Almir, a de se lembrar, nem cantou na apresentação (para a raiva de alguns fãs assíduos); e sim tocou uma obra de levada bluseira, O ganso. Inezita sorriu. Ao seu lado, ali estava sua amiga Myriam Taubkin contando sobre tudo o que uniu ali. Escrevi sobre esse registro da (re)volução da viola à época para o Le Monde Diplomatique.

Agora, abre-se a terceira batalha deste projeto Violeiros do Brasil. Lives com encontros duplos de instrumentistas: Tavinho Moura e Fabrício Conde; Passoca e Neymar Dias; Pereira da V iola e Ricardo Vignini; Adelmo Arcoverde e Laís de Assis; Paulo Freire e João Paulo; Ivan Vilela e Bruno Sanches; e Viola Correa e Cacai Nunes. Transmissão pelo canal do YouTube da pesquisadora e curadora do projeto, Myriam Taubkin. Para se ouvir de ouvidos bem abertos.

Link para festival on-line: https://bit.ly/2OzSnUi

Link para texto Revolução da viola: https://bit.ly/3fW8I0X

Link para CD Violeiros do Brasil: https://bit.ly/3dOgY0c

Aloysio Biondi, um perfil biográfico

Nesse lançamento do perfil biográfico de Aloysio Biondi, reencontrei colegas e batemos um papo sobre o legado de Biondi e princípios do jornalismo que ele praticava. Thais Sauaya, jornalista falecida em 2009, fez esse material que chega agora publicado pela Editora Terra Redonda, de seu ex-companheiro, Sérgio Alli. Link aqui.

Na transmissão do lançamento on-line, muita gente conhecida e que não via há muito: Nanami, minha professora e colega de Biondi na Faculdade Cásper Líbero; Sérgio Gomes e Ana Luisa, dois amigos da Oboré; Paulo Donizetti, então editor da Revista dos Bancários e que apoiou tanto Biondi nas publicações de textos e análises.

Por esse livro, é necessário agradecer ao trabalho de resistência da Thais Sauaya, uma mulher, jornalista, que foi a responsável por produzir esse perfil biográfico do Aloysio Biondi. Nele há ideias sobre o jornalismo, uma linha do tempo de referência para conhecer essa trajetória, uma descrição histórica dos momentos vividos recentemente pelos veículos por onde Biondi passou… um trabalho muito relevante para entender e procurar mais informações sobre ele.

Jornalismo é lugar de conflito, Biondi sabia disso. Conflito de ideias, defesa de ideias. O jornalismo está inserido no espaço público como as demais forças e discursos simbólicos. Ética aqui no debate não é para falar pela sociologia, mas uma ética voltada ao jornalismo. Na ética jornalística, não é diferente do cidadão. Se é ruim para o cidadão (mentir, abusar da confiança, trair a palavra dada), isso é ruim para o jornalista.

Essa é uma maneira um pouco mais tangível que gostaria de trazer para o debate que envolveu a carreira do Biondi, é a ética da prática jornalística, a de não omitir informações, de dimensionar as notícias, hierarquizar as informações sem manipulações e de poder criticar o governo sem vínculo ou amarras com ninguém.

Aliás, no jornalismo, não é um problema ter convicções, isso esta na base do ser humano e da sua expressão de pensamento, mas o problema é ter ligações não explícitas e escondidas que o público desconheça.

Em geral, é difícil debater ética com patrões de empresas jornalísticas, com políticos e também não é um tema que está na rotina de debate de repórteres. Há erros, mas também há como discuti-los nas páginas dos jornais, das revistas, dos sites, dos rádios e das televisões.

É importante também lembrar que o trabalho do Aloysio Bioindi ficou um pouco marcado por isso. Por ser quase como um leitor crítico do jornal dentro do jornal, um ombudsman de vários jornais na área econômica, um crítico forte das contradições dos governos.

Biondi foi um jornalista econômico que colaborou durante 44 anos com reportagens e análises para jornais e revistas. Começou na Folha de S. Paulo em 1956, ocupando o cargo de editor-executivo do caderno de Economia, que o jornal (já) mantinha na época. Ocupou os cargos de secretário de redação da Folha de S. Paulo e da Gazeta Mercantil. Foi diretor de redação do Jornal do Comércio (RJ) e do Diário Comércio & Indústria (SP). Também foi editor de economia das revistas Veja e Visão e editor de mercado de capitais (“pioneiro”, em 1969) de Veja e do jornal Correio da Manhã. Foi diretor editorial do grupo DCI/Shopping News. Ganhou dois Prêmio Esso de Jornalismo Econômico: 1967, revista Visão, e 1970, revista Veja.

Vá aí pela rede ou pessoalmente a alguma biblioteca de faculdade de jornalismo que vão encontrar o Anuário de Jornalismo 1999 da Faculdade Cásper Líbero. Ele, uma iniciativa de Marco Antonio Araujo, com edição de Marcelo Coelho e Rodrigo Savazoni, tem um artigo de Biondi. E vale por uma aula magna. Com dicas, que, em resumo, nos ajudam a desmascarar as informações da imprensa durante o governo FHC. Mas, claro, valem para qualquer governo: 

1 – Manchete às avessas
Biondi cita, por exemplo, uma notícia que fala que mais famílias brasileiras possuem acesso ao crédito. Mas ter acesso ao crédito, neste caso, era estar endividado. E um nível grande de endividamento reduziria o consumo.

2 – Manchetes encomendadas
São as notícias menores, mas de impacto, que se sobrepunham às notícias estruturantes. Um exemplo dado por ele era que o governo FHC chamou de caloteiros os agricultores que foram massacrados pela cobrança de TR acima da inflação. VÁRIOS JORNAIS pautaram essa visão e não mostraram o lado dos agricultores e pautou jornais para essa visão. Só mais adiante que o próprio FHC reconheceu como um grande erro do seu governo essa cobrança sobre agricultores e essa visão sequer foi alvo de destaque dos jornais.

3 – Cifras enganosas
Superdimensionar valores sem colocar o contexto. Numa época em que a seca no Nordeste impactou muito a região, o governo federal não apoiou a região e depois precisava de um discurso para se desculpar. Ele cita neste texto uma manchete de indicações de desvio de R$ 500 milhões para projetos do Nordeste, colocando um sub-texto de que a realidade do Nordeste era um saco sem fundo, mal administrado pelos coronéis. Mas esse dado era de problemas ao longo de 40 anos da Sudene. É uma coisa absolutamente relativa se comparada à ajuda aos bancos que o governo federal deu no valor de 42 bilhões. Ou seja, meio bilhão de problemas em 40 anos, contra 42 bilhões no Proer.

4 – Lide às avessas

Durante a era FHC, ele criticava muito os jornais por deixarem a verdade das notícias no final dos textos, escolhendo manchetes e aberturas de textos mais positivas. Cabia a nós ler até o final com olhar crítico.

5 – Prometendo o futuro
Quando havia uma notícia ruim (queda de vendas, produção, etc), muitos escondiam essa informação no final do texto e entrevistavam o presidente da associação do setor para vender um futuro melhor.

6 – O sujeito errado
Ele cita aqui notícias que escondem os agentes da ação. Por exemplo: Seca aumenta mortalidade infantil no Nordeste. Só que o texto indica que a mortalidade tem causas como interrupção da distribuição de cestas básicas, corte nas frentes de trabalho e atraso de três meses para ajuda emergencial para os flagelados. Logo, quem mata não é a seca, é a ação do governo que não faz o seu papel.

7 – O bife pelo boi
Aqui é a técnica complementar do número 4. Pinçar o dado positivo para a manchete. E cita um exemplo incrível de um trimestre com queda geral do PIB, mas um dado positivo apenas da economia do Rio de Janeiro. A manchete então qual foi? Economia do Rio cresce.

8 – O boi pelo bife
Esta outra é a técnica inversa da número 7. Citar um dado geral para uma região, como a América Latina, por exemplo, e não citar o Brasil. O exemplo é que havia queda de empréstimo de banqueiros para a América Latina, mas o Brasil recebia menos que os demais países, mesmo sendo maior.

9 – Omissão escandalosa
Aqui ele cita uma bomba de notícia que foi silenciada em 1999. Um acordo dos países produtores para reduzir a produção de petróleo e forçar a recuperação de preços que estavam em queda. Os jornais não publicaram essa notícia e, ¨de repente¨, o petróleo começou a subir. O propósito era manter o principal argumento do governo para leiloar a preço de banana áreas de exploração de petróleo, sob o argumento de que ninguém queria por conta do preço baixo. Para Biondi, esse foi um dos maiores assaltos à sociedade brasileira. As áreas que podiam faturar, no mínimo, 40 bilhões de reais, pagaram ao governo apenas 150 milhões.


Lembro da experiência de ver Biondi, em seu apartamento na Brigadeiro Luiz Antônio, onde ele empilhava pelos cantos da sala seus tesouros de informação: recortes de jornal anotados, com marcas pelos pés e pelas margens das notícias. Esses dados formaram seu acervo, seu clipping comentado, e que hoje está guardado na Unicamp para quem quiser entender mais sobre o jornalismo na era privatizante de FHC.

Biondi fazia isso sem Lei de Acesso à Informação, sem plataformas digitais, aliás, só tinha e-mail, telefone fixo e assinaturas de jornais.

Essa é a ética que falamos aqui ao lembrar Aloysio Biondi. A da apuração e do equilíbrio.

Aldir Blanc por Eduardo Gudin

Convidado pelo colega Fabio Maleronka, editei essa pequena entrevista que Gudin fez com ele sobre a morte do compositor Aldir Blanc.

Fabio Maleronka

Aldir Blanc foi parceiro de muitos, mas com João Bosco e Guinga, sobretudo, foi partidário do samba e da liberdade, deixou um legado imenso em letras, cuja beleza é aqui lembrada pelo compositor paulistano Eduardo Gudin.

No dia em que Aldir Blanc morreu, Gudin disse que sentiu um vazio parecido com a morte de Adoniran Barbosa. Samba é samba, do Rio ou de São Paulo, não existe bairrismo para quem sente a música com o coração. Da sensação estranha, Gudin tirou ardor para versos novos em homenagem ao seu parceiro em três canções. O paulistano que frequentou muitas vezes o Rio de Janeiro relembra também amizades e encontros que teve.

Com olhar e ouvidos apurados e atentos, Gudin comenta poeticamente a obra e a partida do colega carioca. João Bosco, Guinga, Moacyr Luz e tantos outros choraram essa perda de um ponto de vista mais próximo em amizade que os de Gudin, mas ele descreve seu lamento pelo fim de mais uma voz da poesia em meio a tantas vítimas de coronavírus. Aldir, como letrista profissional, é “um dos maiores da sua geração”, sentencia.

Em entrevista, o compositor conta e canta o que lhe bate forte à mente ao falar da obra de Aldir: o “roncou, roncou, roncou de raiva” em “O Ronco da Cuíca”; “no dedo um falso brilhante, brincos iguais ao colar” em “Dois pra Lá, Dois pra Cá”; “onde tantos iguais se reúnem e contando mentiras ra poder suportar” em “O Rancho da Goiabada”. Fazia esses e milhares mais com “naturalidade” e o “dom” que ele tinha.

(Colaboraram Aloisio Milani, Malila Ohki e Luis Fernando Massoneto)

Pergunta: Aldir escreveu e cantou a vida, o amor, o tempo. Agora é mais uma das vozes que se cala…
Eduardo Gudin: Estou com uma sensação que só tive uma vez, quando o Adoniran Barbosa morreu. Diferente do Aldir, com o qual não tinha um contato muito cotidiano, eu era muito amigo do Adoniran. Quando ele morreu eu não entendi bem aquilo. Fiz hoje a terceira estrofe de uma música e mandei para a Fatima Guedes. Mas é sobre essa cuíca do Aldir em “O Ronco da Cuíca”. Ele podia colocar apenas “a cuíca roncou”. Mas ele coloca: “Roncou, roncou/ roncou de raiva a cuíca, roncou de fome/ alguém mandou / mandou parar a cuíca é coisa dos home”. Aí eu fiz esse trecho, que você pode publicar. É minha homenagem ao Aldir: “Brasileiro como eu/ tem seu jeito de lutar/ é a hora de escutar/ o ronco da cuíca/ e a coisa modifica/ e esse samba vai fluir/ cantado pelos versos do Aldir”.

P: Você lançou no disco O Ensaio do Dia uma das parcerias com o Aldir. Como foi esse trabalho?
EG: Essa foi a segunda música nossa. Na realidade, nós fizemos três juntos. E essa foi a segunda, uma parceria mista com Elton Medeiros, Aldir Blanc e eu. Fiz a melodia da primeira parte, o Elton fez a melodia da segunda e o Aldir fez a letra. É um disco de 1983, Elton cantou comigo.

P: “Desclassificada” também você fez com Elton e Aldir. Conta um pouco dessa composição.
EG: Eu sempre quis fazer música com o Aldir. Essa música em específico tem uma coisa mais distante. Liguei para o Aldir e falei: “Olha, eu vou fazer um disco novo, fiz uma música com o Elton Medeiros que eu queria te dar para fazer a letra”. Foi muito simples fazer essa música, por exemplo. Ele escreveu a letra, tudo por telefone. E ele é um gênio. Essa parte profissional e pessoal com o Aldir foi distante para mim. Eu em São Paulo, o Aldir no Rio. Eu muito voltado para as coisas daqui e ele muito fechado lá no Rio. E até por minha causa mesmo. Não tinha uma intenção de virar um parceiro do Aldir, era uma vontade de fazer uma coisa junto, sabe? Eu tinha um respeito grande pela parceria dele com o João Bosco. E depois o Guinga foi outro parceiro dele. Mas, depois de “Desclassificada”, fiz uma com ele que é inédita, que eu guardei. Encontrei-o algumas vezes, sempre com muita admiração. A última vez que eu o encontrei, acho, foi no Bar do Alemão no lançamento do livro dele.

P: E, na sua visão, como é essa habilidade de letrista que o Aldir tinha? De colocar a dor no pé com um band-aid em “Dois pra lá, Dois pra Cá” ou a tarde que caía como um viaduto (menção à queda do Viaduto Paulo de Frontim) em “O Bêbado e a Equilibrista”…
EG: É coisa de compositor. Sempre acho muito interessante como é que a pessoa consegue juntar a letra na música. O que ele vai dizer para mim até o segundo plano, a junção. E se puder achar uma coisa simples, como falar “no Abaeté tem uma lagoa escura”, como o Dorival Caymmi fez, ou “só dança o samba, só dança o samba/ vai”, como Vinicius de Moraes escreveu. A gente lê a letra e vai achando que não é nada, mas, quando junta, aquilo gruda na melodia. Para mim, isso é o primeiro ponto. Tenho muita dificuldade quando as pessoas falam do trabalho de alguém, de letrista ou de músico, se a pessoa analisa a letra como se estivesse lendo um livro ou uma crônica. Não é isso. A letra tem melodia, a primeira coisa é se unir à melodia, ela dá vida à melodia. Esse é o dom do Aldir Blanc. A pessoa tem esse dom e é uma coisa muito natural. O Aldir tinha isso e sempre me fascinou. Mas até de ficar espantado, sabe? Ele conseguia em um limite de escrever coisas quase que insólitas, como um band-aid no calcanhar (“Dois pra Lá, Dois pra Cá”), ou os faraós embalsamados (“O Rancho da Goiabada“), e tudo isso dá certo na melodia. E ele conseguiu extrapolar essa habilidade para coisas que aparentemente não ficariam boas em uma música, não ficariam boas de cantar. Ele tinha um dom que levou às últimas consequências. Aí, sim, você entra na crônica, no que ele disse. É tudo muito mais difícil, ele usa palavras e situações inusitadas. Ele encontra aquilo, põe na música e fica bom de cantar. É um milagre.

P: Você citou “O Rancho da Goiabada”. A música começa com uma estrutura de rancho e, ao mesmo tempo, não é bem assim. Ele vai tratando o universo rural, os boias-frias, e, de repente, o boia-fria está sonhando com batata frita, bife a cavalo. E logo está em um universo urbano. A letra vai para um caminho totalmente diferente de um senso comum esperado. E, depois, vira uma metáfora congelada diante dos faraós embalsamados. Isso é uma alegoria, não é?
EG: Isso é muito difícil. Tem que ter genialidade, porque essa melodia (gravada no disco Galos de Briga, de João Bosco) é uma marcha, um arranjo do Radamés Gnattali, com orquestra. Tudo é típico de uma grande marcha na maneira de tocar. O Aldir põe aquela letra com o jeito da marcha-rancho e vai incluindo, sim, alegorias e personagens que normalmente não caberiam ali. E ele consegue. É impressionante, é encantador. Ele brinca com as metáforas, com a mensagem. Aquele verso que “caía a tarde feito um viaduto” (em “O Bêbado e a Equilibrista”), depois ele fala “a volta do irmão do Henfil“. Podia falar do Betinho, mas não, é “a volta do irmão do Henfil”. É uma arte muito complicada a de letrista, e ele levou isso às últimas consequências. E, depois de tudo que fez com o João Bosco, ainda fez muito trabalho com o Guinga. Ele vai lá, pega um choro, um baião, uma canção e vai fazendo aquelas histórias.

P: Essas palavras que aparecem do meio das letras do Aldir são prodigiosas. Tem um samba “Ainda Mais”, seu e do Paulinho da Viola, que aparece o “viu”…
EG: Ainda bem que você reparou. É que o Paulo é uma pessoa de muito poucos parceiros, ele é autossuficiente. Ele faz tudo, melodia, letra, toca muito bem violão, é completo. Tive essa alegria de ele me considerar um parceiro, a gente está sempre, uma hora ou outra faz uma música. Quando ele me deu a letra ele mesmo se espantou com esse “viu” que tem na música: “Uma desilusão assim/ faz a gente perder a fé/ e ninguém é feliz, viu?/ se o amor não lhe quer”. E aí ele perguntou: “Você acha que esse ‘viu’ não está muito Vinicius de Morais?”. E eu falei: “Ainda bem. Pode deixar”. O Paulo é um advogado do diabo quando ele faz letra, ele se exige demais. Ele vai testar, vai tentar mudar, luta muito com ele mesmo para chegar no ponto certo.

P: No dia seguinte da morte do Aldir, eu estava vendo a cena de um guarda municipal do Rio tocando “O Bêbado e a Equilibrista”. É uma cena muito bonita quando o compositor entra nessa simbiose com a cidade. E não é o Rio da Zona Sul, não é o Rio da Bossa Nova, é um outro Rio…
EG: Sim. Aldir quer ter uma coisa mais do subúrbio. Ele fez uma música meio política. É o tratamento que ele deu, isso é uma glória do compositor. Aldir e João Bosco é uma coisa muito forte. “O Bêbado e a Equilibrista” faz parte do cancioneiro brasileiro. É uma perfeição. É tudo que um compositor pode querer. É a música para fazer parte do cancioneiro do Rio de Janeiro. Em vez de tocar a marchinha “Cidade Maravilhosa”, toca essa música. A perda do Aldir fez um dia muito difícil. Confesso que me deu muita dor de não ter me aproximado mais dele. Eu faço um curso de composição popular no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, aqui na Avenida Nove de Julho, que, agora, por motivos óbvios, está suspenso. E sempre levo compositores para explicar o seu processo, e é impressionante como eles queriam ir dividir isso. São três horas direto de uma pessoa explicando como faz música. Com uma simples ajuda de custo, o Ivan Lins veio, o Toquinho quis ir também. O Paulo César Pinheiro, que não sai de casa, falou: “Eu vou só para isso”. E veio para São Paulo. Foi maravilhoso ouvir explicar. Quis muito trazer o Aldir, mas aí um amigo em comum disse que o Aldir não saía mais de casa, não queria mais. Então, não consegui ter essa alegria. E, de repente, esse gênio vai embora e a gente fica tão vazio.

P: Em “Saudade da Guanabara”, de Aldir Blanc, Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro, eles falam que a “nostalgia não paga entrada” e o “circo vive de ilusão (eu sei)”. E é um questionamento o tempo inteiro com essa situação do artista. Isso é uma coisa muito puxada na obra do Aldir, não é?
EG: O que sei muito do Aldir é isso. Era uma pessoa difícil de uma comunicação, ele tinha o jeito dele. Talvez eu pudesse ter me aproximado mais. Por outro lado, acompanhei sempre muito ele, o tempo todo. O trabalho dele com o Guinga, que é meu amigo de adolescência, de São Cristovão. Aliás, o Guinga fez música com o Aldir depois que falei para ele ligar para o Aldir. Eu tinha acabado de fazer essas músicas que comentamos e falei: “Guinga, dá uma ligada para o Aldir, porque ele vai adorar você falar com ele”. Ele não conhecia o Aldir. E são essas coisas, essa luz que se acende. No fim viraram grandes parceiros.

P: Paulo César Pinheiro também tem essa coisa que o Aldir tem de juntar letras fortes com melodias muito casadas. Aliás, tem muitas histórias de que Aldir chegava e a letra saía de uma hora para outra, como se baixa um espírito.
EG: O Aldir tinha esse dom. O Paulo César Pinheiro e o Aldir, como letristas profissionais, são os maiores dessa geração. Não consideraria o Chico Buarque porque ele faz tudo e foi maravilhoso para quem apareceu na vida dele. Ele é um compositor de cantar, de tocar, fazer melodias. Mas falo de Paulo e Aldir como letristas apenas, profissionais ao criar letras boas de cantar.

P: Sua parceria com o Paulo César Pinheiro também tem essa angústia. A música “Mordaça” é muito isso…
EG: “Mordaça“ foi do tempo da repressão da ditadura mesmo, em 1974. Aquele tempo não era brincadeira, tempo do Médici. O período mais difícil de todos. Porque o AI-5 estava imperando e era complicado mesmo. Aquele show, O Importante É Que a Nossa Emoção Sobreviva, que fiz com Paulo César Pinheiro, era difícil. Às vezes a censura estava ali na primeira fila e você não podia cantar, falar isso ou aquilo, era complicado. Tínhamos que fazer um show antes para duas pessoas da censura aprovarem. “Isso pode, isso não pode, essa fala tem que tirar.” Era sempre muito complicado. E mais difícil era saber que nos porões da ditadura era muito pior.

P: E aquele realejo na abertura de “O Bêbado e a Equilibrista”? No prólogo de uma música, aquele acordeon, que faz o som de realejo, ficou o anúncio da democracia…
EG: É uma ideia maravilhosa. É da questão do equilibrista no circo. Ele comparou ao circo e deve ter sido uma ideia do Cesar Camargo Mariano na gravação da Elis Regina. O realejo deve estar ligado ao circo chegando. Parece que você entra em um circo. É muito bem pensado, maravilhoso.

Publicado originalmente em Farofafá (14/05/2020)

Aldir Blanc por Eduardo Gudin

Sesc Vila Mariana: vida na programação

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Para os colegas mais próximos, sobretudo aqueles que ainda não sabem, aviso que, depois de quatro anos e meio, finalizei meu intenso período de trabalho do Sesc Vila Mariana como animador sociocultural. Entrei naquela unidade logo após a saída da TV Cultura e posso dizer que ardi no fogo de um ditoso período profissional. Muitos projetos e espetáculos realizados, buscando aprender com a intensidade de processos colaborativos e diversos.

Do Centro de Música do Sesc Vila Mariana à pasta de Diversidade Cultural, do socioeducativo ao artístico, da música ao teatro, dos seminários aos projetos institucionais. Tudo com seus tempos. E tudo a me levar adiante, ao lado de dezenas de profissionais encantadores. Envolvemo-nos sempre com públicos, produtores, técnicos, artistas e educadores. Isso só a cultura e a educação nas suas relações presenciais, cara a cara, trazem.

A partir de agora, me preparo para novos desafios… contudo, com mais tempo para os amores de casa, Fernanda e Ravi. E foi por eles que escolhi me lançar em outra busca por novidades e desafios. Nos vemos logo por aí… 😎 para cafés, principalmente.

Série Concertos – Bach e suas influências

Dentro da linha curatorial da Série Concertos, um projeto de formação de público do Sesc Vila Mariana, realizar a programação desta edição de novembro de 2018 com os colegas foi uma grata surpresa. Por ser um compositor quase unânime entre os amantes de música de concerto e por vislumbrar artistas contemporâneos com obras tão plurais em relação ao repertório.

A abertura da série foi com Guilherme de Camargo, Iara Ungarelli, Rafael Lopes e Lucas Raele (alaúde barroco, teorba, violão de aço, viola de gamba, harpa e clarineta). Depois um dos principais intérpretes de violão clássico brasileiro: Edelton Gloeden. Ainda o grupo La Follia, com a cravista Helena Jank no comando de de um repertório de sonatas. E, por fim, a viola caipira de Neymar Dias, que acabava de lançar naquele ano o disco Neymar Dias Feels Bach.

A seguir a peça de mediação da série.

Série Concertos – Violões

Aproveitando o lançamento do box do Movimento Violão, pelo Selo Sesc, quando uma orquestra regida pelo Cláudio Cruz, tocou lindamente no Teatro do Sesc Vila Mariana, realizamos uma Série Concertos temática sobre violões em diferentes formações. Mais um projeto que compartilhei a curadoria com colegas no trabalho da programação do Sesc Vila Mariana.

A abertura foi com Paulo Martelli, Fábio Zanon e Orquestra regida por Claudio Cruz. Depois, Bruno Madeira em apresentação solo. Duo Siqueira Lima como o sucesso de um casal super afinado no palco. Ainda Trio Opus 12 com uma apresentação irretocável. E, por fim, o solo de Gilson Antunes, o primeiro professor contratado especialmente para o curso de violão clássico da Unesp.

Vejam mais na peça de mediação do projeto.

Projeto No Braço Dessa Viola

De 16 a 27 de fevereiro de 2018, o Sesc Vila Mariana apresentou o projeto ‘No Braço Dessa Viola’, abordando o universo sonoro do instrumento de dez cordas e do canto que acompanha os ritmos inspirados na cultura rural. São shows de nomes consagrados e novos talentos, colocando em destaque o alcance e a perenidade da influência da viola na música brasileira.

Tive a felicidade de fazer a curadoria deste trabalho com a ajuda de colegas do Sesc e com produções artísticas muito parceiras e profissionais. Abaixo, um texto meu que servia de divulgação:

A viola brasileira e a cantoria que se desenvolveu em parceria com o instrumento fazem parte do eixo de trabalho de um robusto movimento de cantores, solistas, arranjadores e compositores. Está entre as principais influências de cantores sertanejos e caipiras, nas inúmeras iniciativas de orquestras de viola, entrou na universidade com professores doutores, além de figurar em concertos que aproximam o erudito e o popular. Esse processo de enraizamento e de novas influências da viola e da cantoria é o universo abordado no projeto.

O projeto faz referência ao nome da música de Raul Torres e Florêncio, dupla ícone dos caipiras, e é o mote para mostrar trabalhos contemporâneos com violeiros e cantores. A música caipira, sertaneja e popular brasileira, apresentada nos repertórios tradicionais e contrapontos de vanguarda, indica que a história dessa união de instrumento e voz ainda percorre uma estrada que renova a bagagem das ascendências mestiças do brasileiro.

‘No Braço Dessa Viola’ traz sonoridades e contextos da viola caipira atualmente, seja por trabalhos consagrados do mercado fonográfico ou obras independentes.

No Braço Dessa Viola | Sesc Vila Mariana
16 a 27 de fevereiro

Daniel
De 16 a 18 de fevereiro, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
Teatro do Sesc Vila Mariana

Roda de Mestres Violeiros
Com Pedro Bento, Índio Cachoeira e Seo Oliveira
Dia 17 de fevereiro, sábado, às 15h
Praça de Eventos

Violinha Contadeira, com Paulo Freire
Dias 17 e 24 de fevereiro, sábados, às 15h
Local: Auditório

Rodrigo Caçapa e Alessandra Leão
Dia 21 de fevereiro, quarta-feira, às 20h30
Local: Auditório

Orquestra Paulistana de Viola Caipira
Com participações de Maria Gadú, As Galvão e Irmãs Barbosa
De 23 a 25 de fevereiro, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
Local: Teatro do Sesc Vila Mariana

Curso Viola Caipira para Iniciantes
Com João Paulo Amaral
Dias 20 e 27 de fevereiro, terças, das 18h30 às 21h30
Local: Centro de Música

Sesc Vila Mariana
Rua Pelotas, 141, São Paulo – SP
Informações: 5080-3000
sescsp.org.br
Facebook, Twitter e Instagram: /sescvilamariana

No Gravador de Inezita

Áudios conservados em um conjunto de 39 fitas magnéticas pertencente ao arquivo pessoal da cantora, folclorista e apresentadora de TV Inezita Barroso (1925-2015) chegam ao público, de forma gratuita, por meio do site No Gravador de Inezita. São cerca de 30 horas de gravação, divididas em quase 600 faixas, com registros feitos principalmente nas décadas de 1950 e 1960.

O registro mais antigo contido nas fitas magnéticas de rolo é de julho de 1951 e o mais recente, de maio de 1991. O trabalho de recuperação, digitalização e catalogação do material durou seis meses e contou com a consultoria de Marta Barroso, filha da artista. No Gravador de Inezita foi desenvolvido com recursos da edição 2015-2016 do programa Rumos Itaú Cultural. A equipe idealizadora e produtora do projeto conta com Alexandre Pavan, Aloisio Milani, Cacalo Kfouri, Luiz Boal e Luiz Ribeiro (saiba mais da equipe).

GRAVADOR REATIVADO
O acervo de Inezita Barroso possui 43 fitas magnéticas, sendo 33 de formato grande, oito de formato médio e duas fitas pequenas. Mesmo após o processo de limpeza e de recuperação, quatro delas não puderam ser aproveitadas: duas por estarem muito ressecadas devido à má conservação do material, uma por trazer conteúdo inaudível e outra por estar vazia, sem nada gravado. Sendo assim, o trabalho de digitalização e catalogação concentrou-se num total de 39 fitas.

Outra ação do projeto foi a recuperação de um gravador AKAI GX 4000D que pertenceu à artista e encontrava-se em mau estado de conservação, apesar de uma ótima estrutura e do cabeçote preservado. A recuperação, feita pelo jornalista Cacalo Kfouri, solucionou problemas na alimentação de energia, nos contatos das chaves de comando, no rolete de transporte de fitas e nas cabeças, muito sujas. Após passar por manutenção, o equipamento que dá nome ao projeto voltou a funcionar normalmente.

DO ANALÓGICO AO MP3
Para a digitalização das fitas, o gravador AKAI foi conectado por cabos de alta qualidade a um conversor de áudio RME UFX, fazendo a conversão analógico-digital em 32 bits floating com 96KHz de sample rate. O material de áudio foi gravado utilizando o software Logic Pro X em equipamentos Apple com o trabalho técnico do produtor musical Luiz Ribeiro.

No tratamento de ruídos, primeiramente foram eliminados estalos, problemas de rotação, cliques e ruídos elétricos, com auxílio do software Izotope RX Advanced. Para a mixagem e masterização, utilizaram-se equalizadores FabFilter ProQ2, Pultec, Manley Labs, compressores Manley Labs e ShadowHills, equalizadores dinâmicos Brainworx e FabFilter PRO MB e limiter FabFilter ProL. Em alguns casos, para pequenos ajustes foram utilizados plug-ins PSP, Universal Audio e Waves.

Os arquivos resultantes estão no formato AIFF 24 bits – 96KHz e também numa versão MP3 – 320Kbps.

Série Concertos – 100 anos da Revolução Russa

Em setembro e outubro de 2017, o Sesc Vila Mariana realiza mais uma edição da Série Concertos, projeto ligado ao Centro de Música e à formação de público para música de concerto. Como animador cultural na programação de música, fiz a curadoria da série com nomes e formatos diversos. De uma aula-espetáculo com o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo e o pianista Gustavo Carvalho até o Coro Ortodoxo com repertório da Rússia pré-revolucionária. Do Quarteto Romanov, passando pelo encontro de Marília Vargas, Liuba Klevtosva, Pedro Gadelha e Daniela Montian, até o cinepiano ao vivo do filme Encouraçado Poutemkin com o pianista Daniel Grajew.

A seguir, a peça de mediação da série musical.

Especial “Tributo à Inezita Barroso” – TV Cultura – Gravado na Sala São Paulo (2015)

No dia 8 de junho de 2015, três meses após seu falecimento, Inezita Barroso foi reverenciada por mais de 50 artistas e por centenas de fãs, amigos e familiares na gravação Tributo à Inezita – Quanta Saudade Você Me Traz, realizado pela TV Cultura na Sala São Paulo. Este programa foi meu último trabalho na emissora paulista e trabalhei na concepção, roteiro e produção. Ao lado dos colegas mágicos de produção: Nico Prado, Sheila Budney, Fernando Abdo e Beatriz Domingos.

Homenagem feita por: família de Inezita Barroso, Ivan Lins e Rafael Altério, Renato Teixeira, Renato Borghetti, Neymar Dias e Toninho Ferragutti, AS Galvão, Moacyr e Sandra, Mococa e Paraíso, Lourenço e Lourival, Rodrigo Mattos e Praiano, Mococa e Paraíso, Lucas Reis e Thácio, Irmãs Barbosa, Pereira da Viola, Paulo Freire, Roberto Correa, CoralUSP, Bia Goes, Arismar Espírito Santo, Fábio Peron, regional Viola Minha Viola com Joãozinho, Escurinho, Arnaldo Freitas, Leandro Madeira (…).

Aqui abaixo, o trecho inicial do roteiro que ficou na cabeça da equipe toda por bastante tempo. O texto foi lido pela neta da Inezita (Paula Maia) e com computação gráfica feita com a letra cursiva da própria cantora. Coisa linda!

TRIBUTO À INEZITA BARROSO

VÍDEO 1 – ABERTURA NARRADA POR INEZITA

(Texto do off lido pela neta de Inezita e coberto com animação do texto escrito com letra cursiva de Inezita, além de algumas fotos)

OFF 1 (Paula): Gostaria de mostrar não um desfile de sucessos, mas sim de que maneira fiquei enredada com a música a tal ponto que fiz dela a minha vida.

SOBE SOM: Soca Pilão (PGM Música Brasileira – 1969) – Início

OFF 2 (Paula): Nasci num domingo de Carnaval em São Paulo. Neste momento, 10 para meia noite, passava pela porta o Cordão Camisa Verde da Barra Funda. Já nasci, portanto, em ritmo de samba paulista.

SOBE SOM: Ronda (PGM Música Brasileira – 1969) – Refrão

OFF 3 (Paula): Toquei primeiro viola caipira, depois violão, depois cantei, declamei, dancei, representei e toquei piano.

SONORA 1: Vox Populi (1980) – nº 143 – Bloco 1
E: 03:46 – “A gente só pode sentir realmente…”
S: 04:30 – “E vou cantar até morrer”

OFF 4 (Paula): (editado) Algumas canções marcaram muito minha vida, as músicas caipiras, as danças gaúchas, temas de folclore puro que recolhi em minhas andanças de pesquisadora…

SOBE SOM: “Mocidade” – Panorama

OFF 5 (Paula): “Serenata” (pausa) revive pra mim tempos de programas infantis nos recitais da professora Mary Buarque.

SOBE SOM: Serenata (versos de Martins Fontes musicados do Mary Buarque)

OFF 6 (Paula): “Viola Quebrada” (pausa) faz a transição de urbano para o interior. “Como é que um homem tão culto e tão famoso como Mario de Andrade pode compor algo tão simples”?

SOBE SOM: Viola Quebrada

OFF 7 (Paula): “Berceuse da onda que leva o pequenino náugrafo” (pausa), O que dizer ainda de Cecília Meirelles?

SOBE SOM: Berceuse da Onda que Leva o Pequeno Náufrago

OFF 8 (Paula): “Maria Macambira” (pausa). Adoro essa história da Bahia

SOBE SOM: Maria Macambira

OFF 9 (Paula): descobri que as coisas mais importantes da vida são simples.

SOBE SOM: “Tristeza do Jeca” – Ensaio (1991)
E: “…” / S: “…”

OFF 10 (Paula): quem não teve na vida uma tia ou uma avó cantando isso? Leva a gente pra longe além do tempo…

SOBE SOM: Leva Eu, Sodade – Viola, Minha Viola – PGM 1551 – Bloco 1
E: “…” / S: “…”

OFF 11 (Paula): “Azulão”. Talvez a mais curta e mais bonita declaração de amor do cancioneiro do Brasil: “diz que sem ele o sertão não é mais sertão”… e precisa dizer mais?

VIVO: Azulão (primeira música do espetáculo, interpretação de Arismar Espírito Santo, Bia Goes e Fábio Peron)

O tempo e o respeito

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Inezita Barroso. Algumas pessoas lhe criticavam publicamente. E outras que não tinha coragem de criticar sua figura passavam a atacar a produção do programa. E todos esses críticos sabiam que a última palavra sempre era dela. Inclusive de todos os nomes que vinham ou não no Viola, Minha Viola. Salvo por problemas técnicos do atual momento da TV Cultura que inviabilizavam gravações grandes, como orquestras ou grupos de outros estados.

Uma dessas agitadoras virtuais fazia e faz do seu pequeno círculo uma projeção de sua sociedade do espetáculo, um espécie de contrabando imaginário, pobre e fragmentado de sua própria mediocridade real. Cospe fogo. Como uma folgada crítica de plantão. Ela e todos esses são drãos. E dragões.

Em tempo, não tenho nenhuma sugestão para substituição de Inezita Barroso no Viola, Minha Viola, da TV Cultura. Ela é uma montanha gigantesca na história da música caipira. Não há ninguém à sua altura. A notinha da Folha de S.Paulo sobre Sérgio Reis e Lima Duarte é de uma ingenuidade infantil. Não tem fonte, não tem nenhum pronunciamento claro. Mais um produto do jornalismo medíocre que temos. E repercute sem limites.

A vida continua, mas o respeito à Inezita é gigantesco. O fato agora é que todas as gravações do programa estão suspensas. Vamos iniciar uma retrospectiva dos 35 anos do programa com as músicas e os convidados que construíram essa história ao lado da Dona Ignez. A força está na raiz. Não nos boatos.

Despeço-me desta grande artista

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Descanse com serenidade! Acabou de completar 90 anos e fechou um ciclo. Despeço-me desta grande artista, mestre e companheira de trabalho. Morre Inezita Barroso. Também morre um jeito de fazer música, um jeito de cantar, um campo vasto da arte brasileira. Morreu serena, tranquila, resistindo bravamente até o último minuto. Mas foi como um passarinho. Genial na música, ela mostrou ao Brasil também um jeito de envelhecer com dignidade e talento. Num país que se amplia na terceira idade, ela mantinha suas reinações. Gravou sua última participação no Viola, Minha Viola no começo de dezembro, aos 89 anos. Não conheço ninguém com história semelhante. A morte foi hoje. Mas de onde a vida surgiu, ela sempre esteve a postos. Obrigado por tudo, Inezita! Sempre!

Inezita Barroso, na linha do tempo

Linha do Tempo Inezita Barroso

(Compilação de dados da vida artística e pessoal da cantora e folclorista Inezita Barroso, elaborada por Aloisio Milani com base em documentos e no acervo pessoal)

1925
Nasce na Barra Funda, em São Paulo, num domingo de Carnaval. Segundo relato dos pais, Inezita nasce enquanto passava na rua do Cordão Camisa Verde.

1940
Participa das inaugurações do Estádio do Pacaembu.

1946
Formou-se em Biblioteconomia no pioneiro curso da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).

1947
Casou-se com o advogado Adolfo Barroso, com quem teve uma filha, mas se separou alguns anos depois.

1951
Lançamento do filme “Ângela”, de Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, em que Inezita atua pela primeira vez no cinema.

1951
Grava seu primeiro 78 rpm não comercial (Gravadora Sinter) com “Funeral do Rei Nagô” (Hekel Tavares/Murilo Araújo) e “Curupira” 9Waldemar Henrique).

1952
Como cantora contratada, Inezita participa da inauguração da Rádio Nacional de São Paulo.

1953
Lança seu primeiro 78 rpm comercial (Gravadora RCA Victor) com “Moda de Pinga” (folclore paulista) e “Ronda” (Paulo Vanzolini)

1954
Protagoniza o filme “Mulher de Verdade”, dirigido por Alfredo Palácios. Ganha o Prêmio Saci de Cinema pelo trabalho.

1954
Estreia de “Vamos Falar de Brasil”, programa inovador de Inezita na TV Record, um dos poucos musicais exclusivos para as cantoras. Programa tinha repertório folclórico e popular, troca de figurinos, cenários diferentes para cada edição. E tudo ao vivo.

1958
Lança seu primeiro Long-play (LP). “Vamos falar de Brasil” (Gravadora Copacabana) traz músicas como “Lampião de Gás” (Zica Bérgami), “Engenho Novo” (Hekel Tavares), “Azulão” (Jayme Ovalle/Manuel bandeira)

1958
Lança o segundo LP, um formato inédito no qual Inezita traz cinco mulheres compositoras e estreantes. “Inezita Apresenta – Babi de Oliveira, Juracy Silveira, Zica Bergami, Leyde Olivé, Edvina de Andrade” (Gravadora Copacabana) é sucesso de crítica.

1962
Lança o LP “Clássicos da Música Caipira” (Gravadora Copacabana) com uma primeira seleção do repertório que marcaria sua carreira na música raiz.

1972
Lançamento do LP “Clássicos da Música Caipira – Volume 2” (Gravadora Copacabana).

1980
Primeira aparição no Viola, Minha Viola, programa concebido por Eduardo Moreira e apresentado por Moraes Sarmento e Nonô Basílio.

1980
Após saída de Nonô Basílio, Inezita assume a apresentação do programa o lado de Moraes Sarmento.

1987
Estreia o programa “Mutirão”, na Rádio USP, no qual dirigiu e apresentou artistas da música raiz por nove anos.

1990
Estreia o programa “Estrela da Manhã”, na Rádio Cultural, a convite da então gerente Maria Luiza Kfouri. Fica por nove anos no ar como a “porta-voz” no rádio de dezenas de duplas caipiras do país.

1997
Torna-se a única apresentadora do Viola, Minha Viola, da TV Cultura.

2004
Recebe a medalha da Ordem do Mérito Cultural por sua obra na música.

2005
Recebe a Medalha Inconfidência pela sua obra.

2005
Título de doutora honoris causa pela Unicapital (SP), onde lecionou folclore.

2005
Comemorações de 25 anos do Viola, Minha Viola e dos 80 anos de vida na Sala São Paulo.

2009
Recebe a medalha Ordem Ipiranga pela sua obra artística.

2010
Comanda a comemoração dos 30 anos do Viola, Minha Viola no Auditório Ibirapuera.

2013
Recebe o Prêmio Governador de São Paulo na categoria música.

2014
Lançamento do primeiro DVD comercial da carreira: “Inezita Barroso – Cabocla Eu Sou”, gravado ao vivo no Teatro Franco Zampari.

2014
Foi eleita para a Academia Paulista de Letras em substituição à folclorista Ruth Guimarães.

2015
Faleceu dias após completar 90 anos. Foram quase 70 anos de carreira em cerca de 100 discos lançados. Deixou uma filha, três netas e cinco bisnetos.

 

Mais que dois viajantes

por Aloisio Milani e Xandra Stefanel
Revista do Brasil, edição 63

Chico, 31 anos, enxerga o pai, de 66, como inspiração cotidiana (foto © Jailton Garcia)

Os dois acordam ao som dos passarinhos. Para chegar aonde vivem pai e filho, é preciso subir a Serra da Cantareira, contornar as curvas da Estrada da Roseira e vencer um emaranhado de ladeiras. A casa de Chico Teixeira tem uma varanda ampla, com vista para um quintal gramado e um lago. Na porta da cozinha, o pai e vizinho, Renato, acende um cigarrinho de palha. O clima de roça entra e instala-se no sofá. Ao violão, cantarolam Pai e Filho, versão do hit de Cat Stevens que está no disco recém-lançado de Chico Teixeira, Mais Que o Viajante. Renato inicia suavemente a letra que aconselha o filho a ficar em casa. A resposta de Chico vem em voz grave. A música é um diálogo sobre o filho indo embora. “Isso toca as pessoas porque são valores folk, são coisas do povo”, diz Renato, que é pai de quatro filhos e avô de seis netos.

Ele nasceu em Santos e passou a infância em Taubaté. Tornou-se compositor e frequentou festivais da Record cantado por Gal Costa, Roberto Carlos e Elis Regina. Identificou-se com a música caipira. Também compôs – e ainda compõe – jingles inesquecíveis. Gosta de lembrar a estética inovadora criada com o parceiro Sérgio Mineiro no Grupo Água. O arranjo para a música Romaria, por exemplo, surpreendeu Elis Regina, que decidiu-gravá-la com as mesmas nuances­. “O conceito era pegar o que o povo diz e transformar em música.”

Chico, 31 anos, enxerga o pai, de 66, como inspiração cotidiana. Conviveu desde menino com seus muitos parceiros, entre eles Zé Geraldo, Pena Branca, Zé Gomes. Em seu segundo disco, Chico gravou composições próprias e desenterrou a saborosa Saudade Danada, de Elpídio dos Santos, compositor das trilhas dos filmes de Mazzaropi. O álbum conta ainda com Dominguinhos, Gabriel Sater e o próprio filho de 5 anos, Antonio. Nesta entrevista, pai e filho falam sobre música, inspirações, jingles, pirataria e os novos projetos.

Quando o Chico começou a tocar, ele foi na fazenda do Almir Sater. Foi passar 15 dias e ficou dois meses. Quando acabou o colégio, disse: “Pai, meu negócio é música, não vou pra faculdade”. E eu: “Tá bom”. Faculdade de Música, jamais!

Vocês estão juntos em diferentes turnês. Shows­ do DVD Amizade Sincera, apresentação solo do Renato e o disco do Chico. Como conciliar tantos trabalhos e conquistar o público?
Renato Teixeira – Nosso público não está necessariamente na capital. Está no interior. A atividade cultural de São Paulo é fortíssima, mas é muito concentrada em determinados tipos de público.
Chico Teixeira –Tem vários guetos musicais em São Paulo. O rock underground, por exemplo, tem uma cena forte, que funciona. Mas é diferente quando falamos da música que vem do interior e emociona…
Renato – Até 1970, a música brasileira era bem dividida. Bossa nova, samba, nordestina, boleros. E a música caipira estava encerrando um ciclo genial. Nesse momento, o Sérgio Reis, a dupla Léo Canhoto e Robertinho e eu começamos a mexer com essa música. Minha influência do caipira vem de Monteiro Lobato, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. E Léo Canhoto e Robertinho mostraram que a dupla não precisava ser só aquele modelo tradicional, que podia ser o que vemos e ouvimos hoje com Chitãozinho e Xororó. Aí o terreno ficou fértil. Foi quando passou a vir o lastro para esse nosso lado: Inezita (Barroso), Rolando Boldrin, Pena Branca e Xavantinho…

Isso depois de Elis gravar Romaria, em 1977?
Renato – Foi. Isso é uma conquista, não é da noite para o dia, demora anos. Eu já tinha RomariaTocando em FrenteAmanheceu, Peguei a ViolaFrete – enfim, todos os meus sucessos. Mas quando ia tocar só havia dez pessoas na plateia.

Em 1992, aquele disco histórico com Pena Branca e Xavantinho ao vivo, em Tatuí, fez muito sucesso.
Renato –  
E foi tudo na raça, na intuição, sem apoio.
Chico – Meu pai cantando Rapaz Caipira naquele disco é a resposta para aquele momento.

Você estava lá, Chico? Nos bastidores?
Chico – Eu tinha uns 11 anos. Acompanhava a movimentação toda com Pena Branca e Xavantinho em casa. Nesse show eu não estava, mas vi os ensaios. A gente morava na casa da Elis Regina e lembro uma época em que eles iam quase todo dia lá. Acompanhei desse jeito. Depois fui tocar com o Pena Branca, já com 20 e poucos anos. Em seguida, com meu pai. Em 2003 entrei pra tocar no show inteiro. Éramos eu e ele. Nos primeiros discos do meu pai, na fase mais folk, sempre havia grandes violeiros: Natan Marques, Carlão de Souza. Pensei: “Pô, vou seguir esses caras”.
Renato –  Ele começou viajando junto, passou a ajudar numa coisinha aqui, outra ali, depois tirou carteira e ajudava a guiar. Às vezes eu o convidava para entrar e cantar uma música. Quando precisou, estava pronto. Conhecia todo o processo. O violão de 12 (cordas) é um instrumento fundamental pra esse tipo de som. Conheceu o Carlão. Depois, o Natan.
Chico – Também convivi com o Zé Gomes, um cara superconceitual, tocava rabeca.
Renato – Pois é, estamos falando de músicos que estão entre os melhores do mundo. Quando o Chico começou a tocar, quando começou a sair som, ele foi na fazenda do Almir Sater. O violeiro precisa de uma base pra poder solar, e ele ficou acompanhando o Almir.
Chico – Fui passar 15 dias lá e fiquei dois meses. Foi mágico vivenciar aquilo, o som da viola caipira.

Peguei a música de Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, os cults. Esses caras entravam no estúdio, ligavam um microfone pra cada um e gravavam um LP em duas horas

Então você sabia que trabalharia com música?
Chico – Saber, não sabia, mas nunca passou pela minha cabeça fazer outra coisa.
Renato –  Nem na minha. Desde que nasci a minha casa sempre foi assim, cheia de violão (mostra os violões de Chico expostos na sala). E o Chico reproduziu isso. Eu falava que queria ser arquiteto, mas por quê?   Porque música é arquitetura. Eu ia muito lá na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), assistia a aulas.
Chico – Ele até fez uma casa em Ubatuba (risos).
Renato –  Eu nunca cheguei no Chico e disse: “Você vai ser músico”. Ele vai ser o que quiser!
Chico – Tem o lance do DNA, tem até um estudo, um livro que fala sobre a cabeça do músico… Meu pai ficou fazendo música em casa, no começo dos anos 1980, que era (a época) da baixa, a Elis tinha acabado de morrer também. Foi um tempo meio frio em que ele foi fazer publicidade, nos anos 1970, comecinho dos 1980.
Renato – Eu comecei a fazer publicidade para “calibrar­”.
Chico – Ele trabalhava muito em casa, fazia trocentos jingles numa levada. E eu sempre perto. Tem fotos dele compondo e eu lá, puxando o cadarço dele. E ele casou com a minha mãe, que era apresentadora de telejornal e pianista clássica desde a infância.
Renato –  Uma coisa superengraçada tanto na música dele como na dos meus filhos (todos). Quando eles estavam brincando, a Sandra tocava a tarde toda. Pianista clássico estuda muito.
Chico – Enlouquecedor (risos).
Renato –  Eles jogavam bola ouvindo aquele piano tocar estudos. Impressionante como essa prática acabou influenciando a música deles.
Chico – Com certeza.
Renato – Tanto que, quando o Chico se formou no colégio, ele chegou pra mim e disse: “Pai, meu negócio é música, eu não vou pra faculdade”. E eu disse: “Tá bom”. Faculdade de Música, jamais!
Chico – Ah, é. Teve um período em que eu até pensei, mas o Zé Gomes, nesses jogos de xadrez, dizia: “Ô, rapaz, não vai fazer aula! Você vai sair padronizado. Vai demorar mais um pouco, mas você chega lá”. O Yamandu Costa ficava estudando direto com o Zé Gomes, o Almir também…

Quantos filhos você tem, Renato?
Chico – Quatro. A Isabel, Bel Teixeira, que é uma grande atriz, ganhou Prêmio Shell…
Renato –  A Antonia, que é música também, mas mexe com vídeo. É uma grande editora de vídeo.
Chico – Eu e o João. Acho que é isso, né, paizão?

Meu pai ficou fazendo música em casa, no começo dos anos 1980, época da baixa. Fazia trocentos jingles de publicidade numa levada. E eu sempre perto. Tem fotos dele compondo e eu lá, puxando o cadarço dele

Poderíamos comparar o trabalho independente do Renato, no Grupo Água, e o seu, Chico, agora?
Renato – Aí tem uma sequência interessante. Eu peguei a música caipira das duplas, Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, as duplas que eu gostava, os cults – porque já tinha os apeladores também. Esses caras entravam no estúdio, ligavam um microfone pra cada um, violão, e gravavam LP em duas horas. E, quando o ciclo se cumpriu, como é que a gente releu isso? Montamos o Água, que hoje considero uma das bandas mais importantes da história da música brasileira. Viemos com um acústico pesado, que acabou jogando a gente pro conceito folk – que na verdade é o princípio da música popular. Até em 1700, a música era medieval, aquela coisa renascentista, com cravos e alaúdes… Aí um desses músicos um dia saiu para passear no campo e viu os caras capinando e cantando aqueles cantos de trabalho. Viu as lavadeiras lavando roupa e cantando. Ele ficou prestando atenção, decorou e botou os instrumentos em cima. Aí o cara disse: “Isso é folk, essa é a música do povo, harmonizada por músicos”. Você pega o que o povo diz e pensa e transforma em música. Romaria, por exemplo. Baden e Vinicius são absolutamente folk. O samba é totalmente folk. Noel Rosa!
Chico – Você pega Tocando em Frente, é uma música que pode mudar sua vida.

Naquela época o Água já se considerava folk?
Renato – A gente não tinha essa consciência.
Chico – Eu vejo nitidamente que a sonoridade do Almir vem daí.
Renato – O Almir estava estudando Direito no Rio e viu o Água.
Chico – Aí mudou a vida do cara.
Renato – Ele viu um cara tocar viola, se interessou e comprou a viola. “É isso o que eu quero”, disse. Uma coisa foi puxando a outra. Acho que o trabalho dessa meninada, do Chico, do Gabriel, filho do Almir, da Nô Stopa, filha do Zé Geraldo – que é folk total –, vai fazer o galo cantar.

Os filhos também são amigos, não?
Chico – Sim. E o Zé Geraldo também, direto a gente faz comida, janta, eu vou na casa dele…

Essa Cantareira está ocupada!
Renato – Tem músico pra todo e qualquer lado.
Chico – Você toca o sino e junta uma banda.

Uma coisa do disco novo remete aos dois: o Elpídio dos Santos. Essa música de Taubaté e São Luiz do Paraitinga, ali perto de onde o Renato passou a infância.
Renato – O Elpídio frequentava a casa da nossa família em Ubatuba. Ele e o Adolfinho são músicos muito parecidos, todos semiclássicos.
Chico – Eu fui descobrir o Elpídio na minha adolescência, indo para Ubatuba. Tinha uma parada que era tradicional em São Luiz. Quando comecei a viajar sozinho com os amigos, eu ia lá. Acabei encontrando os filhos do Elpídio, o Negão, grande amigo meu. Fui conhecendo coisas belíssimas! Ele era um músico absoluto, de ouvido absoluto, que escrevia tudo e frequentava a casa dos parentes em Ubatuba. Rolava esse intercâmbio. Eu me aproximei do Negão e, no centenário do Elpídio, no ano passado, fizeram um projeto superbonito em comemoração e me convidaram pra cantar Saudade Danada. Fiquei meio surpreso, mas a música caiu no meu colo. Eu gravei e coloquei no show do Renatão.
Renato – Mas nosso grande momento no palco é a música do Cat Stevens Pai e Filho. Ouço desde que foi lançada. E o Chico começou a tocar e disse: “Pai, vamos fazer a versão?” É legal porque é um filho se despedindo do pai para ir tocar a vida. É aí que está o combustível da sedução: conseguir tocar as pessoas. Um filho indo embora de casa toca as pessoas.
Chico – Tem dia que a gente fica preocupado. “Olha o tanto de gente chorando!” Impressiona.
Renato – E na música tem uma coisa em que acredito: a única moeda forte no planeta hoje, o único dinheiro que vai sobrar chama-se emoção. Se você consegue emocionar uma pessoa, não tem preço.

E dá para fazer isso até com jingle…
Renato – Principalmente. Se você fizer um jinglezinho meia-boca, passa batido. Agora, se pegar o cara pelo coração, vai vender. Emoção serve pra tudo.
Chico – Para cada jingle, ele fazia cinco músicas, tá? (risos)

Na gravação de Ouça Menino, a participação do seu filho foi natural ou ensaiada?
Chico – Foi natural. Eu o levei pro estúdio porque não tinha com quem deixá-lo. Fiz essa música pra ele. Mas não foi só. Ele gravou mais coisa porque o deixei brincar. Ele fez uns improvisos bem legais. Imagine, pra uma criança, entrar num estúdio, botar o fone, o microfone, aquele som lindo, ficar falando e a música tocando… Eu não fico cutucando muito porque acho que a coisa tem de ser natural, como foi pra mim. Tanto é que está cheio de violão aqui e de vez em quando ele vai e dá uma arranhadinha. Ele tem o maior respeito por violão, nunca deixou cair nem nada. Eu confio. Meu pai, graças a Deus, sempre presenteou a gente com instrumentos top, e eu confio.
Renato – Cada vez que vinham pedir instrumento, nunca dei um meia-boca, para irem se acostumando com os bons. Essa geração nova tem muito mais recursos para trabalhar com música. Tanto que nós estamos fazendo aqui em casa um estúdio. Em geral, o artista, quando começa a investir, compra fazenda. Aqui, a gente só compra coisas que tenham a ver com música. O estúdio é caro, mas vamos gravar nossos discos aí. E os netos vão gravar os deles também.

Como vocês veem o compartilhamento de músicas? A pirataria faz com que vocês deixem de ganhar?
Renato – Por enquanto, até sair um jeito de ganharmos. Para o Chico, é uma dádiva dos céus. Pra mim, é uma vingança contra as gravadoras (risos). A gente não precisa mais delas, e isso é muito bom.

Qual é o próximo projeto?
Renato – Estou com um projeto tão lindo neste ano! Não ficou pronto ainda, mas vou fazer um disco com a minha neta de 10 anos, vou compor junto com ela. Enquanto eu estiver por aqui, com cada neto que estiver na fase dos 10 anos quero fazer um disco junto. São seis netos.
Chico – Antes ele fazia música para nós. Cada filho dele tem uma música.

Renato, você se vê mais novo no Chico?
Renato – É igualzinho. E com eles atuando, eu me modernizo. Estou vinculado a eles agora. Eu me desprendi daquelas minhas influências de Noel Rosa, de Ary Barroso, e acabei me prendendo a eles.
Obs.: entrevista publicada originalmente na Revista do Brasil na edição de setembro de 2011. Veja link.

Em busca do tempo perdido

Projeto da Nova Lei do Direito Autoral tenta aumentar a presença do Estado e acabar com atrasos do setor, mas enfrentará resistência dos intermediários das obras culturais

Aloisio Milani
Da Retratos do Brasil

O direito autoral no Brasil está numa encruzilhada, acuado entre os exemplos de seu atraso. Nas universidades e faculdades, alunos tiram cópias de livros para estudar a bibliografia sugerida pelo professor. Em outro lugar, internautas trocam arquivos mp3 usando softwares pier-to-pier para, depois, serem ouvidos em players portáteis e celulares. Enquanto isso, bibliotecas trabalham entre a cruz e a espada na preservação e digitalização de obras raras. Se não reproduzirem os livros velhos, podem perdê-los, mas precisam encontrar e negociar os direitos de cada obra para poder salva-las. E mesmo quando o protagonista da “reprodução” é o próprio autor, a lei não o ajuda. A trupe musical Teatro Mágico já foi multada por ter feito um bis em um show com uma canção própria, mas que não estava na lista aprovada no Ecad – órgão que cobra por execuções públicas de músicas.

Todas essas situações, bastante cotidianas, têm algo em comum: são crimes previstos em lei, porque não possuem autorização expressa dos autores e/ou detentores dos direitos. A Lei nº 9.610, sancionada em 1998, é o centro dessa polêmica. Com pouco mais de uma década de existência, a legislação é a única arma para proteger artistas e intelectuais. É abrangente para tratar de livros, cinema, teatro, música, mídia, educação e conhecimento científico, mas não contempla usos já incorporados pela sociedade, nem protege totalmente seu autor – muitas vezes, refém de intermediários que se apropriam da maior parte do lucro das obras. Tampouco a lei indica soluções para um mundo que se “digitaliza”. São essas as regras que ditam o formato de toda estrutura da economia da cultura. Uma cadeia produtiva que movimenta bilhões de reais.

“A Lei de Direitos Autorais como existe hoje não dá conta da proteção efetiva do autor e não tem mecanismos para que a obra circule de maneira mais democrática”, avalia Guilherme Varella, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), um dos articuladores de uma rede de 20 entidades da sociedade civil que apóiam o governo na reforma da lei. “A rede acredita que, além da função privada de proteção do autor, a lei precisa levar em conta a esfera pública. E ela deve ser contemplada para a consagração de outros direitos também fundamentais, como o da educação, cultura e acesso ao conhecimento”.

Quem lidera a formulação de um novo projeto de lei dentro do governo é o Ministério da Cultura. O debate começou três anos atrás com a realização do Fórum Nacional do Direito Autoral. Oito seminários e 80 reuniões com representantes do setor também foram feitas. Muitas propostas foram enviadas e incorporadas ao projeto. O tema dominou a pauta de cinco reuniões do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), tamanha as relações com as demais áreas do governo. Onze pastas estavam na discussão. A minuta do texto foi concluída e submetida à Casa Civil para consulta formal dos ministérios. A íntegra do projeto ficará disponível na internet para receber contribuições e questionamento formais.

“Temos três princípios maiores com este projeto”, explica o coordenador de Direitos Autorais do Ministério da Cultura, Marcos Alves de Souza. “O primeiro é equilibrar a relação do autor com o intermediário, porque a lei hoje privilegia mais o investidor. Precisamos adotar dispositivos, hoje já existente no Código Civil, que permitam a revisão de contratos desfavoráveis ao autor. O outro princípio é melhorar a relação entre os titulares dos direitos autorais e a sociedade. Ou seja, são os usos justos que regem o cotidiano e que não prejudicam a exploração da obra. Isso está representado hoje na lei no capítulo das limitações [artigo 46]. Queremos equilibrar os direitos dos titulares com o direito da população de ter acesso à informação e cultura. O terceiro princípio diz respeito ao papel do Estado, porque a legislação atual tem uma interpretação focada no direito privado, mas há também o interesse público nas relações de consumo, fruição e conhecimento. Precisamos retomar esse papel”.

Qualquer relação entre a obra e sua reprodução é influenciada por essa lei. E há sinais de que ela ainda não consegue abranger o autor em todas as etapas da produção cultural. No audiovisual, por exemplo, roteiristas e diretores pleiteiam há anos receber pela exibição pública das produções. Isso hoje não é possível pelo formato da Lei 9.610 e pela falta de organização da classe. Não existe a figura arrecadadora do cinema, como existe o Ecad para a música. “Não descartamos a função fiscalizadora que eventualmente o Estado possa exercer, mas julgamos que a arrecadação e distribuição dos direitos é tarefa particular e privada”, afirma o presidente da Associação dos Roteiristas de Televisão, Cinema e Outras Mídias, Marcílio Moraes, em documento recente da entidade.

No caso da educação, estão em questão todos os materiais, em qualquer suporte, utilizados como apoio didático, em sala de aula ou no ensino à distância. Para mapear esse setor, o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI) da Universidade de São Paulo elaborou o estudo chamado “O mercado de livros técnicos e científicos no Brasil”. Ao avaliar os livros exigidos no primeiro ano de dez cursos de graduação da USP, os pesquisadores indicaram que um terço da bibliografia estava esgotada, e para a grande maioria dos estudantes, a compra da bibliografia indicada comprometeria quase a totalidade da renda mensal familiar.
Para Pablo Ortellado, um dos coordenadores da pesquisa, a atual Lei do Direito Autoral ainda impede o trabalho de instituições do patrimônio cultural e artístico, porque exige a autorização dos titulares de direito mesmo para tirar uma cópia integral de preservação. “E como, muitas vezes, não se consegue localizar o titular, porque as obras são muito antigas, ou se faz a cópia na ilegalidade, ou se pode perder o acervo”, diz. “Também há uma enorme vigência do direito autoral por aqui – a lei protege toda a vida do autor, mais outros 70 anos depois de sua morte. Isso é em média 20 anos a mais que em outros países. Se uma editora que tem os direitos de publicação, não o faz, a obra não circula”.

Mas é no setor musical que se ouve o maior número de oposicionistas ao anteprojeto, sobretudo quanto à possibilidade de criação de um órgão estatal que regule a cobrança e distribuição dos direitos autorais. Hoje, essa etapa é auto-regulada. Associações privadas organizam suas próprias regras de fiscalização. Entidades de artistas, compositores e advogados fazem a gerência do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) – um órgão não-estatal que comanda as regras do setor. Em 2009, por exemplo, arrecadou R$ 374 milhões com a cobrança de direitos em rádios, televisões, shows, bares, cinemas, festas etc. Os gritos de oposição dessas entidades se baseiam no temor de que o projeto rompa com a rotina e os métodos de trabalho construídos há anos.

A superintendente nacional do Ecad, Glória Braga, já argumentou publicamente que a lei atual é “nova” e cumpre sua função. Procurada, a superintendente não quis se pronunciar mais uma vez antes de ler a íntegra do anteprojeto. A mesma foi a resposta do músico Danilo Caymmi, que há havia criticado por várias vezes a iniciativa. “Prefiro me pronunciar quando tiver o projeto na mão, porque até agora só foi muito discurso para pouca ação”, resumiu. Caymmi foi um dos artistas que esteve presente na criação do Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, grupo que questiona a proposta apresentada pelo governo. No lançamento do comitê, o presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), Roberto Mello, engrossou o coro com um manifesto. “Esse movimento ocorre às escâncaras, na certeza que assim criarão um abismo de interesses entre criadores e ingênuos”, leu Mello durante o evento em abril. Para ele, existe a “clara” intenção de alterar as estruturas que dizem respeito “única e tão somente às classes que têm direitos autorais”.

A encruzilhada de problemas fica mais complicada ao unir ao debate a prática constante e generalizada do “jabá” – prática das gravadoras de injetar dinheiro em canais de rádio e televisão para tocarem seus artistas. Alavancam seus produtos às listas de músicas mais ouvidas e, com isso, recebem mais direitos autorais. Um dinheiro que vai e volta, embora a fórmula não seja admitida em público pelas entidades. “A ironia é que são justamente transações privadas e secretas ocupando rádios e TVs, que são, por essência, concessões públicas e deveriam primar pela diversidade musical”, diz Fernando Anitelli, líder do grupo Teatro Mágico.

De acordo com Marcos Alves de Souza, do Ministério da Cultura, a criação de uma instituição que cuide especificamente de direito autoral só será feita ao final do processo de discussão e aprovação do projeto de lei. “Primeiro, precisamos saber qual o tamanho das novas competências. Sobre as sociedades de distribuição coletiva, o que existe hoje é um monopólio legal só que sem qualquer tipo de supervisão estatal. O projeto prevê isso justamente para garantir transparência, critérios justos e uma instância de resolução de conflitos, porque hoje todos eles deságuam no judiciário”, diz. “Claro que a proposta provoca reações. Eventualmente pode haver um temor desmedido sobre estatizar as sociedades, mas não se trata disso. Não vamos assumir o papel dessas entidades, inclusive porque são elas que cuidam do âmbito privado. Nossa intenção é dar mais proteção aos autores. Quando isso ficar claro, o diálogo vai melhorar”.

A discussão no ambiente da música e dos livros deve ditar os rumos do projeto porque interfere no modelo já construído de negócio. Por outro lado, na contramão deste processo, há um novo mundo surgindo no qual o Brasil engatinha em regulação: as novas tecnologias de acesso a acervos de conteúdo artístico e cultural. A internet facilitou tremendamente o acesso, assim como a capacidade de se fazer cópias privadas e em larga escala. A simples navegação na rede se baseia, tecnicamente, em cópias de arquivos de texto, fotos, vídeo e áudio. Tudo que deriva disso não está contemplado pela legislação. “O difícil é que estamos precisando revolver os problemas analógicos para começar a buscar as soluções para o digital. Nenhum país conseguiu ainda resolver essas novas questões”, reconhece Marcos Alves de Souza.

No saldo da encruzilhada do direito autoral, o desafio maior é como colocar na mesa de negociação interesses tão díspares, do privado e do público, num ano político curto, com Copa do Mundo, eleições presidenciais e logo atrás da já difícil articulação do projeto de mudança da Lei Rouanet, que altera o formato do incentivo à cultura feita por renúncia fiscal.

Fonte: Retratos do Brasil (julho de 2010)
http://www.oficinainforma.com.br/

Pena Branca: o encantador de cuitelinhos

Ao lado do irmão Xavantinho, Pena Branca é dono de um invejável cancioneiro sobre o homem do campo. Leia a seguir um perfil recheado por entrevistas recentes concecidas a mim em que Pena Branca fala da vida e das cantorias. Texto publicado originalmente no jornal Brasil de Fato.


Pena Branca dedilha a viola na varanda esperando o “bichinho sem-vergonha”

A varanda da casa no Jaçanã, no caminho da Serra da Cantareira, em São Paulo, era um pequeno paraíso: “lugar das ‘prantinha’ e dos ‘passarim’”, dizia Pena Branca. “Ali, também toco minha viola”. O instrumento de dez cordas era de estimação, cravado no tampo seu nome, preso ao pescoço com corda fina. O braço da viola ainda era outra farra. O cantor foi fotografado certa vez com o truque matuto de pendurar na viola um bebedouro de beija-flor. Então, só aguardava os “cumpanheiro”. “Mano, cuitelinho é um bichinho sem-vergonha, qualquer água com açúcar ele vem mesmo”, comentava às risadas. Pena Branca nunca ficou rico com sua música, mas vivia exclusivamente dela desde a década de 1980, quando abriu com o irmão Xavantinho uma nova trilha entre os caipiras. Morreu no dia 8, depois de um infarto fulminante, dentro de casa. Aos 70 anos, com alma de criança, Pena Branca partiu e findou a história de uma das principais duplas da música de raiz.

José Ramiro Sobrinho – nome de batismo de Pena Branca – nasceu no dia 4 de setembro de 1939, poucos dias depois da invasão da Alemanha sobre a Polônia, na Segunda Guerra Mundial. Mas a pequena Igarapava, no interior paulista, era bem longe. As notícias só chegavam pelo rádio na colônia de trabalhadores da fazenda Usina Junqueira, onde o pai de Pena Branca morava. Família de negros fortes, frondosos, bonitos. Na mesma cidade, no mesmo ano, havia nascido Jair Rodrigues, outro negro da música. Em entrevistas gravadas com o autor deste artigo nos últimos anos, Pena Branca contou sua história. “Com 10 dias de vida, meu pai se mudou com a gente para Cruzeiro dos Peixotos, uma vilinha perto de Uberlândia”, dizia. Pena Branca se tornou mineiro de criação. “Comecei a falar muito ‘uai, né’”, brincava, “e meu irmão Xavantinho é mineiro de inocente”. Ambos conheceram cedo as festas religiosas enfeitadas de música. Acompanhavam o pai, tocador de cavaquinho, nas folias de reis para adorar o menino Jesus e nas congadas em devoção à Nossa Senhora do Rosário.

Do Cio da Terra – “Naquela época a gente tomava conta de uma fazenda. Quem era arrendatário era arrendatário. Quem era meieiro era meieiro. A gente arrendava, mas era tanto tempo ali que sentíamos como se a terra fosse nossa”, disse. Pena Branca era três anos mais velho que o irmão Xavantinho – na verdade, Ranulfo Ramiro Sobrinho. O mais antigo Pena Branca, encantador de cuitelinhos aprendeu viola, o mais moço, violão. No começo, viver a música era ver o pai. Por pouco tempo, porque ficaram órfãos muito cedo, aos 12 e 9, respectivamente. Ambos foram então para a lavoura, semear o sustento da mãe e cinco irmãos. As toadas e modas de viola agora dividiam o tempo com a enxada e o arado. “O ‘cabôco’ na roça, quando assim passa por uma tormenta, igual nós que ‘perdêmo’ nosso pai, fica de cara achando que ir para a cidade é boa saída. Mas chega aqui e não é assim. Se puder escolher, penso que o ‘cabôco’ passa ‘mió’ na roça, ‘quietim’”. Para ele, o que interessa mesmo é o trabalhador ter “Tonico e Tinoco”. Sabe o que é? “Arroz e feijão, isso não pode faltar na mesa”. Pena Branca lembrava que essa rotina de fazenda levou 30 anos de sua vida. Fez os estudos até o “quarto ano”, nada mais. Só conseguiu se dedicar à cantoria depois de adulto.

No Triângulo Mineiro, a dupla se apresentava nas fazendas e nas pequenas rádios. Começou com um nome pomposo, dado por um coronel: Peroba e Jatobá. Mas não gostaram. Na semana seguinte, já era Barcelo e Barcelinho. Um dia, na escola, a professora falava dos índios. “Ela disse que tinha uns índios ainda muito fortes, os xavantes. Aí, eu olhei ‘pro’ meu irmão e disse: ‘tá aí’! O que acha de Xavante? Ele gostou. E o Xavante não tem fi lho? Xavantinho, uai”, recordava. Esse foi o nome da dupla até a partida de Xavantinho para a capital São Paulo em 1968. Ele estava empregado na transportadora Caçula como motorista de caminhão. No ano seguinte, arrumou um emprego da mesma companhia para trazer o irmão mais velho e reunir a dupla de outrora. Na chegada da capital, buscaram rádios sertanejas e festivais de viola. “A gente ‘ralemo’ demais”, contava. De cara, um revés. Já existia em São Paulo uma dupla com o nome de Xavante. Pena Branca falava: “Eles vieram para nós e falaram que podíamos comprar o nome deles. Aí pensamos: o que é isso? Nós, que viemos pobres de Minas e temos que comprar nome agora. Isso é esquisito demais. Aí virou Pena Branca e Xavantinho de 1970 para cá”.

Estrelas com raízes – A dupla dos irmãos Pena Branca e Xavantinho era como se fosse um só. Formaram desde pequenos uma relação perfeita de vozes, como tinham os ídolos Tonico e Tinoco. Ao estilo caipira, divididas em terças, as vozes eram coringas. Uma olhada de lado ou uma batida de viola os fazia trocar quem soltava primeira e segunda vozes. Os tons agudos dos dois faziam a diferença. Chegavam às finais dos festivais de música, mas ainda não levantavam o voo do sucesso. Em 1980, numa apresentação da orquestra de viola de Guarulhos com a cantora Inezita Barroso, foram notados como as vozes mágicas do grupo. “Eu cantava e não acreditava no que ouvia atrás de mim. Quando terminamos, virei e disse que precisavam sair da orquestra para lançar a dupla em disco. Eles eram muito bons. Pena me chamava de madrinha até hoje”, conta Inezita Barroso, na época estreante no comando do programa Viola, minha viola. “Assim, eles se apresentaram pela primeira vez no programa cantando ‘Velha morada’ e ‘Cio da terra’. Foi lindo”. Começava a carreira com 10 discos gravados – após a morte de Xavantinho, em 1999, Pena Branca seguiu carreira solo e gravou mais três discos, sendo que um ganhou o Grammy Latino de melhor disco sertanejo.

Colecionaram amigos na música caipira. Eram adorados. “E dobra esse carinho aí para a MPB”, dizia Pena Branca. Isso porque misturaram os gêneros dentro do sotaque caipira. “Não existia isso antes. Era cada um no seu canto. Aí gravamos ‘Cio da Terra’. A gente levava na rádio sertaneja e eles falavam que aquilo era MPB. Na rádio de MPB, eles diziam que era coisa de caipira. Era de lá para cá”, divertia-se Pena Branca. O cantor lembrava que um crítico musical paulistano dizia que Milton Nascimento tinha assinado o próprio atestado de óbito ao gravar com a dupla, “uns desconhecidos”. “Mas prefiro não falar o nome dele não. Deixa ele no anonimato agora que é mais gostoso”, dizia. No rol de compositores da MPB que gravaram, estão: Milton Nascimento, Chico Buarque, Renato Teixeira, Guilherme Arantes, Théo de Barros, Djavan, Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Dominguinhos, Ivan Lins, Paulo César Pinheiro, João Pernambuco, Hermínio Bello de Carvalho e vários outros. “Era queijo com marmelada para fazer Romeu e Julieta… quer dizer, é goiabada, né? (risos)”, resumia Pena.

“Os óio se enche d’água” – “O disco que fiz com eles, em 1992, ao vivo em Tatuí é um marco na minha carreira e na deles”, conta o amigo Renato Teixeira. Pena Branca adorava a música “Cuitelinho”, folclore recolhido e adaptado por Paulo Vanzolini. A música era figurinha carimbada em seus shows. Depois de 1999, contudo, se sentia sozinho. A morte precoce do irmão Xavantinho, de uma doença degenerativa na medula, o levou a seguir carreira solo. Precisava continuar a cantar. Era o que sabia fazer e ainda precisava se sustentar. Mantinha um grupo de amigos músicos para se apresentar em Uberlândia e outro em São Paulo. Emocionava-se sempre com a lembrança do irmão, segundo ele, “o cabeça da dupla, o estudado, o letrista, é uma parte de mim que foi embora”. Várias pessoas lhe diziam que viam ou sentiam a presença do irmão em seus shows. Pena acreditava. “Eu sinto o mano ‘véio’ mesmo. Ele me ajuda demais. E rezo muito para ele”, falava. “Ele divide espaço com meu anjo da guarda”.

Caipira de nascença e criação, Pena Branca vivia na zona norte paulistana há mais de 40 anos. Montava ali o seu reduto roceiro. Gostava de comer em casa, cozinhava muito bem, não abria mão de um queijo fresco. Sua última apresentação na TV foi justamente no Viola, minha viola onde cantou “Vaca Estrela e Boi Fubá”, “Peixinhos do mar” e “Cio da terra”. No dia de sua morte, dizem os amigos, teve um dia normal, até tocou viola. Passou mal no começo da noite, depois de um dia de forte calor na capital. Socorrido após o infarto, não resistiu. Foi enterrado no túmulo onde está o seu irmão, Xavantinho. Novamente juntos. A dupla de pretos com nome de índios, bem brasileiros.

Haiti.Org: jornalismo solidário e colaborativo

Lançamos uma rede de comunicadores, intelectuais, artistas e ativistas para discutir o futuro do Haiti nesse momento em que a tragédia do terremoto assombra o país. O projeto Haiti.Org começa como um site jornalístico sobre o Haiti, que reúne, em primeira mão, notícias, produções multimídia, análises críticas, artigos e entrevistas, documentos e traduções, por meio do trabalho de jornalistas independentes e usuários colaboradores. Será espaço de jornalismo independente, solidário e colaborativo. É resultado do trabalho desenvolvido e coordenado pelo mim, Aloisio Milani, em parceria com os jornalistas Rodrigo Savazoni e André Deak. E aberto a todos que queriam se solidarizar com o Haiti e colaborar com alternativas concretas para sua reconstrução. Para saber mais, vá para a página do projeto. Nos próximos dias estarei por lá a escrever e articular ações relacionadas ao tema.

Haiti e o “estado de sítio” permanente


Artigo meu publicado para o site OperaMundi, disponível neste link
aqui.

Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante. Quando não “treme” pela pobreza extrema – aqui entendida como desemprego epidêmico, fome crônica e a ausência de saúde e educação públicas -, é a vez das crises políticas e das tragédias naturais: tempestades tropicais, enchentes e furacões. Para dar um exemplo, quatro furacões deixaram cerca de mil mortos e 18 mil desabrigados em 2008. Corpos apodreciam na água das enchentes, não havia estrutura de socorro, o dinheiro e a ajuda humanitária chegavam lentamente. Há pouco, semanas atrás, acabou a temporada de furacões na América Central e, agora, o país se debate com um surpreendente terremoto de magnitude inédita nos últimos 200 anos.

Aliás, dois séculos atrás é aproximadamente o tempo histórico da vitória da única rebelião de escravos que levou à independência de uma nação desde a Antiguidade clássica. Um passado glorioso que vem sendo ofuscado por um presente de pobreza e crises. Desde a deposição do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, a situação política oscilava entre momentos de paz, violência e fragilidade política. Mas a pobreza resistia. E a cada fenômeno natural, o espectro da destruição pairava sobre eles. A diferença é que desta vez, a tragédia une brasileiros e haitianos. Haverá mais confirmações de mortes entre os brasileiros capacetes azuis e diplomatas da ONU. A médica Zilda Arns teve ironicamente sua vida ligada ao país do continente americano com um dos piores índices de desnutrição e mortalidade infantil, onde queria implantar as bases da Pastoral da Criança.

O impacto do terremoto sobre o Haiti é brutal porque seu epicentro foi muito próximo de uma das regiões mais populosas, a capital Porto Príncipe. O país tem um território comparável ao de Alagoas, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mais ou menos 3 ou 4 milhões vivem só na capital, em favelas de tijolos frágeis, de estruturas baratas, improvisadas. Na cidade, onde os ricos moram nos morros e os pobres na parte plana próxima ao mar, o impacto foi maior em bairros com construções de mais de um piso. A região do Palácio do Governo, vizinha da favela de Bel Air, foi destruída. A situação se repete em bairros mais horizontais, como Carrefour, Delmas e Cité Militaire. Na região de Cité Soleil, de barracos de zinco e tijolos finos, os danos não foram menores.

O distrito de Petion-Ville, no alto da cidade, onde ficam as sedes das embaixadas e organizações internacionais, sofreu grande impacto. Até o Hotel Montana foi atingido, um quatro estrelas versão haitiana, onde morreu o general brasileiro Urano Bacellar em 2006. Passarão semanas para as contagens dos mortos e desaparecidos. O Palácio do Governo, que desmoronou quase completamente, era um centro político e uma espécie de residência do presidente. No hall revestido de mármore sob a cúpula central do palácio, ficavam as estátuas de Simon Bolívar e Alexandre Petion. Frente a frente. A poucos metros da vista ampla da planície da praça. Esses símbolos foram completamente soterrados no terremoto.

Um país imóvel

Vale lembrar que, em novembro de 2008, uma pequena tragédia se abateu sobre o distrito de Petion Ville. Ali, sem temporal, sem vento, sem terremoto, a escola primária La Promésse desabou. Simplesmente veio abaixo pela precariedade de sua construção. Matou cerca de 100 crianças e feriu outras 150. O presidente haitiano, René Préval, disse na época que a fragilidade e a debilidade do Estado permitia a existência de construções precárias e ocupações ilegais, o que aumenta a possibilidade de vítimas. O Haiti tentava reestruturar seu Estado com a ajuda da quinta missão de paz da ONU nas últimas décadas. Mas ainda não havia um sistema de defesa civil estruturado, o que vai piorar a situação agora no socorro e atendimento a feridos. Quem não morreu diretamente pelo terremoto corre o risco de morrer por falta de estrutura de bombeiros ou atendimento médico.

Porto Príncipe já possuía uma infra-estrutura precária. Energia elétrica era luxo. Quem tinha convivia com apagões diários. A distribuição de água era feita, muitas vezes, por caminhões-pipa e fontes de água. Em bairros inteiros, a população se abastecia com baldes. Cité Soleil, a maior favela da cidade, era um exemplo. Agora, com o terremoto, a estrutura de abastecimento de água também sofreu. Num país que importava mais da metade da comida para manter as necessidades básicas da alimentação de seu povo, a água voltou a ser escassa. Todo o combustível do país também é importado. Dificilmente um plano de emergência, com o envio de maquinário pesado, conseguirá colocar em prática um mutirão de salvamento em grande escala para evitar mais mortes. O país está quase imóvel dois dias após o abalo principal.

A ajuda da ONU e a dívida externa

O número de mortos – ouve-se agora uma estimativa do governo haitiano de cerca de 50 mil – seria pelo menos cinco vezes maior do que o total de brasileiros enviados à missão de paz das Nações Unidas nos últimos seis anos. O terremoto deve aproximar mais Haiti e Brasil. Nos últimos tempos, nossos enlaces com o país caribenho aumentaram. Além dos capacetes azuis, ativistas, acadêmicos e religiosos procuravam estreitar relações com o povo. A estrutura da ONU no país sempre esteve longe de mudar o perfil da pobreza e das necessidades básicas para o país se reerguer: trabalho, saúde, educação. Iniciativas como a da médica Zilda Arns eram um pedido de entidades haitianas desde a chegada da ONU por lá, há seis anos. Envio de médicos, engenheiros agrônomos, professores, gestores públicos, entre outros. Tudo que vai faltar em dobro agora.

Do fim da vida de Zilda Arns no Haiti, cabe ainda um recado, acredito. A mudança no perfil da missão da ONU no Haiti é urgente mais uma vez. O estágio relacionado à segurança pública pode ter sido questionável, mas há tempos foi superado. Temos a oportunidade agora de ajudar com menos tropas militares e mais parcerias para a reconstrução e desenvolvimento do Haiti. A começar pelo perdão da dívida externa de cerca de 2 bilhões de dólares, uma porcentagem ínfima na comparação com os rios de dinheiro que os países ricos gastaram para socorrer o sistema financeiro internacional da gana de seus próprios especuladores.

Terremoto no Haiti em 2010 – update de fotos

Mesmo com poucos pontos de acesso a internet, fotos do impacto do terremoto no Haiti podem ser encontradas no Flickr e algumas agências de notícias. Fiz aqui abaixo uma seleção de usuários que estão atualizando desde antes de ontem. Estimativas do governo balançam entre 50 e 100 mil mortos. Ou seja, não existe ideia exata sobre quão grande é a tragédia. Sabe-se apenas que é gigante, a maior da história do Haiti.

Miami Herald, Washington Post, The Salvation Army, Jurnal.md, Moskom, Catholic San Francisco, Agência Brasil, Cáritas Internacional, IRFCDisasters Emergency Committee (…) [em atualização…]

Terremoto no Haiti deixa “estado de sítio”

Estou tentando contactar amigos e conhecidos no Haiti. Pelas informações que obtive, a situação é uma calamidade imensa. Os bairros pobres também foram ao chão, o trânsito é quase impossível, falta ajuda para quase todos, a torre de controle do aeroporto ruiu, pessoas estão nas ruas atônitas, esperando socorro médico que não vem de lugar algum. Os hospitais que ficaram de pé não conseguem mais atender tanta gente. Poucos telefones funcionam, o contato com a capital, que já era dificílimo, ficou quase impossível. Conversei com uma pessoa no porto da cidade e ela comentou que as entradas das favelas de Cité Soleil e da zona portuária estão um caos.

Se o mais forte dos últimos furacões no Haiti matou algo em torno de 1 mil pessoas, o número agora pode ser bem maior, porque há muitos estragos na capital do país, Porto Príncipe, a região mais densamente povoada. Há mais brasileiros entre os mortos do que apenas os primeiros confirmados e de Zilda Arns. Essa é só a tragédia que nos une. Para o povo haitiano, também será hora de contar intelectuais, militantes e um sem-número de pessoas que podiam ajudar a impulsionar um novo Haiti – da política, da justiça social e dos direitos humanos. Pense em “Zildas Arns” haitianas que podem ter morrido. Esperar para ver. Reze pelo Haiti.

Renovação da missão da ONU no Haiti

Aqui, abaixo, texto do site Opera Mundi sobre a renovação da missão das Nações Unidas no Haiti. A autora é a Kivia Costa, que conversou comigo por telefone.haiti cerimônia

A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), renovada no mês passado até o final de 2010, deve permanecer no país caribenho por mais um ano depois disso, segundo o oficial de comunicação social do exército brasileiro, coronel Gerson Pinheiro Gomes.

Para o porta-voz, a missão de controlar militarmente o Haiti vem sendo passada para a polícia local, mas a segurança dificilmente será mantida a curto prazo sem a ajuda da Minustah. “No interior até conseguiríamos [fazer a transição], mas na capital a situação é mais complicada”, explicou em recente entrevista coletiva em São Paulo.

Na avaliação do jornalista Aloísio Milani, que escreve um livro-reportagem sobre a presença de tropas estrangeiras no Haiti, a permanência da missão brasileira já era esperada. “Quando o Brasil entrou na missão, em julho em 2004, ele já tinha uma perspectiva de longo prazo”.

Para ele, a renovação feita pelas Nações Unidas foi uma mera formalidade, pois não a condicionou a um plano de saída do país. Conforme explica Milani, “a ONU tem grande medo de fracassar no Haiti, como aconteceu nas últimas quatro vezes, mas, ao mesmo tempo, não dá as condições para o país se desenvolver sozinho”.

No entender do jornalista, grandes alterações só devem acontecer a partir de 2011, quando haverá eleição presidencial no Haiti, a segunda desde a criação da Minustah. “Vários membros do governo brasileiro e de outros países já deram declarações dizendo que o formato da Minustah deve continuar até 2011.”

O coronel Pinheiro confirma que a configuração das tropas brasileiras deve ser mantida até aquele ano. Segundo ele, a infantaria deve encolher e o contingente de engenheiros militares e pessoal de apoio deve aumentar, mas o novo presidente dirá se quer ou não manter as tropas estrangeiras.

Segundo Pinheiro, hoje, só a polícia haitiana pode fazer prisões. Ela também seria responsável por controlar as manifestações populares. “A TV haitiana não coloca no ar nada com tropas estrangeiras. Hoje, o importante é mostrar que a policia local paulatinamente dá conta da situação.”

Jogo político

O coronel não esconde que o Brasil tem interesses diplomáticos com a ação no Haiti, como conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança na ONU. Segundo ele, o Brasil “não está no Haiti por uma estratégia militar, mas por uma estratégia de governo. Essa é uma decisão política”.

De acordo com o coronel, haveria um entendimento por parte da ONU de que a presença brasileira no Haiti atrapalharia a participação de outros países da América do Sul. “É a primeira vez que tem uma missão com forte presença de países do sul e poucos países desenvolvidos”, ele destacou.

Os maiores contingentes militares no Haiti vêm de países em desenvolvimento. O Brasil é a nação que mais soldados enviou (1.282), seguido pelo Uruguai (1.135) e pelo Nepal (1.075). Países europeus e norte-americanos têm um contingente ínfimo na Minustah. “A prioridade dos Estados Unidos e do Canadá é hoje o Afeganistão”, comentou o coronel Pinheiro.

Revolução da viola: do culto à vanguarda

Pesquisadores e músicos indicam que a viola vive seu período mais fértil na música. Ligada às tradições populares – e, por muito tempo, rejeitada no cenário nacional –, a viola agora tem seu auge com um sem-número de instrumentistas, compositores e mestres. Deixou de ser som de acompanhamento de cantores para abrir, entre roças e cidades, uma nova fronteira melódica e harmônica. Por Aloisio Milani

(Texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, edição outubro 2009)violeiros

Os dedos de Almir Sater ponteiam um blues. O ganso é o nome da música. Composição própria, tocada no palco do programa Viola, minha viola, da TV Cultura, sob o olhar atento da cantora e folclorista Inezita Barroso. O templo da música caipira muda naquele momento. Pelas suas mãos, o Pantanal se aproxima do Mississipi. Almir toca de óculos. Repousa o pé direito sobre o esquerdo, um tipo de suporte próprio para a viola se moldar ao corpo. O blues segue acompanhado pelo violão do irmão mais novo, Rodrigo Sater, que pouco tempo depois repetirá a saga de peão-violeiro em novela – dessa vez, a escolhida é a trama Paraíso, da TV Globo. Mas ali, atrás do palco do blues caipira, na coxia, há algo mais importante. Os violeiros Roberto Corrêa, Paulo Freire e Adelmo Arcoverde observam atentos a apresentação – todos são virtuoses das dez cordas. Mais que regionalistas, eles integram uma geração de instrumentistas brasileiros que conseguiu deslocar a viola para um novo patamar: o de instrumento complexo, de sonoridades amplas, que bebe na inspiração das tradições e voa alto, incorporando novas referências e elementos eruditos e populares.

Ao lado de Almir, o grupo se apresenta como parte do projeto “Violeiros do Brasil”, idealizado e dirigido pela produtora Myriam Taubkin. É um registro de 13 violeiros selecionados em dois momentos: 1997 e 2008. Na década passada, o encontro resultou em um disco ao vivo e ajudou a dar visibilidade para um movimento de contemporanização da viola, com novos instrumentistas e influências. “A viola já tinha mudado. E ali começou a mostrar sua força”, lembra Paulo Freire. Mas voltemos à apresentação televisiva do grupo. A música após o blues de Almir Sater encerrará o programa. Todos juntos farão um arranjo clássico para a voz de Inezita Barroso. Ansioso, o pernambucano Adelmo Arcoverde pergunta: “Que tom ela canta?”. Roberto responde sério: “Si”. A pegadinha faz tremer o rosto do experiente professor e improvisador Adelmo. “Si” é um tom complicado, que exige acordes com pestanas. Com cinco sustenidos, é quase impossível fazer rápidas e precisas progressões na escala. Silêncio estratégico. Depois, risos. A piada se desfaz. Paulo e Roberto se desmancham. E entram no palco. Tocam Boiadeiro errante em “Sol”.

“A viola é passado, presente e futuro”, sentencia Roberto Corrêa, físico graduado e um dos principais violeiros dessa geração, com um intenso trabalho como pesquisador da área. “O que se vê de mais interessante no atual cenário musical brasileiro é o que se tem feito com a viola”. De instrumento incrustado nos rincões do Brasil, servindo de base para cateretês, cânticos religiosos e brincadeiras pagãs, ela rompe o preconceito de ser caipira e se torna contemporânea. É capaz de se misturar a instrumentos de música clássica e aos populares – clarinete, flauta, cello, fagote, piano. “Ela vai no caminho inverso de outros instrumentos, porque há pouca coisa escrita. Não veio do erudito, como o piano, por exemplo, e se popularizou depois do violão”, explica Myriam Taubkin. Para entender essa evolução, é preciso voltar um pouco na história e localizar a origem deste instrumento idiomático. A âncora da tradição nasceu portuguesa e abrasileirou-se.

A evolução

Caipira, nordestina, de arame, cinturada, cantadeira, do capeta ou devota. A viola brasileira pode ter muito nomes e apelidos – aliás, tantos quantos se possa imaginar –, mas sua estrutura é semelhante ao instrumento que desembarcou no Brasil com os colonizadores portugueses. Dez cordas presas nas extremidades e com uma caixa de ressonância de madeira em forma de oito. “A viola veio com os jesuítas para a catequese. Os índios adoravam as escalas musicais. Os cantos eram de devoção. Nossa música paulista começou santa”, relata Inezita Barroso. Em seu apartamento, em São Paulo, Inezita guarda a relíquia de uma imagem de São Gonçalo, o santo violeiro que encantava as mulheres de “vida fácil” com danças, para que elas não caíssem nos pecados da carne. Assim, ganhava força a mística do tocador de viola. Ele era visto como alguém que enfeitiçava as mulheres, ainda que exista quem encontre outras fontes de inspiração para os solos e melodias.

A capacidade de tocar viola sempre esteve ligada a uma espécie de pacto com o lado espiritual. Geralmente com um ente avesso a santos, anjos e querubins. Segundo as tradições populares, era mesmo o diabo que fazia um bom violeiro. Tal como acontece com os tocadores de blues norte-americanos. Robert Johnson, dizem, teria feito um. Receitas não faltam para encontrar o diabo. Paulo Freire, jornalista por formação e violeiro por adoção, conta que o bom mesmo é meter a mão em buraco de igreja do interior. Depois de sentir os dedos quebrados pelo tinhoso, os ponteados estarão todos morando na sua mão. “Funciona”, brinca. O anedotário rural ainda recomenda botar um guizo de cascavel dentro da viola. Uma pesquisa de Mário de Andrade sobre a cultura popular, na década de 1920, registrava que o guizo da cobra dá bom som para o instrumento. Mas na pequena Pindamonhangaba, interior de São Paulo, havia violeiro que tinha um pé atrás com o conselho. “O guizo melhora o som, mas não presta, porque seis meses depois vira a própria cascavel”, registrou o inquérito do escritor modernista.

A viola e seus trejeitos foram passados no boca a boca por muito tempo. Durante a colonização, os bandeirantes a levaram sobre as mulas e cavalos para o interior do Brasil. O isolamento geográfico a aproximou cada vez mais dos temas rurais, tornando-a um instrumento do campo. Só veio a ter algum registro musical bem mais tarde, com pesquisadores. Entrou para a indústria fonográfica por iniciativa pessoal de um folclorista da cidade paulista de Tietê: Cornélio Pires, que pagou do próprio bolso a gravação que a dupla Mariano e Caçula fez da música Jorginho do sertão. O sucesso de Cornélio foi estrondoso. Cinco mil cópias vendidas em 20 dias na carroceria de um caminhão pelo interior. Lançou-se para a história como um dos primeiros “produtores independentes” do país. Um mercado que a elite desconhecia. E detestava.

A música caipira, com a viola no prumo, seguiria como um gênero do interior por décadas a fio. Os principais nomes? Raul Torres e Florêncio, Capitão Furtado, João Pacífico, Tonico e Tinoco, Luizinho, Limeira e Zezinha, Vieira e Vieirinha, Carreirinho, Nenete e Dorinho, Jacó e Jacozinho, José Fortuna e Pitangueira, Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho, Zé Mulato e Cassiano, e tantos outros que não cabem nestas linhas. Dessa lista sem-fim, um músico foi especial: Renato Andrade, cujo trabalho abriu nova trilha para a viola caipira. Mineiro de Abaeté, ele teve formação clássica para o violino, mas trocou de instrumento. Amadureceu uma técnica espetacular para tocar viola. Suas músicas eram verdadeiras novidades melódicas. Autossuficientes. Renato as nomeava como causos rurais: O jeca na estrada, Prelúdio da inhuma e Sinhá e o diabo. Entre suas qualidades também se destacava a de contador de histórias. A receita do pacto do diabo para os violeiros se popularizou em suas apresentações. “Tinha hora que dava para acreditar que ele tinha pacto com o demo mesmo. Era muito som para pouco dedo. Parecia que ele tinha mais de duas mãos”, fala Paulo Freire.

Viola na vanguarda

O primeiro registro do projeto “Violeiros do Brasil”, da produtora Myriam Taubkin, contou com a presença de Renato Andrade e de Zé Coco do Riachão, dois mestres do gênero. Na segunda edição, ambos já tinham morrido, mas os 11 demais são unânimes em avaliar a genialidade musical dos companheiros. “Renato Andrade fez história. Tenho como certo que podemos avaliar o movimento da música de viola antes e depois dele. É um divisor d’água da viola no Brasil”, diz Pereira da Viola, mineiro do Vale do Mucuri. O legado artístico de Renato tem pelo menos quatro discos fantásticos. E uma rapidez inacreditável nos dedilhados. Uma vez, o jornalista José Hamilton Ribeiro, veterano amante dos caipiras, calculou, em uma reportagem do Globo Rural, que Renato Andrade era um dos músicos mais rápidos do mundo. “Era mais rápido que os mais rápidos instrumentistas eruditos”, diz.

Renato trouxe para muitos instrumentistas o caminho das experimentações. Ivan Vilela, mineiro de Itajubá, foi um deles. Apaixonado pelo Clube da Esquina, soube como poucos adentrar no mundo da viola. Em dois discos instrumentais, “Paisagens” (1998) e “Dez cordas” (2007), transita entre o tradicional e o moderno. Toca cururus, flerta com o movimento armorial e rompe preconceitos ao (re)construir Eleanor Rigby, de Lennon e McCartney. Ainda compôs uma ópera caipira, prova de que é teórico e prático do instrumento. Na Universidade de São Paulo (USP), foi o criador do primeiro curso de graduação de viola caipira, lugar em que também levantou um séquito de alunos admiradores. “O aluno de viola precisa ser, além de um bom músico, um pesquisador com pés fincados na antropologia, na sociologia rural e na história. Precisa ser um intelectual capaz de identificar os traços idiomáticos da viola e da música produzida pelos caipiras”, explica.

E assim, cada violeiro vai buscando suas referências. Paulo Freire, por exemplo, já botou distorção de guitarra na sua viola de cocho – aquela viola do Centro-Oeste construída a partir de uma peça única de madeira. Escavada e sem abertura para caixa de ressonância, ela traz um som metalizado. A distorção de guitarra, diz Paulo, está em seu subconsciente musical desde quando ficou marcado pelo solo de Jimi Hendrix, no hino norte-americano contra o fim da Guerra do Vietnã. Paulo, que é filho do anarquista, psiquiatra e escritor Roberto Freire, juntou a distorção de guitarra aos efeitos da música Antônio Conselheiro para simular o bombardeio de Canudos – nossa chaga aberta do sertão nordestino.

Quem também busca sonoridades diferentes é Braz da Viola. Luthier conhecido e autor de um dos mais famosos métodos de aprendizagem de viola, Braz agora mistura timbres da guitarra elétrica e contrabaixo com a viola caipira e a de cocho. Traz as melodias das toadas caipiras e deságua no blues e no jazz.      “A viola tem um imenso caminho pelo século XXI, porque tudo está por ser explorado”, diz Myriam. A trilha mostrada por Braz da Viola e seus companheiros no projeto “Violeiros do Brasil” é uma espécie de ciclo de uma segunda geração de músicos. Isso se pensarmos que a primeira foi a de Renato Andrade, e a segunda, a dos demais aqui citados. Vale ainda lembrar de alguns não contemplados no projeto, e que são igualmente magistrais: Chico Lobo, Zeca Collares e Fernando Deghi.

Uma terceira geração, contudo, já surge no cenário independente, formada sob a influência de caminhos abertos por todos que a antecederam. Uma geração que já reflete uma pluralidade de sons. Em uma década ou menos, a maioria provavelmente será de novos mestres. Está aí a magia de um instrumento que se renova na bagagem das ascendências mestiças do brasileiro. E tudo se mistura no saco da viola. Com o diabo e seus santos. 

“Ipod caipira”

Para os leigos e curiosos no assunto, a modernidade ajuda (e muito): é possível assistir a algumas preciosidades violeiras na teia gigante de pocket-vídeos do YouTube. Em um “Ipod caipira” não podem faltar músicas como:

– A famosa parceria de improviso entre Tião Carreiro e Almir Sater, no pagode;

– O encontro da viola de Roberto Corrêa e da rabeca pernambucana de Siba, no projeto “Rumos” do Itaú Cultural;

– A história ancestral de Vai ouvindo, de Paulo Freire, que diz que a viola ali foi feita de um antigo banquinho, “onde a gente passava as horas juntinho”;

– O arranjo genial dos improvisadores Adelmo Arcoverde e Ivan Vilela, na tradicional Asa Branca, de Luiz Gonzaga, em que as violas parecem adentrar os próprios tocadores.

No caso do projeto “Violeiros do Brasil”, um show recente em Belo Horizonte está editado e dividido em músicas para os internautas. Basta procurar os vídeos adicionados pelo perfil “taubkinmy”.

Update 21 de outubro:

– O programa Mosaicos, da TV Cultura, sobre Tonico e Tinoco;

O que disse Kai Michael Kenkel

Na retomada que faço de publicação de posts, escrevo aqui algumas considerações do professor assistente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Kai Michael Kenkel, que tem refletido sobre a presença do Brasil na missão das Nações Unidas no Haiti. Pelo currículo lates dele, dá para perceber que ele já escreveu artigos sobre o assunto, orientou teses de graduação e orienta teses de pós-graduação. Deixo aqui algumas coisas que li dele:

Em contraste com o Canadá, o envolvimento do Brasil na manutenção da paz está em consonância com seus objetivos geopolíticos ao invés de um sentimento de obrigação moral. As tropas brasileiras têm realizado a sua missão com profissionalismo e sucesso, uma integração sem precedentes nas metas da política externa com aplicação militar. (…) Embora não totalmente desprovido de um componente moral, as motivações do Brasil não se enquadram na mesma categoria de altruísmo explícito que, tradicionalmente, constitui a singularidade da política externa canadense.

Como sou estrangeiro, acho que não me cabe fazer certas avaliações dos fatores que motivam a política externa brasileira. Fala-se muito que um dos objetivos era ganhar pontos para a campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Outro seria o Brasil ganhar um perfil de líder na América Latina. Acho que esse esforço de começar a aprender a trabalhar bem com os outros está indo bem. Mas, para o objetivo do Conselho de Segurança, a participação em missões de paz não é a melhor maneira de ganhar espaço. Quem contribui com tropas senta à mesa de negociações com mais seriedade quando se discute a missão em questão. Mas só isso. Não é um modo particularmente eficiente de ganhar um perfil para integrar o Conselho de Segurança. Por exemplo, 45% das tropas em missões da ONU hoje são do subcontinente indiano: Bangladesh, Paquistão, Índia e Nepal. Exceto a Índia, esses países não têm perfil para integrar o Conselho de Segurança.

Acho que já chegou o momento de pensar em uma estratégia de retirada para os brasileiros. A ideia de toda operação de paz é ser pontual, limitada no tempo, pelo menos uma operação baseada no Capítulo VII. A ONU, em relatório recente, estabeleceu o que chamou de critérios anuais a serem cumpridos em cada setor da missão. E o planejamento deles acaba em 2011. Para o Brasil, chegou o momento de pensar em uma estratégia de saída. Sobretudo porque no Haiti já há uma muito forte presença da ONU fora da Minustah. Além disso, para a missão deixar um marco positivo, a transição para uma equipe de haitianos tem de ser preparada já.

Nobel de Obama! Vitória dos negros?

Barack Obama

A concessão do Prêmio Nobel para o presidente norte-americano Barack Obama mostra que há algo errado nessa pós-nova ordem mundial. Se o fato de derrotar um republicano nos Estados Unidos, vira motivo para a concessão do símbolo da paz mundial, precisamos nos preocupar. Quando Obama venceu as eleições – fica aqui o registro – negros do mundo inteiro, inclusive no Haiti, comemoraram um momento único: a possibilidade de o império ver os excluídos da globalização de um novo jeito. Se Obama, tivesse usado uma pequena porcentagem de seus bilhões de dólares para a pobreza (como no cancelamento de dívidas dos países pobres) ao invés de abastecer os dutos contra a crise e a manutenção da máquina militar no Iraque e Afeganistão, talvez aí merecessem algo. Os negros ainda têm pouco a comemorar… Ah, em tempo, talvez a grande reportagem não feita sobre o Nobel da Paz seja os relatos dos bastidores dessa decisão…

Update 19 de outubro: belo texto da Naomi Klein sobre a influência negativa de Obama. “…emerge adotando o padrão claro: nas áreas em que outros países ricos estavam oscilando entre a ação baseada em princípios e a negligência, as ações dos Estados Unidos as fizeram inclinar-se para a negligência. Se esta é a nova era de multilateralismo, não é nada digno de premiação”.

A vida na nuvem…. de tags

wordle

o amigo rodrigo savazoni indicou o wordle e eu achei muito bom para brincar de coisa séria. uma boa metáfora da vida recentemente, uma nuvem… de tags. coloquei lá um trecho do haitiano Dany Laferrière. e  virou isso aí: um concretismo haitiano, forjado e remixado na net.  escrevo hoje para contar que há tempos não escrevia por aqui. o final de 2008 e toda esta década dos primeiros meses de 2009 foram tempos de muitas mudanças. no mundo, obama foi eleito e tomou posse.  o haiti comemorou. contudo, pouco mudou para aqueles negros de lá.  a crise se aprofundou imensamente. e isso muito mudou para eles. bilhões de dólares foram gastos pelo mundo contra a quebra de empresas e das bolsas. se uma pequena parte tivesse sido usada para os pobres haitianos, a discussão em julho agora seria outra. mas o mundo não gira assim. nem a onu. ah… colaborei com a revista on-line terra magazine neste primeiro semestre de 2009. muita gente deu pitacos e petelecos bons por lá.  dei os meus também.  mas no segundo semestre os vôos serão outros. vou falando, vou falando…

Dorival Caymmi e seu acervo… na internet

Dorival Caymmi

Aloisio Milani
De Terra Magazine

É fácil, quase institivo, balançar o corpo na batida dos sambas do baiano Dorival Caymmi. Para divulgar seu legado na vida e na música, foi lançado um site biográfico e um acervo digital de sua obra. O projeto foi idealizado pelo filho do artista, Danilo Caymmi, pelo neto Gabriel Caymmi e pelo músico Paulo Jobim, filho de Tom.

Durante mais de um ano, o projeto catalogou documentos, poemas, cartas, fotos, capas dos discos e partituras. Dá para ir lá conhecer os manuscritos de “Rosa morena”. É possível também ouvir uma seleção de discos do autor e ver suas capas.

Só ir lá no endereço www.dorivalcaymmi.com.br e buscar o item “Música”. Vá lá e ouça, por exemplo, o o clássico disco “Ary Caymmi Dorival Barroso”, de 1958, em que os dois autores tocam e interpretam canções um do outro.

Dá para ouvir “Na baixa do sapateiro” na voz de Caymmi e “Marina” no piano de Barroso. O disco da gravadora Odeon é uma raridade do acervo do compositor disponível na internet, daquelas grandes possibilidades que a internet traz gratuitamente.

Aliás, acervos interessantes como esse de Caymmi podem ser encontrados na internet. Basta só de gostar de música brasileira. Exemplos? A Rádio da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Rádio do Instituto Moreira Salles (IMS).

Fonte: Terra Magazine (2009)

Zélio: brasilianas, condimentos e outras bagunças

Aloisio Milani
De Terra Magazine

Zélio fala com imensa alegria de sua carreira. 50 anos. Comemorada em livro, com lançamento previsto até o final do ano, e por uma exposição, marcada para o próximo dia 22 em São Paulo. A vida do jornalista, cartunista, pintor e escritor Zélio é tão intensa quanto a de seu irmão com “z” – o pai do menino maluquinho: Ziraldo.

Conhecido como um dos fundadores de O Pasquim, Zélio tem em seu currículo o fato de ter criado e incentivado o salão internacional de humor de Piracicaba. Para além de sua marca como cartunista, perfil comum ao irmão e à esposa Ciça (aquela criadora de O Pato), Zélio conta a Terra Magazine sua última novidade como pintor.

Aliás, atende o telefone de seu ateliê no bairro de Higienópolis pedindo tempo: “Garoto, pode me ligar daqui a pouco? Estou no meio de uma tela e se parar agora não vai dar certo”. Na segunda tentativa, já está afiado para conversar. Solto.

– Rapaz, é uma coincidência você ligar para falar da minha carreira, porque vou lançar agora em 2009 um livro sobre os 50 anos de meu trabalho. Vai se chamar: “Zélio – 50 anos de uma aventura visual. Do risco à cor”. Começa com um autorretrato, passa pelo cartum, artes gráficas e chega às telas.

Antes mesmo do livro, o restaurante Mestiço, em São Paulo, vai abrigar uma exposição com uma seleção de suas telas e litografias. Entitulada “As Brasilianas e outros Condimentos”, alguns destaques são antecipados aqui em Terra Magazine neste feriado prolongado.

– A exposição começou com uma proposta quase frívola e se transformou em algo muito interessante.

Zélio foi provocado pela dona do restaurante Mestiço a mostrar parte das “raridades de seu ateliê”, uma grande babel de sua produção. “Guardo no meu ateliê muitas telas, sobras de antigas exposições. Muitas delas não faziam parte de um conjunto e eu não tinha concluído 100%. E agora terminei para essa exposição”, diz.

Destaque para duas séries. Em “Ameríndios”, traz a estética que classificou de “pré-cabralina” para se referir à cultura ancentral dos povos americanos.

– Tem como base uma observação que tenho há tempos sobre nossa herança visual pré-cabralina, que é extremamente interessante e absolutamente ignorada. Há os que acham que o que faz parte de nosso passado remoto precisa ser esquecido ou apagado.

A série circulou numa exposição sua no Museu Brasileiro da Escultura (MuBE). O pintor revela que esse sua paixão pelo ancestral tem origens “desde menino, nas conversas sobre cavernas”.

– Existe uma coisa fantástica no Brasil que é a Pedra do Ingá, um paredão arqueológico perdido no sertão da Paraíba. É nossa Pedra de Roseta. Um paredão fantástico. Um dia, se Deus quiser, quero fazer uma reprodução dela – em tamanho menor, claro – e colocar no Parque do Ibirapuera e outra no Aterro do Flamengo. Só assim para as pessoas conhecerem aquilo. E essa estética é muito rica.

Outra série que Zélio apresentará é “Brasilianas” – conjunto de obras com retratos de mulheres resultantes de nossas miscigenações, “nativas na forma e na vontade”. “São essas mulheres anônimas – nem feias e nem necessariamente perfeitas -, que o artista elegeu como modelo para seu trabalho”, registra um texto sobre a exposição.

Na conversa por telefone, Zélio avisa aos risos que não consegue mandar nenhuma reprodução das telas para publicação. “Não é que eu não tenha. É que computador não é meu forte”, brinca. Vai até a agenda e procura o telefone de um amigo que possui cópia do material. E finaliza:

– Eu sou um dos caras mais desorganizados que eu conheço (risos). Procurando o telefone, encontrei uma tesoura que havia perdido. Enfim, sorte…

Exemplos da exposição podem ser acompanhados aqui em Terra Magazine até este domingo, 14.

Serviço:
“As Brasilianas e outros Condimentos”
De Zélio Alves Pinto
Restaurante Mestiço
Rua Fernando de Albuquerque, 277 – Consolação
Telefone: (11) 3256-3165
De 23 de junho a 23 de agosto de 2009

Fonte: Terra Magazine (2009)

Morte do Carreirinho, entre derradeiros caipiras

Carreirinho

Aloisio Milani
Terra Magazine

Dos patriarcas da música caipira, hoje restam alguns poucos. A contar nos dedos. Sinal de um tempo passado em que a viola transpirava o Brasil antigo, guardado nos rincões das fazendas e que desembarcavam com sucesso estrondoso nas ondas das rádios da capital. Esse país da cultura popular está de luto nesta sexta-feira, 27, com a morte de um de seus principais compositores caipiras: Carreirinho, autor de clássicos como “Boi soberano” e “Ferreirinha”.

Aos 87 anos, Adalto Ezequiel faleceu num hospital paulistano, vítima de complicações após um derrame que o deixou inconsciente e respirando com a ajuda de aparelhos há mais de uma semana. O velório e o enterro serão realizados hoje no Cemitério Jaraguá, no Km 23 da rodovia Anhanguera, em São Paulo. Carreirinho deixa dona Mariana como viúva.

Carreirinho nasceu em 1921 na pequena Bofete, interior de São Paulo, a mesma cidade descrita e estudada no clássico da sociologia Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, para relatar a cultura caipira. Bofete hoje tem até praça com monumento de Carrerinho. Inezita Barroso, a apresentadora do “Viola, minha viola”, da TV Cultura, lembra que esse era um orgulho dele.

– Carrerinho tinha um carinho grande pelas pessoas que lembravam dele por sua história muito digna e bela. Uma vez, numa homenagem, fizemos uma foto de frente ao monumento dele na cidade. Fotografia que guardo com o coração – diz Inezita Barroso

Entre suas principais músicas, está “Ferreirinha” – a crônica de um peão que procurava seu amigo desaparecido depois de sair para tocar uma boiada. O encontrou morto e fez um malabarismo para levá-lo para um enterro decente.

Pra levar meu companheiro veja quanto eu padeci
Amarrei ele pro peito numa árvore suspendi
Cheguei meu cavalo em baixo e na garupa desci
E com cabo dum cabresto amarrei ele ni mim

Outro marco de sua carreira foi a moda “Canoeiro”, um causo de pescaria de final de semana. A toada ficou marcada na memória de quase todos que têm mais de 40 anos de vida e apreciam a música raiz.

Domingo de tardezinha, eu estava mesmo a toa
convidei meu companheiro, pra ir pescar na lagoa
Levemos a rede e o lanço
Ai, ai fomos pescar de canoa

Nos últimos anos, estava mais afastado de apresentações por dificuldades de saúde. Mesmo assim compareceu a algumas homenagens, na maior parte das vezes acompanhado por seu ex-parceiro de viola Carreiro e a família de catireiros de Oliveira Alves Fontes, em Guarulhos.

A pedido de Terra Magazine, diversos músicos, personalidades e intelectuais deram seus depoimentos sobre a morte de Carreirinho. Justa homenagem, ainda que póstuma. Seguem…

Inezita Barroso: “Carreirinho foi um grande compositor e, principalmente, muito humilde. Sua simplicidade e sua timidez, inclusive, não o deixararam ser tão conhecido. Mas ele escreveu clássicos maravilhosos da música caipira. Não a velha música, a séria. Faz parte do tronco de nossa história brasileira”.

José Hamilton Ribeiro: “Várias das músicas de Carreirinho podem ser colocadas em primeiro lugar em qualquer lista das melhores. Depende do gosto, claro. Mas várias têm potencial de estar lá. As letras dele são verdadeiras lições de português, porque é impossível contar aquelas histórias de outro modo. ‘Ferreirinha’, por exemplo, não tem o que tirar nem colocar. É uma lição de compositor, até uma lição jornalística. Está entre os gênios caipiras”.

Roberto Correa: “Carreirinho foi um dos melhores compositores de todos os tempos. Deixou clássicos impressionantes. Ao lado de Zé Carreiro, constituiu uma das melhores duplas caipiras da história.”

Daniel: “Uma pena que a música sertaneja tenha perdido um ícone, uma referência, como o Carreirinho. Tinha uma grande admiração pelo trabalho dele, assim como meu pai também. Só podemos agora orar por ele e para que sua família tenha conforto e paz”.

[Link original]

Artista imortaliza espécies em extinção em xilogravuras

copaiba

Lá nas primeiras folhas de Grande Sertão: Veredas tem uma frase rosiana assim: “Perto de muita água, tudo é feliz”. Assim é possível comparar a sensação da artista Angela Leite, 59 anos, quando viajou pelas veredas mineiras à procura de uma lagoa.

Não qualquer uma, mas uma lagoa descrita na segunda década do século XIX pelos naturistas Carl von Martius e Johann Baptiste Spix, ambos nascidos na Alemanha, mas que fizeram uma expedição para registrar a biodiversidade brasileira da época.

Angela Leite reencontrou uma lagoa com traços da moderna destruição ambiental. Desmatamento de parte da mata ciliar e pasto para gado. É certo que parte parece sobreviver melhor. “Mas por quanto tempo?”, pergunta.

Seu trabalho parte da resistência ao tempo. Desenvolve um tema constante na sua carreira artística: a luta pela preservação da biodiversidade. Forja em matrizes de madeira as imagens de espécies ameaçadas. Que serão imortalizadas em xilogravuras.

– A escolha da xilogravura não é por acaso. É interessante pensar que a técnica é capaz de reproduzir em grande quantidade o número de obras. Para cinqüenta, cem, cento e poucas impressões. Você multiplica a imagem da espécie que está perdendo indivíduos.

A reprodutibilidade na contramão da destruição ambiental. Para ela, uma forma militante da ecologia. “Mais pessoas terão acesso a essa imagem e elas são possíveis parceiros da sua luta, possíveis defensores daquela espécie“, explica.

Na opinião de Angela Leite, o debate sobre a preservação ambiental ganhou força com uma data marcada – a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, em 1972, em Estocolmo, na Suécia.

– A partir daí, os países começaram a procurar o que corria risco de extinção no seu território. Surgiram as listas de espécies ameaçadas de extinção. Para mim, as listas estão em segundo plano, porque hoje, não tenho dúvida, todos os animas correm algum tipo de ameaça”, diz.

Entre os animas totalmente extintos no Brasil que retratou, cita a arara cinza-azulada (anodorhynchus glaucus), antiga habitante das barrancas dos morros do sul do país. “Essa ave vistosa já desapareceu do território brasileiro”, explica.

Angela já fez exposições em vários estados brasileiros. E até fora do país. Inclusive no Museu da Coleção Zoológica de Munique, de onde saíram von Martius e Spix para suas expedições naturalistas no Brasil-colônia. “Foi uma honra para mim”, lembra. “Uma coincidência expor de onde eles saíram para fazer os belos registros da biodiversidade brasileira”.

Formada em filosofia, é artista plástica autodidata. Também integra a organização não-governamental Rede Pró-Unidades de Conservação, que reivindica do governo federal o reconhecimento de áreas protegidas.

O destaque da capa de Terra Magazine de hoje (27/02/2009) é uma tartaruga-de-pente (eretmochelis imbricata). A inspiração da xilogravura? As fêmeas que, depois de adultas, retornam às praias onde nasceram para procriar.

Obs.: texto publicado originalmente no site Terra Magazine, de Bob Fernandes, em fevereiro de 2009.

Elifas Andreato e seu carnaval perdido

Aloisio Milani
De Terra Magazine

Elifas Andreato é artista de muitos carnavais.

Mais de 62 desde que nasceu na pequena cidade paranaense de Rolândia.

Sua história tem muitas alas de destaque: a política, a musical, a teatral, a jornalística, a boêmia.

Andreato transbordou poesia nas capas de quase 400 discos do melhor da música nacional. E emoldurou seu nome no altar da arte plástica brasileira.

Os long plays de samba que assinou rasgam dor qualquer do coração.

Pintou e bordou para Chico Buarque, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Clementina de Jesus e Martinho da Vila. Entre centenas mais. Se falamos, contudo, dos dias de Momo e Colombina, a história precisa começar em 1976, quando ele foi carnavalesco da Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba de São Paulo.

Aquele carnaval ainda tinha a sombra mórbida do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi em outubro de 1975.

A ditadura dividia a consciência.

A cena de Vlado dependurado pelo próprio cinto ficaria na cabeça de Elifas até pouco tempo.

Ele criou em 2008 a versão vitoriosa de Vlado.

Em bronze, com braços e mãos para o alto, a peça foi símbolo de um prêmio especial sobre direitos humanos.

O peso pesado de Vlado ainda era de defunto quente.

O carnaval precisava ser belo.

E foi.

“Fui tricampeão. Foi uma escola para mim, conviver com o barracão, com a comunidade, cuidar de tudo”, lembra Elifas.

Só depois da Camisa Verde e Branco que Elifas trabalhou com os sambistas Paulinho da Viola e Martinho da Vila, pintando aquarelas e pinturas a óleo com as marcas da cultura de raiz.

Abandonou as capas de disco porque, segundo ele, mídia e música mudaram.

“Não vale mais a pena fazer. Naquele momento em que produzi, a música era brasileira e ponto. Hoje não”, lamenta

Às vésperas deste carnaval de 2009, Elifas atendeu Terra Magazine disposto a lembrar. Mais.

Reviver um carnaval perdido, guardado no seu baú. Melhor, numa caixa do ateliê.

– Vou te contar uma história que você vai ficar tão impressionado como eu ainda fico. É uma beleza.

Tudo começa com o convite de Rildo Hora, “o maior produtor e arranjador de samba no Brasil”, sentencia Elifas.

– No começo dos anos 90, a pedido a gravadora Sony, Rildo gravaria os melhores sambas da história das escolas do Rio para uma série comemorativa. As próprias escolas escolheriam seus sambas-enredo e ele gravaria. Fez um texto belíssimo para a coleção e me convidou para ser o capista.

Elifas faz uma pausa para inspiração.

“Fiz uma série de um marchetado em papel. Colagens uma a uma. Fiz uma pesquisa para descobrir qual ala era mais tradicional em cada escola. E trabalhei com um enredo diferente para cada uma”, explica.

– Fiz mestre-sala e porta-bandeira para a Vila Isabel; ala dos compositores para o Império Serrano; passistas para Estácio de Sá; as baianas na Mangueira; abre-alas na Beija-Flor.

A capa da Mocidade traz ala da bateria a percorrer uma avenida da direita para a esquerda. A sombra dos percursionistas ao fundo contrasta com serpentinas e confetes. Em primeiro plano, o tambor, a caixa, a cuíca e o pandeiro, todos tocados por músicos com a aura repetitiva da alegria.

Num clique de computador, as gravuras que tinham uma versão digital chegaram até Terra Magazine por e-mail. Os leitores poderão conferir aqui algumas delas aqui nestes dias de folia.

Para o artista plástico, só o resultado final do conjunto da obra é que decepciona:

– Tudo isso nunca foi lançado pela gravadora. Tanto para mim, quanto para o Rildo Hora, nunca deram uma razão sequer. Uma coisa que ninguém jamais soube explicar. E criou expectativa também em todas as comunidades do Rio. Nada foi divulgado.

Uma baita ressaca de folião na quarta-feira de cinzas.

Ainda assim um belo carnaval.

Fonte: Terra Magazine (2009)
http://www.terramagazine.com.br

Columbia analisa missão no Haiti

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A Columbia’s School of International and Public Affairs selecionou sete alunos para realizar estudos de campo no Haiti. O grupo vai se preparar até o final do ano e fará a viagem em janeiro de 2009. Os custos serão financiados pela universidades e pela ONU. O planejamento inclui entrevistas com autoridades da ONU, com o governo haitiano, com ONGs e com a população. Os resultados serão apresentados numa conferência no próximo semestre. O blog Morningside Post, um fórum estudantil da escola, divulgará áudios e vídeos da experiência.

Escola desaba em Pettionville

Foi um minifuracão. Sem vento, sem chuva, a tragédia impactou fortemente o Haiti. O prédio da escola La Promésse, no município de Petionville, localizado na região da capital Porto Príncipe, desabou. A tragédia matou pelo menos 93 pessoas e deixou mais de 150 feridos. A maioria das vítimas eram crianças que freqüentavam a escola evangélica no momento do desmoronamento. Foram quatro andares do colégio privado que vieram ao chão.

Vários grupos ajudaram no resgate: o contingente militar brasileiro da ONU, Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, Polícia Nacional do Haiti e voluntários civis. Via e-mail, o embaixador brasileiro Igor Kipman descreveu a ação dos brasileiros. “No interior do prédio da escola, em um túnel estreito que ameaçava desabar, após mais de seis horas de trabalho dramático, conseguiram resgatar com vida quatro crianças haitianas que se encontravam presas nos escombros”.

A capitã médica Carla Maria Clausi comandou o resgate pelos brasileiros e registrou: “Conseguimos salvar com vida, depois de mais de 6 horas de um resgate dramático, quatro crianças haitianas, de 6 e 7 anos de idade, que se encontravam presas nos escombros do andar térreo”. Uma foto desse momento caiu no Flickr. O presidente René Préval explicou que a debilidade do Estado permite a existência de construções precárias e as ocupações ilegais, que dificultaram até o socorro às vítimas.

No Twitter, pessoas de diferentes países repercutiam as notícias. As buscas terminaram em confusão, porque a população queria continuar a escavar o local mesmo sem chances de encontrar mais vítimas.

School collapse

Publico.Org, algo inovador no jornalismo

Conheci em São Paulo por meio do Rodrigo Savazoni e do André Deak um grupo de comunicadores realmente impressionante. Que traz discussões quentes para a prática do jornalismo – sua crise, superação e seus novos desafios. Um dos projetos discutidos e formatados por este grupo é o Publico.Org, uma experiência jornalística de protagonismo jovem na periferia de São Paulo.

Coisa de quem realmente vê que a crise do jornalismo também é superada com debates e envolvimentos de quem está atento a novos olhares. Principalmente aqueles que surgem fora do eixo prepotende do main-streaming, e que às vezes está numa laje de favela. A proposta está na corrida para obter financiamento do Knights News Challenge. Leia mais sobre o projeto e vote por esta página.

publicoorg

Trabalho escravo, cana-de-açúcar e o discurso da propaganda

Este post faz eco ao texto do jornalista Leonardo Sakamoto, escrito em seu blog. Vamos lá. Passo-a-passo. Quem diz que o Brasil não tem trabalho escravo ligado à cana-de-açúcar? Os empresários, várias fontes da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e, agora, um integrante do Itamaraty preocupado com a imagem no exterior. E quem diz que há trabalho escravo? O próprio Ministério do Trabalho com a lista-suja dos maus empregadores e as organizações não-governamentais, como a Repórter Brasil, que acompanham o setor. E a situação é grave? Já foi muito pior, mas ainda há casos de fazendas com flagrantes de trabalho escravo. O que fazer então? A questão não é negar que exista trabalho escravo e, sim, mostrar a presença do Estado nos casos de violação.

Tenho trabalhado como colaborador na produção e edição do programa Plantão Saúde, distribuído para 400 rádios de todo o país. Neste mês, fiz uma edição sobre os direitos dos cortadores da cana-de-açúcar e a situação do setor. Tem uma entrevista com um auditor fiscal do trabalho e outra do Sakamoto. Destaque para as seguintes informações. 1) Um estudo recente mostra que ao cortar uma média de 12 toneladas por dia, o trabalhador precisa caminhar 8 quilômetros, dar 130 mil golpes de podão. Isso o faz perder 8 litros de água. E ainda realiza a atividade sob efeitos da poeira, da fuligem da cana queimada e do sol quente; 2) Dos 5.999 trabalhadores libertados da escravidão no ano passado, 3.131 estavam em fazendas de cana-de-açúcar, em nove fazendas.

Esse discurso que o Itamaraty adota também está impregnado na propaganda dos empresários e pode cair nas garras do que o governo quer “vender” lá fora. Hoje, o Portal Imprensa publicou uma notícia sobre a licitação que escolheu a agência de relações públicas para promover o Brasil no exterior. O sub-secretário da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), Otoni Fernandes Jr., afirmou que o etanol deve ser um dos principais motes. “A questão etanol é líder porque vem há 33 anos investindo nesse biocombustível”. “Temos o ciclo completo do etanol”, ressatou. “O Brasil é uma marca forte e precisamos aproveitar o momento”, concluiu. Será uma oportunidade de corrigir o discurso… se houver vontade.

Twitter #rodaviva sobre comunicação pública

Aqui deixo a cópia das inserções no twitter dos bastidores do programa Roda Viva, da TV Cultura, que gravou nessa terça-feira com a diretora-geral da BBC, Janna Bennett. O conteúdo está no blog em ordem inversa. Os primeiros updates estão lá embaixo. Junto comigo na bancada dos twitteiros do Roda Viva, estavam Lucia Freitas e Barbara Dieu. Entre os entrevistadores estavam Lilian Witte Fibe, Carmen Amorim, Patricia Kogut, Eugenio Bucci, Lucia Araujo, Nelson Hoineff. A entrevista foi exibida experimentalmente on-line ao lado de todas as inserções com a marca #rodaviva no twitter. A fórmula é interessante e está em teste. Conversando com a Lia Rangel, ela comentou que a exibição foi marcada em cima da hora. Apesar disso, achei boa a participação. Horário em que as pessoas estão na net, talvez pela conexão em seus respectivos trabalhos.

Barbara Dieu comentou que é necessário mais interação entre as pessoas do twitter e o programa. Acho que tem melhorado. Hoje, as pessoas podiam mandar perguntas via twitter e via e-mail. Embora poucas (se não me engano quatro apenas) tenham sido feitas realmente à entrevistada. André Deak, o Radar Cultura e o Paulo Fehlauer já escreveram sobre as experimentações no Roda Viva. O search.twitter ajuda a mostra tudo sobre a tag #rodaviva. Em relação à entrevista, acho que foi mediana. Bennett é uma executiva de programação, mais envolvida com a parte de seriados e documentários, mas com pouca relação com o jornalismo. Suas respostas foram afirmativas, mas pouco detalhadas. E os entrevistadores não pediram exemplos de suas formulações sobre publicidade, audiência e conteúdo. Aí deixou a desejar. Contudo, vale por discutir direito à comunicação em horário nobre.

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Ajuda no Haiti está longe do combate à pobreza e desnutrição

A ajuda humanitária ao Haiti nas últimas semanas responde vagarosamente à tragédia deixada pela passagem de quatro furacões na atual temporada de 2008. O país já tinha uma situação de empobrecimento extremo e se tornou calamidade internacional. Quase 800 pessoas morreram e outras 18 mil ficaram desabrigadas, segundo os últimos dados oficiais. O governo local – chefiado pelo presidente René Préval –, as Nações Unidas – que coordenam uma força de paz no Haiti (Minustah) – e outras organizações não-governamentais reafirmam que a ajuda atual está aquém do mínimo necessário para a situação. Mas a entidade Médicos Sem Fronteiras faz denúncia pior: a de que além de ser insuficiente, não está conectada a nenhuma estratégia clara para suprir as necessidades básicas da população.

”A ajuda alimentar internacional que chega às comunidade é claramente insuficiente em termos de quantidade, inadequada para as necessidades nutricionais das crianças de pouca idade, e ela está sendo distribuída de uma maneira que exclui as mulheres solteiras com filhos. Não existe ainda nenhuma estratégia clara para identificar as necessidades, nem aplicar uma resposta adequada nutricional”, registra um informe da MSF publicado nesta semana. “Apesar da presença significativa de organizações internacionais – com abundância de especialistas e de publicações que mostram isso –, o povo de Gonaives ainda tem precisa ver benefícios. A temporada de furacões termina no final de novembro. Se outro atravessar a região com mais chuvas, moradores aqui pagarão mais uma vez um preço muito alto.”

Diante deste informe, entrevistei o porta-voz da MSF por e-mail. Gregory Vandendaelen explicou que a entidade é especializada no atendimento médico de emergência e que, mesmo após algum tempo dos desastres no Haiti, os casos críticos não diminuem. Entre os fatores está o atendimento impróprio da ajuda humanitária. “Não é só sobre a quantidade da ajuda, é mais sobre a forma como ela é organizada. Contra a desnutrição, por exemplo, não é a quantidade de comida que irá ajudar as crianças e, sim, a qualidade. Arroz, óleo e grãos farão pouco ou nada por eles. Precisam de alimentação terapêutica, rica em proteínas, vitaminas e nutrientes. O que denunciamos aqui é a falta de estratégia e prioridade”, disse. A MSF clama para que as organizações e o governo haitiano examinem imediatamente suas respostas de emergência e priorizem o amparo às crianças vítimas das inundações.

A crise dos alimentos no mundo piorou a situação do Haiti em 2008. Uma notícia do site oficial da Minustah de julho já mostrava o impacto da inflação. “Os preços de produtos como arroz, milho, farinha, açúcar, óleo, palhetas, as mangas têm crescido muito. O saco de milho estava em 400 gourdes no ano passado e agora subiu para 1050 gourdes (1 dólar = 37,50 gourdes). O arroz passou de 125 a 225 gourdes por saco”, afirma. Antes da crise alimentar, observa Stephanie Debere, da Oxfam, as pessoas comiam arroz, feijão e legumes. Agora os vendedores do mercado estão sendo forçados a abandonar a atividade, principalmente após a enxurrada de arroz subsidiado que chegou com a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI). O responsável da Coordenação Nacional para a Segurança Alimentar haitiano (CNSA), Gary Mathieu, estima que 3,3 milhões de pessoas enfrentam problemas para se alimentarem no Haiti após a passagem dos ciclones, que afetaram as safras e a produção agrícola.

No mundo, segundo a FAO, o Haiti se soma a outros 36 países que necessitavam de ajuda estrangeira contra a crise dos alimentos. Na América Latina, Haiti, Honduras e Haiti possuem a combinação explosiva de baixa renda e déficit na produção de alimentos. O último relatório oficial da ONU sobre o Haiti, que embasou a decisão do Conselho de Segurança de prorrogar a força de paz até 2009, indica que a produção nacional de alimentos e ajuda internacional não cobrem mais do que mais do que 43% e 5% de suas necessidades, respectivamente. Isso tem influenciado de maneira direta e intensamente na economia do país e nas condições de vida da população. O déficit comercial do Haiti aumento US$ 185 milhões (2,5% do PIB) durante os seis primeiros meses de 2008 por conta da alta dos alimentos. A inflação dobrou, alcançando 15,8% em junho do ano passado, ante 7,9% de todo o exercício de 2007.

Também repito aqui algumas propostas (minhas e de outras entidades) para ajudar na crise humanitária do Haiti. 1) Perdoar a dívida externa haitiana, sobretudo sua célula-mater em posse da França, antiga metrópole colonial que ganhou rios de dinheiro com a escravidão e ainda cobrou para reconhecer a independência da colônia; 2) Melhorar a produção local de alimentos com incentivos fiscais e reforma agrária, priorizando os pequenos agricultores; 3) Rever todas as negociações em curso do comércio mundial que aprofundam o abismo da importação de alimentos, o que funciona como uma espécie de dumping mundial contra o Haiti. 4) Ajudar a encontrar recursos com países doares para suportar o plano haitiano de combate à pobreza.

PS: este texto foi produzido para integrar as ações do Blog Action Day 2008, celebrado hoje no mundo todo com o tema “pobreza” ao mesmo tempo em que são feitas centenas de atividades do Dia Mundial da Alimentação.

Missão da ONU no Haiti é renovada até fim de 2009

A bola estava cantada. O Conselho de Segurança das Nações Unidas renovou a permanência da força de paz no Haiti por mais um ano, incluindo planos de ação pelo menos até a posse do novo presidente em 2011. Ou seja, a decisão foi tornada oficial hoje, mas, na prática, é uma formalidade das rotinas burocráticas da diplomacia. O que interessa é que a nova resolução não traz nenhuma mudança formal na configuração dos trabalhos. Mais de um ano e meio depois de relativa tranquilidade no país, passada a etapa das ações militares em Cité Soleil, o número de soldados permanece o mesmo sob o argumento que de a segurança ainda é frágil. Nada indica que o modelo de missão de paz da ONU vá apresentar resultados mais concretos para os verdadeiros problemas do povo haitiano – pobreza, falta de saúde, educação e emprego.

A resolução apresentada hoje mantém o Haiti como região de conflito, mantendo as regras de engajamento militar, com a observação de que a segurança é necessária em situações como os protestos da população em abril diante da inflação dos alimentos. Além, claro, após a devastação brutal causada pelos quatro furacões recentes (Hanna, Gustav, Ike e Fay), que, segundo o diplomata Luiz Carlos da Costa, assessor do secretário-geral da ONU no Haiti, atrasará em cerca de um ano a “estabilização” do Haiti. “A resolução reconhece a necessidade de uma conferência de doadores de alto nível para apoiar a estratégia nacional de crescimento e redução da pobreza no Haiti. Nesse sentido, pede ao governo haitiano e à comunidade internacional de doadores a implementar um sistema eficiente de coordenação de ajuda”, diz a ONU.

Esse anseio por mudança está há tempos na cabeça de entidades civis haitianas (leia matéria de 2005), na dos próprios militares (leia general Heleno em 2004) e dos diplomatas – recentemente o embaixador Igor Kipman falou sobre disso. “Eu continuo defendendo que o Brasil, nesse próximo contingente [que será o décimo] ou no outro, mande menos combatentes e mais uma companhia de saúde, mais pessoal de educação”, indicou na Agência Brasil. Depois, ao jornal O Estado de S.Paulo, foi mais explícito. Ao falar sobre a prorrogação sob os mesmo “moldes”, o diplomata disse que vai atuar por mudanças no composição das tropas e na manutenção do Capítulo 7 da Carta da ONU, que autoriza o uso da força. “Não precisamos de combatentes para ensinar criança a escovar os dentes. Temos 900 combatentes fazendo ações cívico-sociais, como distribuição de alimentos e construção de latrinas.”

Nesta última reportagem, inclusive, feita pelo jornalista João Paulo Charleaux, há uma ótima análise sobre o fracasso do braço civil da Minustah, a área da missão responsável pela atuação policial, por novos projetos humanitários e pela articulação de trabalhos das agências da ONU. Entre os argumentos do texto, está um dado que consta no balanço do último ano da missão. Elaborado pelo chefe da Minustah, Hedi Annabi, o relatório cita que a produção nacional de alimentos e ajuda humanitária que recebe não cobrem a metade das necessidades da população. “O Haití importa 52% do restante de seus alimentos (o que inclui mais de 80% do seu arroz) e todo o seu combustível”, registra. Ou seja, sem mexer na estrutura econômica do país qualquer ação militar será um processo “enxuga-gelo”.

Esperança nas tempestades?

A BZ Films fez o vídeo “Haitian Hope” em conjunto com a ONG Parterns In Health para mostrar a situação do país caribenho após os quatro furacões. A trilha deixou em mim a impressão de que o material foi editado para incentivar o derretimento de corações, mesmo que as imagens falassem por si. Mas vale a pena…

Caos dos furacões no Haiti – update de fotos


Agora, passado algum tempo após os quatro furacões que atormentaram o Haiti, chovem na internet atualizações das fotografias da tragédia. Para ser mais exato, das quase 800 mortes e outras dezenas de milhares de desabrigados. Via Haiti Innovation, recebo alguns links para navegar pela dimensão de ser pobre num país que está na rota dos furacões. A foto acima é da equipe da Rádio Nederland. Também tem a própria galeria do blog Haiti Innovation. Na Federação Internacional da Cruz Vermelha, uma galeria mostra Gonaives alagada. A Cruz Vermelha dos Estados Unidos traz mais 20 fotos. Também no Flickr, imagens do comando militar dos Estados Unidos entregando a ajuda humanitária. Susan Walsh publicou fotografias de resgates em Gonaives. Complemento a apuração deles com links importantes da página da Minustah, do Haitian Times, do TNT Emergency Response Team, além do sempre impressionante olhar da fotógrafa Ariana Cubillos, do Washington Post, como na foto abaixo.

Biógrafo e biografado retratam Cuba

Continuo aqui a recuperar alguns textos que fiz em algum momento do passado. Aqui vale registrar uma entrevista com o poeta, artista e agitador cultural Félix Contreras, o cubano que veio ao Brasil em 2003 para lançar a tradução em português de seu livro “Eu conheci Benny Moré” – biografia do gênio da música cubana, um multi-instrumentista e cantor que viveu o auge das melodias latinas. O livro era o gancho para se discutir a cultura de um país que sabia a dor e o prazer de ser revolucionário e autoritário. O texto foi publicado na editoria de Cultura do site Ciranda Brasil, saudosa e sensacional experiência que contou com a participação dos amigos Rodrigo Savazoni, Leonardo Sakamoto, Daniel Merli, Antonio Martins, Rafael Evangelista e Antonio Biondi. Segue sem mais delongas…

Benny Moré, o gênio da música cubana
O escritor e poeta Felix Contreras lança no Brasil a biografia do cantor

Os cantores cubanos mais populares no Brasil são com certeza Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e a turma mostrada em Buena Vista Social Club, de Win Wenders. Porém, chega ao Brasil pela editora Hedra, a biografia de um dos maiores cantores da história de Cuba: Benny Moré. Um fenômeno. E, mesmo que a metáfora brasileira seja forçada, muitos o comparam a uma mistura de Orlando Silva e Pixinguinha.

O escritor, poeta e pesquisador de música cubana Félix Contreras está no Brasil para o lançamento da tradução de Yo conocí a Benny Moré (Eu conheci Benny Moré). O livro é uma coletânea de artigos e depoimentos que mostram como a vida do guajiro de Santa Isabel de las Lajas transformou-se no gênio musical. A tradução foi feita por Lucio Lisboa, José Luiz de la Hoz e Alexandre Barbosa.

Ex-guerrilheiro e amante da Revolução, Contreras concedeu entrevista exclusiva à Ciranda Brasil. Como escreveu em La música cubana – una cuestión personal, o pesquisador reafirmou que sua obra conta a história da música a partir de seus protagonistas. Falou da influência do jazz e sua particular discussão com o crítico musical José Ramos Tinhorão.

Extremamente humilde, Contreras revelou que somente com o dinheiro da edição brasileira é que poderá comprar um computador para escrever. Fumante exagerado de charutos, o escritor nos deu também sua opinião sobre o atual momento cubano. Tempos em que o presidente George W. Bush discursa contra Fidel, dizendo que “não há mais espaço para ditaduras nas Américas”.

O senhor descreveu Benny como o expoente máximo da música popular cubana. Quais os elementos que o diferenciam? Como surgiu esse grande nome?
Em primeiro lugar, é um homem privilegiado pela natureza, tinha o dom para música. Se tivesse ficado apenas em seu povoado, sua história poderia ter sido outra. Mas, Benny tinha intuição também. E a intuição aguda é própria das pessoas especiais, dos eleitos da natureza. Benny tentou se estabelecer na capital Havana, sabendo que teria dom para o canto. O início do sucesso de Benny começa na emissora de rádio Mil Diez. Acredito, pelas minhas pesquisas, que não havia em 1941, nenhuma rádio parecida em toda América Latina. A Mil Diez transmitia a melhor música do mundo, não somente a de Cuba. Eram convidados os melhores músicos eruditos e populares. Privilegiou a música de um modo extraordinário. E Benny Moré era rato da Mil Diez, acompanhava dia e noite os ensaios e a programação da rádio, embora ainda morasse na rua. Até que Mozo Borgellá, grande músico e responsável pela revelaçãode Benny, convidou-o para um dueto. Começa o mito Benny Moré.

É nesse momento que ele faz sucesso no México?
Miguel Matamoros, criador do trio mais importante de Cuba (Trio Matamoros), precisava de um cantor para uma excursão ao México. Ouviu dizer que exisitia “um grande cantante” em Havana e foi ouvi-lo. Benny exibiu-se maravilhosamente. “Ele é melhor que eu”, exclamava Matamoros. Foram para o México, onde adotou seu nome artístico “Benny”, já que Bartolo, como era chamado em Cuba, significava “burro” nas gírias. México proporcionou o desenvolvimento musical de Benny. E por lá fez grande sucesso.

Cuba sofreu claramente a influência do jazz. Aqui, o crítico José Ramos Tinhorão rejeita essa mistura na música popular brasileira. O senhor concorda com esse purismo?
O jazz chegou na música cubana na década de 20, bem antes que surgisse a bossa-nova aqui. A entrada do jazz está ligada a burguesia compretida com o capital financeiro norte-americano. Isso foi bom para a música cubana. Para mim, assimilar novas culturas não é traumático nunca. A cultura que só vê a si mesma é pobre, um paradigma muito estreito da cultura. Eu conheço o Tinhorão e somos amigos. Ele foi até Cuba um ano atrás, mas brigamos feio, porque é muito dogmático. Uma pena porque é um pesquisador muito bom. Mas não dá para negar o valor da bossa-nova, dizer que é somente o fruto do imperialismo.

Há propostas brasileiras para novas traduções?
Agora, penso na biogradia do Bola di Nieve como um segundo lançamento. É uma figura mais conhecida aqui. Está na moda. Até um documentário sobre ele foi exibido no festival É tudo verdade. Bola di Nieve gravou músicas brasileiras. “O quindim de Yayá”, de Ary Barroso, por exemplo.

Qual sua visão do regime cubano hoje?
Aguardo sempre essa pergunta. Comentei com você, que só com o dinheiro da edição brasileira de Eu conheci Benny Moré é que comprarei um computador. Não temos dólares em Cuba. Nossa moeda não tem resposta comercial nenhuma. Nós vivemos heroicamente. Mas, de qualquer maneira, a minha opinião não coincide com a da maioria. Sou um caso especial. Meu compromisso com o regime cubano tem um elemento singular.

Eu vivia numa favela antes da Revolução. Tinha 20 anos. Sem pai e mãe. Minha mãe me abandonou. Era analfabeto. Minha família materna era muito ignorante, muito explorada e muito maltratada por um capitalismo cubano que era totalmente dependente dos Estados Unidos. Quando se diz que Cuba era uma colônia dos Estados Unidos, não é um exagero. Tenho um compromisso esse regime. Nem gosto de falar “esse governo”. Gosto de dizer “meu governo”.

O senhor foi guerrilheiro?
Sim. Sou um garoto que estava a vinte anos esperando e sonhando ir à escola, ter roupa, ter sapato, trabalhar minha inteligência. E um dia, para minha surpresa, veio um governo e me deu roupas, sonhos e uma bolsa para estudar na melhor escola de Havana. Então isso me dá uma outra visão da Revolução. Eu participei da guerrilha, porém não recebi nenhum privilégio por ter sido guerrilheiro. Nada. De qualquer modo, sou um homem muito beneficiado por esse governo. Não sou socialista pelos livros. Não conheço a Revolução Cubana por uma aula, por uma história. Sou socialista porque vivi os benefícios da Revolução.

Para mim, não há capitalismo que convença a substituição do socialismo em Cuba. Apesar de que precisamos adotar muitas posições complicadas (um pouco de economia americana, um turismo que não gostamos, que banalizou muitos artistas), mas meu passado e o meu governo não vou negar. Estamos em um momento difícil, a posição da dissidência política interna chegou a um ponto complicado. Os fuzilamentos foram um golpe muito grande para mim, um ato extremo, tomado num contexto político internacional, que está muito mais difícil. Mas, foi como a política, um mal necessário.

Ação no Haiti inocula parte do plano de defesa do Brasil

Está para sair do forno o Plano Nacional de Defesa, formulado em conjunto entre Ministério da Defesa, Secretaria de Assuntos Estratégicos e Forças Armadas. Nos bastidores, o presidente Lula já aprovou as propostas do plano, mas ainda precisa passar pelo Conselho de Defesa Nacional, o que deve acontecer ainda neste mês de outubro. Três eixos do plano merecem destaque: a reestruturação das Forças Armadas, a reorganização do Serviço Militar Obrigatório e o reequipamento da indústria bélica brasileira.

Dentro desse documento de ações programáticas aparecerá a proposta de mudança da legislação que permite a ação das Forças Armadas em situações de segurança pública, conhecidas como ações de garantia de lei e ordem (GLO). Um sonho antigo dos militares para esclarecer a situação jurídica. Esse anseio já foi apresentado diversas vezes pelo ministro Nelson Jobim na comparação com a ação no Haiti e aqui neste blog na série “Haiti e Rio de Janeiro, campos militares brasileiros“. A proposta terá que tramitar no Congresso.

O foco das mudanças para a ação GLO está no artigo 144º, da Constituição Federal e seus dispositivos infraconstitucionais, como a Lei Complementar 97. O tema ganhou mais força depois que o episódio desastroso do Exército no Morro da Providência evidenciou esses limites jurídicos e a fragilidade do sistema diante do uso político de seu emprego. Na caserna, os documentos de planejamento já mostravam a confusão há anos. A vontade dos militares também é usar o treinamento humano adquirido no Haiti para o uso interno.

Há outros dois pontos do plano que também tangenciam a nossa atuação no Caribe. O Brasil ainda precisa mudar sua legislação para permitir o envio de tropas militares para operações de paz regidas sob o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, como é a do caso haitiano. Hoje, nossas leis apenas permitem o uso militar para a própria defesa. E o plano também escolhe a França, aliada na intervenção no Haiti, como principal parceiro no plano militar para as próximas décadas para compra de equipamentos.

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Militares do Exército que serviram na força de paz da ONU no Haiti, durante desfile de Sete de Setembro de 2007, em Brasília (Fábio Pozzebom Rodrigues/ABr)

Protestos contra as tropas no Haiti

A última rodada crítica de instabilidade política no Haiti vai completar cinco anos no começo de 2009. Em fevereiro de 2004, pouco depois do país cravar 200 anos de independência da França, o mundo assistiu mais um presidente eleito cair por um golpe de Estado, pressionado por países estrangeiros e assistir a nova entrada de tropas militares em seu território. Desde então, há demonstrações políticas de apoio às ações internacionais por lá (que a maioria dos jornais sul-americanos repercute), mas também uma série de protestos e questionamentos (uma minoria ocupada nas páginas dos noticiários).

É possível diferenciar a etimologia política das declarações de oposição contra as tropas militares no Haiti em duas etapas. O primeiro momento é derivado da ação franco-americana que instaurou o governo provisório. Principalmente por discordarem da polêmica saída de Aristide, que era cogitada nos bastidores da diplomacia francesa e norte-americana desde o início da marcha do grupo armado de Guy Phillipe, opositor explícito do governo do partido Lavalas. O resumo do primeiro argumento seria então o da não-intervenção na política interna de um país, sendo ele governado por qualquer um.

O segundo movimento está mais identificado com a chegada das tropas das Nações Unidas, aí lideradas pelas Forças Armadas do Brasil. A oposição se colocava mais sobre o perfil da ação da ONU, de que poderia ser, desde o começo, prioritariamente ligada à ajuda humanitária, aos programas sociais, à melhoria da precária economia haitiana. Esse movimento se concretizou afirmativamente no relatório final da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade ao Povo Haitiano, que contou com a participação do nobel da paz argentino Adolfo Perez Esquivel.

A partir daí, esses olhares se moldaram aos argumentos e fatos que surgiram nesses quatro anos e meio: os diversos relatos de violência da Polícia Nacional do Haiti, os casos de inabilidade das tropas jordanianas, as denúncias de abusos sexuais pela tropa do Sri Lanka, a inabilidade para um desarmamento em larga escala da população, os passos pachorrentos da burocracia da ONU para implementar projetos civis e a demora da convocação de novas eleições. Tudo isso foi jogado no ventilador por quem questionava a ação militar em um país empobrecido política e economicamente.

Aqui, no Brasil, quero registrar dois movimentos de oposição à presença de tropas militares no Haiti. Um primeiro que teve ações concentradas na Conlutas, a partir da articulação de integrantes do PSTU e do P-Sol. Eles organizaram uma missão de movimentos sociais e criticam a presença brasileira como reprodutora da violência contra da soberania haitiana. Também trouxeram para cá integrantes da organização sindical Batay Ouvriye para dar visibilidade ao protesto.

Outro movimento foi a ação da corrente O Trabalho, do PT – o próprio partido do presidente Lula -, que trouxe o advogado haitiano David Josue para denunciar assassinatos que teriam acontecido em ações da ONU. Como munição de suas críticas trouxe o vídeo “What’s going on in Haiti?” (parte 1 e parte 2), do jornalista Kevin Pina, que traz duras críticas ao trabalho das tropas militares lideradas pelo Brasil. O material chegou na Comissão de Relações Exteriores do Senado e gerou até uma missão para averiguar as denúncias.

Em território haitiano, a missão chefiada pelo senador Heráclito Fortes (DEM-PI) conversou com o chefe da MInustah, o Hédi Annabi. Reproduzo aqui um trecho de um texto da Agência Senado sobre esse encontro. “Hédi Annabi informou já ter visto o filme, mas que se trata de uma montagem. ‘A ONG que divulgou esse filme não tem credibilidade nem aqui nem no exterior. Asseguro que se a tropa da ONU tivesse matado civis haveria um escândalo internacional’, garantiu.”

“Após ouvir o secretário, Heráclito concluiu que o filme mostrado na comissão é “propaganda enganosa”. O presidente da CRE perguntou ainda ao presidente do Senado haitiano, Kely Bastien, se conhecia a denúncia. Bastien também desacreditou a denúncia. ‘Há pessoas que são hostis à estabilidade, que lucram com a instabilidade, e querem que as forças de paz deixem o país’, disse Bastien.”

Ah… tanto a articulação da Conlutas quanto a do PT protocolaram na Presidência da República do Brasil cartas de denúncia com pedidos públicos de explicação do presidente Lula. Mas nunca houve um pronunciamento oficial sobre elas. A desclassificação dos interlocutores foi a estratégia. Coisas do discurso político. O que só distancia o público do debate aprofundado sobre a realidade do Haiti.

Ajuda pós-furacões e economia haitiana na berlinda

A passagem dos furacões pelo Haiti (e seus impactos) foram pouco noticiadas no Brasil. Há alguns dias, jornalistas da TV Globo, da EBC e da Agência Lusa foram para lá. Esta última, inclusive, com belas reportagens. No balanço, deram matérias em português com relatos dos soldados e dos representantes da ONU sobre a ajuda humanitária. O general Santos Cruz estima em quase 17 mil os desabrigados. A diretora do Programa Mundial de Alimentos, Josette Sheeran, acredita que nem um terço das doações necessárias chegaram. De Porto Príncipe, o embaixador brasileiro comenta que alimentos são doados pelo Brasil diretamente a famílias e entidades necessitadas. Enviado da ONU clama por doações via governo e não por ONGs. Na imprensa estrangeira, há denúncia de roubo de alimentos que seriam entregues para as vítimas. O Unicef reafirma que as crianças são as principais vítimas. ONG Médicos Sem Fronteiras atua fortemente em Gonaives. Venezuela anuncia plano de ajuda ao Haiti por intermédio da Petrocaribe, já uma reportagem da NPR vincula a atuação de Chávez a uma manobra política na região. No rastro dos quatro furacões que devastaram o país, outra tempestade se forma – o impacto financeiro que a crise dos Estados Unidos pode provocar no Haiti. O economista Kesner Pharel alerta que a economia haitiana é muito vulnerável. Já frágil por ser grande importador de alimentos, os efeitos de uma recessão no país podem ser bem duros. E empurrar cada vez mais gente para imigrações ilegais. Sem que ninguém discuta uma “ajuda econômica” ao Haiti diante da enxurrada de dinheiro que seguirá para a roleta das bolsas. E se o furacão recessivo for uma tormenta a conta-gotas?

Haiti e a roleta da crise financeira

Sinceramente, não tenho idéia qual é o tamanho do mercado de ações no Haiti. Nem tenho a mínima idéia do tamanho do impacto da tensão nas bolsas dos últimos dias nos leilões das ações das empresas de capital aberto por lá. O que quero aqui é lançar um desafio sobre como o mundo especulativo do mercado financeiro é contraditório com a vida de populações pobres. Alguém aí tem a medida ou a noção de quanto significa US$ 700 bilhões do pacote anticrise de Bush?

A quantia é quase o total de toda a produção de riquezas do Brasil durante seis meses. Isso para aliviar a gestão de empresas que venderam crédito a torto e a direito, e que, logicamente, fizeram a economia dos Estados Unidos como refém neste momento. Porque a falências das empresas levará junto a superpotência, não tenham dúvida. Mas a comparação que merece ser feita é entre o pacote anticrise dos Estados Unidos e a dívida externa haitiana.

O Haiti, um país pobre cujo endividamento começou de maneira moralmente indefensável pela ex-metrópole França, que queria indenização pelos escravos perdidos na independência. A dívida externa é de US$ 1,6 bilhões, pouco diante do pacote de Bush mas que impõe um ajuste fiscal brutal sobre o já baixo orçamento público comprometido com o pagamento de juros, que não param de crescer.

A Papda lançou novo apelo contra essa contradição após a devastação dos furacões – tragédia humanamente pior do que a das bolsas. Só com o pagamento dos serviçõs da dívida, estimados entre US$ 60 ou US$ 80 milhões anuais, daria para aliviar a situação das vítimas e ajudar na reconstrução do país. O governo haitiano mantém o pagamento dos juros e libera proporcionamente seis vezes menos dinheiro para a reconstrução do país.

Quem tem medo de uma moratória? E por que os credores não perdoam as dívidas como forma de ajudar a economia haitiana? O que vale mais agora: ajuda vidas ou manter os juros? Sobre isso há um imenso silêncio dos governos…

A globalização, o Haiti e os trabalhadores

Nesse post, vou misturar tecidos brasileiros, capitalismo, globalização, Haiti, diplomacia, Estados Unidos e direitos trabalhistas. Quem conseguir avançar na leitura verá que está tudo conectado. É só embaralhar as cartas. Começo com a notícia propriamente dita para não desabar o ímpeto voraz do consumo midiático. Voltemos os olhos então para os relatos de nossa diplomacia. Ponto um.

A repórter Sabrina Craide, que começou na Agência Brasil quando eu era editor por lá, está em cobertura especial nesta semana direito de Nova York. Em uma entrevista, o ministro Celso Amorim falou que indústrias brasileiras se interessaram em criar unidades no Haiti para exportar produtos para os Estados Unidos. Isso ele conversou com a secretária de Estado, Condoleezza Rice.

Essa postura se explica facilmente pela comitiva de empresários que o presidente Lula levou ao Haiti em sua última visita. Numa clara tentativa de impulsionar as relações bilaterais e a quantidade de investimentos num país desprovido de petróleo, de agricultura frágil e com poucas alternativas de negócio. Mas ainda assim uma tentativa de redirecionar o foco da ação brasileira no Haiti.

Ponto dois. Agora quero junto um post do blog do Leonardo Sakamoto, que comentou os recentes exemplos de indústrias têxteis que se instalaram na China em busca de custos de produção mais baixos do que no Brasil. Lê-se exploração do exército de trabalhadores. Sakamoto alerta para a necessidade de pressão sobre países e empresas que tenham produtos com origem duvidosas sob o prisma trabalhista.

O que ele propõe é a reflexão sobre o consumo ou não de produtos originados em cadeias produtivas mais “baratas”, que significam, na maioria das vezes, conivência com a superexploração do trabalho. E de que forma os consumidores comuns e a sociedade podem cobrar as posturas de governos e empresas. O cerne do que acostumou-se a chamar de consumo consciente.

Ponto três. Uma sinapse bibliográfica me ocorre. Numa velha edição de 1995 da Foreign Affairs, o japonês Eisuke Sakakibara sentencia: “A globalização da economia leva à oligopolização do mercado mundial e, o que é mais grave, faz com que os interesses dos trabalhadores e consumidores passem a divergir”. Retomo o raciocínio da etapa anterior e digo: preços e direitos estão de lados opostos no capitalismo.

Ponto quatro. No Haiti, articulação de várias entidades na Missão Internacional de Investigação e Solidariedade apontou a preocupação de que o país seja transformado num quintal de “maquiladoras” e de fábricas que pagam proporcionalmente menos aos haitianos. Isso já acontece com filiais norte-americanas, canadenses e dominicanas, como denunciam organizações e sindicatos por lá.

A conclusão. Ninguém aqui está prejulgando que qualquer empresa brasileira que vá para o Haiti esteja com o objetivo implícito de escravizar trabalhadores. Mas fica o alerta de que um país tão empobrecido quanto o Haiti precisa muito mais de alternativas vinculada aos direitos e à justiça financeira. Sob o risco disso contradizer o próprio discurso de solidariedade que tantos sul-americanos pregam.